segunda-feira, 20 de março de 2023

Madrugadas Felinas. Um romance.

Nota do autor: este roteiro de cinema foi originalmente escrito em 2014 e publicado neste blog em junho do mesmo ano. Retirado para edições voltadas a poli-lo, republico-o oito anos após sua concepção original, sob novo nome.

Vistos na ordem da esquerda para a direita: Jennifer Connelly, circa 2000; Burt Reynolds, circa 1979; Rachel McAdams, circa 2008.

Roteiro originalmente intitulado "Nosebleed" e publicado em 2014, este trabalho foi escrito como veículo para as melhores qualidades dos atores acima, artistas que tive em mente ao tecer a trama. A estória firma-se sobre os pilares de duas graphic novels: "Daredevil: Born Again", de Frank Miller, e "A History of Violence", de John Wagner. Também, nos momentos mais importantes, deve a filmes nos quais obviamente encontrei elementos necessários para mover a estória para a frente, mantendo-a nos trilhos do verossímil. Dentre muitos filmes, a abertura da estória bebe da fonte do diretor Peter Weir e seu "Fearless", de 1993, e a conclusão, da do diretor David Mamet, e seu "Cinturão Vermelho", de 2008, esse imprescindível, sem o qual a parte mais fundamental da jornada do protagonista - o herói vivido por Burt Reynolds transpondo a montanha em sua vida, que é a antagonista vivida por Rachel McAdams - jamais teria sido imaginável.

SINOPSE: DANIEL LEGRAND (BURT REYNOLDS) é um agente aeroportuário aos trinta anos que mora com a avó GLADYS (CLARE HIGGINS) e leva uma vida humilde e pacata. Ele parece um homem honrado e absolutamente comum; no entanto, não consegue se recordar da sua vida a partir de alguns anos para trás. A avó não acrescenta dados sobre seu passado, mesmo a pedido do neto, e assim o faz por um senso de dever de protegê-lo de seja o que for que entende como uma ameaça para ele. Daniel conhece apenas por fotografias sua cidadezinha de origem, a praia de Cape May, mas não se lembra do tempo no qual efetivamente caminhou por ali. Tendo sofrido um terrível acidente de estrada há seis anos, sua memória se desfez nos destroços. Para protegê-lo daquilo que o cercava na época da confusão, a avó o levou para longe, deixando Cape May para recomeçar a vida numa tranquila cidadezinha chamada Elizabeth, a apenas dez quilômetros do Aeroporto Internacional de Nova Jersey, onde Daniel passou a trabalhar. Embora grato pelas coisas boas que fazem de sua vida uma existência serena, ele jamais silenciou definitivamente o chamado dentro de si para conhecer a fundo de onde veio.

Seu melhor amigo é um veterano do serviço aeroportuário chamado GIRO (STEVEN SEAGAL). Giro acolheu Daniel em 2004 como se o mesmo fosse seu filho quando a avó o levou ao serviço aeroportuário em busca de emprego. Com o passar dos anos, Giro e Daniel construíram uma bonita e desinteressada amizade. Experiente e vivido, Giro é o primeiro a instigar Daniel a recuperar o tempo perdido e alçar maiores voos. Apesar do encorajamento, o homem se acomodou ao mundo seguro do aeroporto. Ali, não se sente desafiado; ninguém o perturba com perguntas sobre o que houve antes daquele longínquo dia na estrada quando suas memórias desapareceram. No Natal de 2009, um avião da American Airlines de retorno da Flórida sofre um acidente durante o procedimento de aterrissagem. Daniel, que assiste ao desenrolar do quase impacto, resolve agir e acaba salvando passageiros e tripulantes depois que o Boeing escorrega para a cabeceira e é envolvido em chamas. De um dia ao outro, torna-se herói nacional. Seu rosto, anteriormente anônimo, ganha as televisões e manchetes dos principais veículos midiáticos. 

O monumental feito desperta um renovado apetite pela vida, uma sensibilidade até então adormecida. Daniel toma simples, eficazes medidas para devolver a vida aos trilhos. Ele retoma os estudos com o objetivo de prestar novos concursos e deixar o trabalho meramente administrativo no setor de cargas. Também se aproxima dos passageiros, a maioria formada por estudantes de um colégio público de Jersey que voltavam das férias em Orlando quando da ocorrência do acidente. Dentre tanta gente nova, ele imediatamente gosta de SUNTEE (ANDREW JACOBS), que se torna um de seus melhores aliados. A disposição de Daniel contagia os novos amigos, e logo ele se vê dividindo o tempo entre a rotina no serviço de carga, os sábados à noite com os amigos e os períodos de folga, quando estuda com os rapazes para um determinado concurso por vir.

Daniel recebe o e-mail de uma garota que se apresenta como Simone. Ela se introduz como uma amiga oriunda da época na qual morara em Cape May. Explica que resolveu procurá-lo após ter conhecido as matérias sobre o salvamento dos passageiros do avião da American AirlinesDaniel hesita em responder, mas o primeiro contato principia uma inocente troca virtual. Simultaneamente, movido pela curiosidade, Daniel apresenta a Suntee as fotos enviadas por Simone. Após uma minuciosa pesquisa, o rapaz não encontra rastros que o leve a algum outro site na internet onde os arquivos reapareçam, o que significa que talvez a garota seja mesmo quem declara ser. Suntee acredita, todavia, que pelas impressões mais genéricas do perfil na rede social, algo não bate com o que a moça diz.

Aproximadamente na mesma época, Daniel & Gladys recebem a visita de uma atriz do cinema independente chamada PARKER COWAN (JENNIFER CONNELLY). Inicialmente se aproximando como parente de um dos passageiros a bordo para expressar gratidão, ela levanta suspeita, e Daniel logo compreende que Parker se serviu da mentira para reaproximar-se: na verdade, Parker é uma figura importante do passado em Cape May, cuja envergadura ele não consegue precisar. Parker & Daniel se apaixonam à medida que retomam o relacionamento de onde haviam deixado. Encorajado por ParkerGladys, Suntee Giro, ele retorna a Cape May, numa tentativa de reavivar as lembranças perdidas. Não apenas as imagens de seu último ano em Cape May, 2004, passam a ganhar nitidez, Daniel começa a enxergar melhor o que veio ainda antes, e compreende que suas dificuldades de vida atrelam-se a uma série de eventos misteriosos concatenados a partir de 1994, aproximadamente, durante a primeira adolescência.

À medida que se aproxima da verdade inerente ao acidente que quase lhe custou a vida, Daniel atrai a atenção de ROBYN CORLISS (RACHEL McADAMS), a irmã de Parker, que parece esconder mais do que revela. De alguma maneira, o acidente de Daniel em 2004 caminha de mãos dadas ao misterioso suicídio de um garoto local filho de uma família muito rica, um rapaz chamado AARON LANG (BRANDON ROUTH), justamente o ex-namorado de RobynDaniel jamais conheceu ou se relacionou com Robyn antes. Ou será que conheceu

O ELENCO: Assim como fiz com meu trabalho anterior, vinculei cada personagem ao ator ou à atriz que enxerguei na minha mente durante a escrita do enredo. Naturalmente, quando um escritor pensa numa estória, não há limites temporais para atrapalhá-lo e, por isso, embora tenha visto Burt Reynolds como o Daniel Legrand desta estória, refiro-me à sua pessoa no ano de 1979, o ano no qual eu nasci, o ano no qual ele estrelou "Starting Over". O mesmo vale para os demais personagens. Naturalmente, como um exercício de imaginação, um trabalho escrito detém asas para voar quão alto o autor deseje. Na vida real, a não ser pela intervenção de uma máquina do tempo, rodar um filme idêntico à proposta seria impossível, mas na mente, que é a única parte de si da qual realmente somos donos, as pessoas das quais você gosta sempre se encontram na idade certa para lhe dizer aquilo que você precisa ouvir, quando você precisa ouvir.

O papel de Parker foi escrito na medida para a talentosa atriz Jennifer Connelly, minha "chorona" predileta. Ela sempre se saiu excelente nos papéis da melhor amiga que amou, mas não foi correspondida, ou o da namorada sofredora cujos olhos entristecidos já viram de tudo e escondem pesadíssimos segredos para poupar o amado. Na minha estória, ela se aventuraria por searas onde acho que se sairia bem. Interessam-me as nuances que teria de descobrir no repertório dramático para expressar as camadas de cizânias e sombras da personagem desta trama. Ela sempre me pareceu magnética, desde o começo, em 1985, em "Phenomena", de Dario Argento, Após o início dos anos 90, jamais veremos uma presença tão intrigante. Rachel McAdams & Whitney Able incorporariam os monstros para o herói de Burt Reynolds. Conforme aprendi com filmes do diretor Paul Verhoeven, vilões nos marcam muito mais quando não inteiramente perversos e principalmente se, em vez de um único, tivermos dois antagonistas, cuja interação justifica seus motivos, sem a necessidade de superexposição. Foi o Sr. Verhoeven quem dirigiu um de meus filmes preferidos, "Showgirls", de 1995, onde a atenção principal era disputada pelas duas "vilãs" vividas por Elizabeth Berkley & Gina Gershon. Creio que a dinâmica entre a Robyn Corliss e a Bobbi Chapman de "Madrugadas Felinas" muito devem ao filme dirigido pelo Sr. Verhoeven.

Rachel McAdams ocorreu-me já no primeiro segundo quando comecei a pensar de onde vinha a Robyn. Eu me lembrei de seu mais celebrado momento, "Diário de uma Paixão". Ela se equilibra sobre dois mundos, com um pé numa estória de amor como a de seu filme mais famoso, e com o outro nas raias do horror sobre o qual Clive Barker escreve tão perfeitamente. Esse papel seria o de uma artista capaz de revezar pureza desinteressada e romântica com a frieza maquiavélica de Deborah Unger & Genevieve Bujold, as vilãs de "Estranhos Prazeres"Gêmeos Mórbida Semelhança", ícones femininos que elevaram os dois thrillers de Cronenberg ao panteão da tragédia psicológica. Whitney Able seria Bobbi Chapman, a "segunda em comando" na hierarquia das vilãs. Whitney Able me deixou uma forte impressão no extraordinário filme independente de ficção-científica "Monstros", do diretor Gareth Edwards. Ela também foi fenomenal no independente "Dark", de 2015; uma performance corajosa, desnudada de vergonhas ou inseguranças com idade ou identidade corporal.

Andrew Jacobs fez sua estreia no excelente "Atividade Paranormal: Marcados pelo Mal". O filme deve muito do sucesso às novidades trazidas por Jacobs e colegas à fórmula, reinventando-a com bom humor e originalidade. Apesar de "Atividade Paranormal: Marcados pelo Mal" caber ao gênero horror, oferece algo a mais, talvez certa nostalgia ao adotar como seus protagonistas jovens aos 17, 18 anos de idade. Todos já estivemos lá, não é verdade? A expectativa pelo futuro, as aventuras, as amizades que jamais irão terminar, os amores não correspondidos. Tais elementos só parecem familiares porque seus astros não só desempenharam bem os papéis, mas também ofereceram algo a mais em termos de carisma, que ao menos para mim funcionou, deixando-me com certa nostalgia por uma época em especial de minha vida. Quando escrevi Suntee, o amigo em quem Daniel vê muito de si, pensei em Jacobs. Ele reúne humor e carisma na dose certa e a sua interpretação jamais pareceria muito introvertida ou espalhafatosa, mas sempre na medida certa, considerando que Suntee é um garoto aos 18 anos.
Steven Seagal (Giro) & Whitney ABle (Bobbi).
Em comum, Burt Reynolds & Steven Seagal carregaram consigo o estigma de heróis de filmes de ação, mas no caso de Burt Reynolds, houve oportunidades pontuais onde pôde provar o talento dramático. Assim que comecei a escrever o Daniel Legrand de "Madrugadas Felinas", pensei no seu desempenho em "Starting Over", a comédia romântica de 1979 dirigida por Alan J. Pakula. Na época, Burt Reynolds era o Campeão de Bilheteria da América. Curiosamente, os diretores mais respeitados (com a notável exceção de Sidney Lumet) não o viam como ator de profundidade dramática. "Starting Over" contava a estória de um professor universitário introvertido, vivido por Reynolds, que, tendo sido traído pela esposa (Candice Bergen, indicada ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante em 1979 por esse filme), muda-se para a casa do irmão e começa a paquerar uma tímida garota local (Jill Clayburgh, também indicada ao Oscar) que também já sofreu sua cota de desapontamentos amorosos. Previsivelmente, os dois se apaixonam, mas um difícil obstáculo se opõe ao caminho para a felicidade, pois a ex-mulher reaparece com o intento de reatar. Em sua biografia "My Life", lançada em 1994, o ator discorreu sobre a dificuldade de romper com a imagem de herói machão e cínico dos filmes de ação que o haviam tornado astro entre 1973 e 1978, para interpretar o personagem que, nos termos do próprio, mais se assemelhava a quem ele era na vida real. Ele conta que o diretor Alan J. Pakula não o queria, pois tinha em mente atores "mais sérios", mais intelectualizados, artistas nova-iorquinos estilo Dustin Hoffman & Robert De Niro. Quando Reynolds foi discutir o projeto com Pakula, tudo o que conseguiu do cineasta foi um convite para um teste de cena. Reynolds escreve que Pakula ofereceu o teste justamente na tentativa de se desvencilhar de sua insistência: como disse, à época, Burt era Campeão de Bilheteria, e Campeões de Bilheteria não precisam se submeter a testes. Pakula o ofereceu já esperando que Burt se negasse e desistisse. A resposta de Burt deixou o diretor admirado, pois ele não apenas topou fazer a audição, foi avaliado em três ocasiões, ao fim das quais conseguiu o papel. Durante as filmagens, ele surpreendeu demasiadamente o cineasta, que ao término de cada dia de trabalho, batia à porta do trailer para dizer "Burt, você foi muito bem, mas pode fazer melhor!". "Starting Over" foi lançado nos cinemas no final de 1979, e recebido com muitos elogios. Alan J. Pakula aplaudiu a performance do ator, que lhe deu o desempenho que julgara ser  capaz de arrancar somente de "atores intelectualizados".
Andrew Jacobs (Suntee) & Brandon Routh (Aaron Lang).
Diferente de Burt Reynolds, a Steven Seagal nunca foi conferida a oportunidade de explorar o desafio de personagens menos explosivos e mais introvertidos. Apesar de apreciar seus filmes, mesmo os mais simples, rodados para o mercado direto-para-vídeo, compreendo que jamais lhe foi entregue um roteiro onde seu personagem pudesse mostrar a humanidade que só pareceria real se Steven conseguisse desempenhar o papel com foco e comprometimento. Eu o imaginei como o Giro de "Madrugadas Felinas" porque aqui poderia ocupar a parte de mentor e melhor amigo, papel no qual você jamais o viu antes, mas que mesmo assim sente que ele faria algo memorável. Em um típico filme estrelado por Burt Reynolds, suponho que esse personagem teria ficado com o veterano Charles Durning. Aqui, eu verdadeiramente enxerguei Steven Seagal.  Cresci vendo seus filmes e as minhas mais felizes recordações remontam `a época em que via suas loucuras nos cinemas, com meus amigos, aos 15 anos. Estou falando de 1993-1999, a era em que reinou nas bilheterias. Hoje, quando o vejo mais velho em produções mais humildes, lembro-me daquele tempo com muita saudade. Adoraria lhe oferecer um papel no qual pudesse surpreender críticos esnobes com um tipo de desempenho do qual muitos acham que ele não seja capaz. Durante a concepção da trama, Giro sempre vinha aos meus pensamentos na forma de um Steven Seagal franzino, como em "Nico Acima da Lei", porém de óculos e mais velho. Essa reapresentação mais vintage de Seagal iria revesti-los dos elementos vitais para compor com maestria o personagem criado exclusivamente para sua pessoa, pois, quando escrevia Giro, pensava a todo instante naquele a quem amo e respeito - Padre Paulo Ricardo - e para quem desejava escrever uma versão fictícia de quem, nessa trama de suspense e medo, irradiasse bondade, palavras sensatas e a presença luminosa de meu querido.

Quando assisti a "Hellraiser", de Clive Barker, pela primeira vez, eu era uma criança. A experiência me deixou profundamente impressionado; nada até então me acertara com tamanha agressividade. Ao longo dos anos, desde então, enquanto ia crescendo, sempre revisitava as imagens e os segredos que haviam queimado tão pesadamente em minha mente, sendo que aquelas coisas iam adquirindo novos significados, a cada ano. CLARE HIGGINS tinha 32 anos e Clive Barker 35 quando o filme foi rodado, em 1987 e, para mim, décadas antes da existência da internet, quando tudo o que se tinha era uma ou outra matéria nas revistas de cinema, ambos reuniam qualidades portentosas, pessoas misteriosas responsáveis por aquela estória que tão radicalmente me pusera a pensar. Nas poucas fotos de Barker, todas elas elegantes e belas peças publicitárias feitas na esteira do lançamento do filme original, ele perdurou como o autor por trás de "Hellraiser" e aquelas estórias fantásticas do "Livros de Sangue", que calhava de ser idêntico ao ator Hugh Grant no filme "Maurice". De Clare Higgins, detalhes como o blazer com ombreiras, o cabelo e a maquiagem dos anos 80 a preservaram num âmbar, na verdade nada mais que o choque do primeiro olhar, especialmente quando a pessoa ou evento é capturado pelas lentes da criança, incapaz de processar as camadas de dubiedades e mistérios do mundo adulto. No tempo no qual entraram em minha vida como ícones, eu era um menino de sete anos, observando com fascínio a duas pessoas adultas, capturado pelo magnetismo do perigo e elegância de suas meras presenças. Aqueles adultos tão grandes e sérios teriam me suspendido no colo facilmente, como se segurassem um bichinho pequeno; hoje, entretanto, aos 43 anos, seria eu quem poderia levá-los nos braços simultaneamente, e aquilo outrora tão sensual e inalcançável se transformou na vulnerabilidade que desperta a compaixão e o amor pelos mais velhos. Agora, como uma senhora velhinha, a figura de Clare Higgins vestiria bem o papel da avó em "Madrugadas Felinas"; para trás ficaram o estranho erotismo e o bizarro apelo das peças de adoração fetichista, para a frente restou o essencial, as coisas que a passagem de tempo não apaga, como o amor por um neto e a santificação da vida quando se dedica a mesma ao lar, tornados concretos na personagem Gladys.

Brandon Routh e Danny Dyer ficam com dois personagens vitais para o desvendamento da trama; Routh como Aaron LangDyer como Allen CorlissBrandon Routh ficou famoso por causa de Superman, o papel ao qual é instantaneamente associado. Algo na concepção de Aaron aproxima-se da imagem icônica de Superman, pois é o garoto de ouro, o herdeiro nascido em berço esplêndido, destinado a grandes coisas. Astro dos esportes no colégio, excelente estudante e cobiçado pelas meninas da região, Aaron incorpora a vitória do sonho americano. Logo, o fato de se tornar a primeira vítima de inomináveis horrores funciona como um duro golpe: se o personagem emblema da fantasia de sucesso vira pó sob o peso da engenhosidade de vingança colocada em movimento pela vilã principal, todos os outros personagens também estarão "na chuva para se molhar" e correrão os mais incalculáveis riscos até o desfecho. Apesar de surgir em flashbacks, um patético e trágico fantasma no passado de DanielAaron Lang é peça imprescindível para a compreensão da peça que o destino preparou para Parker, Robyn & DanielDanny Dyer é um astro britânico que atuou em alguns dos mais empolgantes filmes ingleses dos últimos anos. Cito duas joias do cinema europeu protagonizadas por Dyer - "Football Factory" & "Outlaw" - filmes que chamaram atenção e apresentaram o carismático Dyer como hooligan volátil. Eu o escalei como Allen Corliss, esposo e melhor amigo da Robyn, porque pude antever, mentalmente, a química entre os dois atores nas cenas mais ternas, os momentos que pedem amor e incondicional companheirismo. Ao lado da Bobbi de Whitney Ableele é uma das pernas de sustentação para Robyn, e suas cenas com a esposa servem para pintar um retrato mais doce da vilã do filme.

O INSPETOR DIEUDONNÉ (CHRISTOPHER LAMBERT) não existia na primeira versão. Ao reescrever a trama, eu o criei como aliado de Daniel, e um tipo de "substituto legal" do leitor, afinal, assim como a nós, em nossa busca pela verdade num emaranhado de mistérios, sua confusão representa a do leitor, até que a verdade seja exposta à luz. Agente do MI6, Dieudonné entra na trama ao investigar brutais assassinatos a machadadas em Londres: ao passo que seus superiores acreditem na existência de um serial killer anônimo, ele nunca se conformou com a versão oficial, nada lhe sacando da mente o possível envolvimento de Bobbi Chapman, uma estrela pop vinda de uma poderosa família da máfia, no cometimento das barbaridades. Ela não seria uma serial killer, mas teria se esforçado para criar a ilusão de um assassino em série, operante na região. O que ela buscava? É quando ele vê o forte elo entre Bobbi e Robyn que Dieudonné parte para a ação nos Estados Unidos, mais exatamente em Cape May, o que o leva à pessoa de Daniel como a peça principal deste xadrez. Um daqueles rostos queridos de minha infância, nunca me esqueci do quanto gostava dos filmes de ação de Christopher Lambert. Dele, emanava o charme do velho continente, do velho mundo, um glamour europeu de maturação semelhante à do vinho, quanto mais maduro, melhor! A voz, a presença, a autoridade para a ação... Para "Madrugadas Felinas", a Christopher Lambert eu daria só uma orientação: apenas seja você mesmo. E lhe bastaria essa orientação por parte do diretor para tornar real aquilo que foi pensado na escrita.

Eu me lembro de mim, deixando o cinema aos quinze anos, no segundo semestre de 1995, após a sessão das 23:00 do circuito de arte para o filme "
Fervura Máxima"; eu me recordo de como, após uma experiência tão eletrizante, até o céu parecia magicamente reinventado, coberto pelo manto estrelado de uma romântica noite, hoje tão afastada. Naquele tempo, em 1995, sabendo tão pouco do mundo, achava que o sonho de uma vida seria crescer para virar o diretor John Woo, só para colocar num filme tão marcante quanto "A Better Tomorrow" & "Fervura Máxima" aquela gente que, à época, era a coisa mais importante no mundo de um adolescente o qual amava cinema: Burt Reynolds, Jennifer Connelly, a Clare Higgins, foram tantos. Felizmente, às vezes, a melhor coisa que Deus faz é não nos dar aquilo que, quando jovens, julgamos equivocadamente uma desejável meta de vida. Por mais que tenha amado aquelas coisas lá atrás, para mim, hoje, preferiria mesmo permanecer cuidando dos gatos de rua na praia a virar John Woo, David Cronenberg, Clive Barker, John Boorman ou qualquer outra pessoa a qual, aos olhos de um garoto, assomava-se como a forma da vitória. No anonimato e no abraçar a cruz do dia a dia esconde-se, insuspeita, a felicidade, não nos filmes pensados pelos outros; entretanto, ao mesmo tempo, já que eu não virei John Woo e não pude dar a eles o meu filme estrelando Burt Reynolds, ao menos lhes dei minha estória "Madrugadas Felinas", que também acabou se tornando o "meu filme", do qual pude ser seu diretor, e o qual Burt Reynolds pôde estrelar exatamente como eu o conservei na memória, quando apareceu - e jamais foi tão excitante quanto, posteriormente - em "Starting Over". E, independente do que tenha acontecido à sua carreira, aqui, perdura imutável  a persona daquele período em particular, - 1979, quando ele protagonizou "Starting Over", o qual também foi o ano em que nasci, - que também é a persona do protagonista pensado por mim. Burt Reynolds era Daniel Legrand antes mesmo de Daniel Legrand existir. Sempre foi ele, o tempo inteiro. Com reverência e carinho, deixo essa história que sempre será o filme estrelado por ele, e somente ele.



Este trabalho é dedicado a Richard Anthony Fry.
Que sempre será minha melhor esperança e maior realização.



Ele se chamava Daniel Legrand, e estava de pé, desocupado diante de um dos hangares de serviço, benevolente com a preguiça momentânea, compreensivo lapso de um trabalhador que embora apreciasse o ofício, vira o suficiente para se desapontar e perder parte do encanto com que começara a operar na carga. Havia sempre um elemento sensacional e inédito, entretanto, em se experimentar a chegada de uma nova manhã às margens da pista do Liberty. Fizera-o pela primeira vez há seis anos, com a cabeça cheia de fantasias. Desde então, à medida que a inocência esvaindo, repetia a prece ao céu aquoso e tingido por azul anil, jurando romper com o próprio conformismo e juntar as peças do quebra-cabeça que era sua vida. Seis anos haviam se passado, todavia, e a cada novo "compromisso", o ímpeto morria tão rápido quanto a madrugada perdia o protagonismo para a retomada da manhã. Os dias seguiam sem novidade, o romantismo do passado mera promessa, jamais vingada. Ia assistindo aos próprios sonhos de um lugar cada vez mais afastado do meio-fio, sonhos os quais desfilavam junto à "banda" de passagem por ali, ao alcance dos olhos, mas para além do toque. "Eu cheguei aos trinta, e não fiz nada da minha vida", costumava dizer `a avó Gladys, com lágrimas nos olhos. E então, o curso de sua trajetória foi desviado com a violência de uma tesoura de vento.

"Meu Deus, o avião vai derivar!", Daniel disse a si ao assistir ao Boeing da American Airlines ser súbita e gradualmente alavancado para a esquerda, puxado em toda a sua envergadura pela ação de uma fortíssima corrente de vento assim que o trem de pouso tocou a pista. Os pneus rasgaram o asfalto com um berro e o gigante de asas seguiu como expresso fumegante e furioso pista afora, "descalçado" pelo estrago nos trens. Legrand compreendeu que era certo: o avião avançaria para além dos limites do aeroporto. Foi o que aconteceu, muito embora não tenha visto o choque final, pois o agente portuário arrancou com a caminhonete, fazendo os pneus cantarem ao acelerar no sentido da cabeceira como se sua vida dependesse disso. Enquanto tateava o bagunçado assento do carona `a procura do celular, escondido em algum lugar entre notas fiscais amassadas, tickets de estacionamento e uma garrafa térmica de tampa desatarraxada, o estrondo mais `a frente atingiu-o em todo o seu horror. Por um ínfimo espaço de tempo, o intervalo de os olhos deixarem a marcha para voltarem ao painel, acreditou que o Boeing tivesse explodido.


Felizmente, não aconteceu nada parecido. Mesmo assim, o avião via-se em apuros. O trem de pouso fora arrancado na raiz ao ultrapassar a cabeceira, e agora a aeronave parecia um charuto dobrado, as pontas das asas formando um ângulo agudo com o solo, a extremidade direita apontando para o céu, como um colosso derrotado e agonizante pedindo clemência antes do golpe fulminante. O barulho das turbinas era magnífico, mas Legrand tinha somente a audição de um dos ouvidos, o que, de uma esquisita maneira, beneficiou-o naquela situação. Ele freou a caminhonete e saiu escorregando em "escorregador" pela cabeceira até chegar ao gramado molhado. A cena adiante vestia uma qualidade quase surreal. Pôs a cabeça para dentro por uma das aberturas produzidas pela batida desajeitada na pista, precisava examinar o corredor da cabine de passageiros de um dos lados do "charuto", ambos semelhantes a túneis quase tomados pela escuridão, não fosse o azulado doentio da gélida manhã que encontrava meios para burlar o negrume. Alguns bancos tinham sido soltos e havia itens de bagagem no corredor. Com desapego pela própria vida, Daniel pôs em movimento o improvisado plano para salvar os passageiros, arrastando as pessoas que conseguisse até que morresse junto aos que não tivesse como retirar. Não havia estratégia, apenas voluntarismo e coragem.

Legrand segurou os mais assustados. Suportando-os sobre os ombros, conduziu-os ao longo de corredores até a saída de emergência a desembocar no segmento de asa em contato com o solo. Pela posição em que o Boeing repousara, descer pela asa funcionava como deslizar por um escorregador. Daniel carregava as pessoas mais feridas, acomodava-as ali próximo à asa, preparava-as para a descida suave pela face da mesma e retornava para o interior. Não tinha mais o casaco, que rasgara para fazer uma corda improvisada utilizada para escalar mais facilmente a asa do Boeing a cada nova rodada de resgate. Quando se deu conta, tirara pouco mais de cinquenta passageiros, aeromoças e comissários. Os passageiros eram, na maioria, compostos por jovens voltando da Flórida. Depois de retornar para a cabine de passageiros para se certificar de que ninguém ficara para trás, Legrand percebeu as chamas engolfando a cauda, pelo buraco na fuselagem da cozinha.

Daniel desceu pelo buraco da cozinha e traçou uma corrida em semicírculo de amplo raio, contornando o corpanzil do Boeing a uma distância prudente para não respirar ar tóxico. Uma das turbinas ainda girava a meia-velocidade, produzindo um ronco semelhante ao de trombetas desafinadas atropelando-se pelo acorde mais escandaloso. Passageiros acenaram e gritaram para que Legrand se afastasse de vez. Daniel apontou para a cabine dos pilotos, indicando que precisava terminar o trabalho. Da cabeceira da pista onde o Boeing imprimira as borrachas dos pneus, vinham os gritos de bombeiros tentando passar instruções, mas os passageiros se mostraram pouco interessados em sair dali. Precisavam ver Legrand a salvo. Daniel destruiu a janela da cabine com três chutes precisos e puxou os dois pilotos pelos pulsos. Apoiava-os com os braços ao redor das cinturas e os conduzia à área para onde levara os passageiros salvos. Ao olhar para trás, Daniel encontrou os dois pedaços do avião envoltos por chamas e os bombeiros contornando os destroços para estudar por onde começariam a direcionar as potentes mangueiras. Mal sentia os joelhos, as pernas não obedeciam ao comando. Um trôpego Daniel desabou pesadamente entre os garotos da excursão. Ainda conseguiu sentir mãos vindo para cima do corpo, cuidando e socorrendo, uma sensação reconfortante antes de ceder ao cansaço e apagar. Quando acordou e se deu conta de estar sob a vigília da garotada que salvara, flashes pipocando pela janela da porta, do outro lado, compreendeu que o sossego de sua vida pretérita terminara.

01. Eu estava quase adormecido; mas meu coração vigiava.

Ou melhor, foi assim que a vida começou a preparar seu encontro com o destino, a caminhada ao  ringue onde em cujas cordas seria lançado após a sequência mais terrível dos golpes vindos  de Robyn, as cordas que ironicamente o impediriam de ser lançado para fora e onde se apoiaria desesperadamente para não deixar que a luta terminasse antes do desfecho, antes do escoamento dos ponteiros, antes da contagem dos últimos dez segundos quando levaria todos os murros possíveis no rosto ensanguentado, convidando-a: "Dê-me seu melhor!". Tinham chegado a Elizabeth há seis anos, neto e avó; ele sem passado. Durante os seis anos, acomodara-se às direções a que os ventos o atiravam, mas então, naquele Natal de 2009, o Boeing da American Airlines caiu dos céus "em cima do seu colo". Não fosse pela ação do "pista" na cabeceira, dificilmente teria saído por mérito próprio do limbo no qual fora atirado e, principalmente, feito tantos amigos numa única manhã. Ele não se acostumaria `a atenção dos jornalistas e suas câmeras, porém sabia que o assédio não duraria, e a novidade de se sentir integrado a uma nova turma representava uma novidade que o lançava de volta ao jogo. De alguns rostos, Legrand se recordava, mas havia outros envoltos pela confusão do resgate. Os jovens presentes no quarto o receberam com sorrisos e aplausos. Confuso, Daniel procurou a avó. Tão distraído se encontrava, demorou a perceber que a senhora se encontrava um pouco atrás e ao lado da cabeceira, segurando sua mão direita, por onde entrava a sonda intravenosa. Demoraria a memorizar nomes, e devia faltar metade da turma. Aqueles que tinham aparecido alternavam-se entre o corredor, o salão de espera e o quarto. O pessoal do aeroporto também aguardava a oportunidade para conversar com Daniel. Quando a porta foi empurrada pelo médico em ingresso, também veio o rumor da horda de curiosos. Uma enfermeira tratou de fechá-la apressadamente. Visivelmente preocupado, o cavalheiro metido em jaleco branco determinou:

- Precisamos deixar o nosso homem descansar, meu povo. - Disse, com um sorriso cordato. - Vocês terão o tempo do mundo para se conhecerem! - A ordem foi recebida com a lamúria geral, mas a turma não tinha como se opor. Um dos rapazes inclinou-se ao lado do paciente para lhe falar em reservado. Daniel se recordava bem do garoto. Mesmo depois de tê-lo arrastado para fora do Boeing, fora o mesmo que retornara para auxiliá-lo com os passageiros restantes. 
- Voltaremos para visitá-lo, meu patrão. - Ele prometeu. - Compreendemos que não é uma boa hora, mas estávamos ansiosos para vê-lo. Obrigado por tudo.
- Foi uma honra! - Apertou-lhe as mãos, comovido. Por sobre os ombros do interlocutor, os demais garotos pareciam tão atentos e emocionados quanto os dois. Ainda assim, na cabeça de Daniel, só existia lugar para a avó e Cyrano. Ele cumprimentou os demais com um aceno de cabeça e, no mesmo segundo, ponderou com muito bom humor que jamais se comportara tão elegantemente. 

Restaram somente médico, paciente e avó. Daniel tentou se levantar. O médico não deixou, e incrementou a inclinação da cabeceira para melhor acomodá-lo de modo a não se esforçar para buscar qualquer coisa na mesa. Ele não compreendia por que fora parar no hospital. Não se recordava de ferimento mais grave, apenas do cansaço absurdo. Daniel tivera o princípio de um ataque cardíaco, o doutor explicou, com um sorriso suave, minimizador do impacto do terrível termo. Ele estava fora de risco, mas precisava permanecer por um dia em observação. Os olhos da avó enchiam-se, aquosos e emocionados. O médico a assegurou de que o pior passara. Do televisor preso ao suporte, chegavam entradas de última hora sobre o acontecido no Liberty. Imagens da manhã mostravam os dois pedaços do Boeing sendo retirados por duas carretas que os arrastavam à tração, uma operação tecnicamente dificílima para que a estrutura restasse preservada. Não havia vítimas fatais. Num quadrinho menor no canto direito, uma foto de Daniel. Forçou a vista, não se recordou de quando fora tirada. 

- Estão falando de você em todos os lugares. - O médico contou, saboreando a confusa e grata surpresa a incandescer o rosto do paciente. -  Por ora, evite televisão. - O médico a desligou pelo controle e as imagens reduziram-se com o silêncio, minimizando-se numa linha horizontal que desapareceu com uma brevíssima centelha. - Amanhã, deve voltar para casa. 
- Quanto tempo estive fora? - Perguntou, confuso, lançando olhares para a avó e ao doutor.
- Um dia se passou desde a confusão. Você ficou desacordado por um dia inteiro, Daniel, mas foi por causa dos remédios que te demos. Precisávamos te estabilizar. 
- Oh, entendo. - Ditou, mais para si do que para o médico. Levantou-se e foi caminhando à janela. Era um dia muito frio, Nova Jersey coberta por lençóis suaves e perfeitos de neve, a cidade sob um céu cinzento. A sua própria maneira, era um charmoso fim de tarde. Daniel ficou chocado com a multidão agregada no jardim da frente, em estilo francês, de geometria e esmerada simetria, e os repórteres falando às câmeras no coreto da pracinha mais atrás. Ele levou as mãos à lâmina de vidro da janela, ansiando pelo contato com o frio, por algo que o fizesse se sentir ressuscitado. A sensação que tomou conta do corpo foi maravilhosa. Por um momento, pôde sentir o cheiro refrescante do orvalho, típico das manhãs muito geladas quando caminhava à margem da pista antes de se reunir aos colegas para o café improvisado no terminal. - Tudo bem. Já estive apagado por tempo maior.
- Como assim? - O médico o deixou à vontade para elaborar, interessado.
- Não é nada. - A avó se intrometeu. - Obrigada pela sua atenção, não sei o que seria de...
- Tem um grande neto! - Fez o positivo com o polegar. - Já deu certo!
- Doutor, não lhe seria possível me liberar já hoje? - Daniel tentou, mas o médico respondeu em negativo, com um sorriso paterno. - Não quero deixá-la sozinha. - Apontou para a avó com o polegar. - Uma vez, deixou o gás ligado, desatenta. Preocupo-me com vovó.
- Senhora, depois de tudo, seu neto só consegue mesmo pensar nos outros. - O homem pendurou o estetoscópio no pescoço, dando-lhe um tapinha no ombro e finalizando a infrutífera negociação. - Preciso mantê-lo por mais um dia, amigo. Amanhã, voltará para casa. E a senhora... - Ele se voltou à Gladys para brincar um pouco e esvaziar a tensão. - Trate de prestar atenção no gás de cozinha! - Eles riram. 

O médico os deixou sós. Reconfortado pela bem-vinda privacidade, Daniel abraçou a senhora e os dois se sentaram à mesa num canto do quarto. As paredes bege davam ao lugar a intimidade que convidava ao relaxamento. Mesmo simples, parecia uma reservada e segura fuga, alheia `a loucura em curso externamente. Havia uma garrafa térmica deixada com copinhos para bebida quente. O sabor e o aroma do café jamais haviam sido capturados tão saborosamente pelos sentidos. Os dois não tiveram muito o que conversar, mas precisavam do momento. Ambos estavam jubilosos, porém as coisas ainda pareciam um tanto quanto surreais. 

- E então... - Daniel começou, incerto, até pensar novamente no Cyrano. - Cadê o Cyrano? - A avó sacudiu a cabeça com candura, sorrindo e respondendo de pronto.
- Ele está bem! Deixei ração e água! Deve estar morrendo de saudades. Não está acostumado a que passe a noite fora de casa! Cyrano está bem, não se preocupe com isso, querido, preocupe-se conosco, agora!
- Vovó, esse lance aconteceu mesmo?! - Levou as mãos à testa, os olhos bem abertos e surpresos. - Não acredito!
- Aproveite e recupere o tempo perdido. - Ela aconselhou. - Poucas pessoas têm a sorte de fazer algo tão sensacional, Daniel. Faça algo ainda melhor e salve a si.

- Sim. - Daniel deixou a cadeira e ensaiou um hesitante retorno à janela. Preenchido pelo dever de reparação, desejou vestir suas roupas sujas para assaltar a vida o quanto antes, experimentando-a sob distintas lentes. Repentinamente, havia tantas coisas a se ver, a se fazer, e ele não queria desperdiçar um só minuto. - Um fim de tarde tão lindo e o estou perdendo aqui dentro. - Empurrou a janela de correr, deixando a brisa amena  ingressar. 

"Cyrano!", Daniel exclamou ao abrir a portinhola de ferro que o levava caminho adentro do jardinzinho da casa onde morava com a avó. Cyrano, um gato pretinho atrapalhado e gorducho que os cativara por ser um anjinho com trissomia, começou a girar em torno de si e tentar alcançá-lo com as patinhas de garras para fora. Ele correu para os braços do tutor e o cobriu de lambidas, Daniel caindo no meio do caminho e morrendo de rir. "Senti saudades, rapaz". A avó assistiu ao reencontro com as mãos juntas e olhos marejados. Ele procurou pela avó por sobre os ombros e explicou "Não sabe de nada, não poderia se importar menos se estou em matérias de televisão, mas me ama porque eu o amo, e basta. Podemos pedir por amigos melhores?". 

Estivera apenas dois dias fora, mas ao reencontrar suas posses, pareciam "mudadas". Livros, móveis, lâminas de barbear, espumas e loção. Elas ficaram conforme originalmente deixadas na manhã da ação, mas algo se transformara e ele não sabia precisamente o quê. Sentado na esquadria da janela a ligar sala a alpendre, distraia-se assistindo a Cyrano brincar com qualquer coisa no jardim. Sentia as lembranças do cansaço daquela manhã há dois dias, remanescentes na fraqueza dos músculos das coxas e braços. Na introspecção, corria um desnecessário risco. Sabia que quando começava a se deixar levar pelas divagações, geralmente a viagem para dentro de si tendia a terminar mal, até por não compreender onde se fundava a natureza de seus temores e esperanças.

Daniel morava num simpático, aprazível e pacato loteamento logo na entrada de Elizabeth, a menos de dez quilômetros do aeroporto internacional de Newark. Achava que não precisava de mais nada para viver bem. Ia e vinha na caminhonete, de casa para trabalho e o retorno, e muitas vezes antes do sol raiar, no caso da primeira ida, apenas porque apreciava dar a volta pelo entorno do aeroporto antes de se dirigir ao terminal onde se reunia com os rapazes e recebia as instruções do dia. Daniel era "pista", fiscal de pátio, e você o encontraria entre servidores do tipo, aqueles cavalheiros metidos em coletes azuis, balizando aeronaves para estacionamento. A sua função, entretanto, demandava muito mais do que os olhos despreparados levariam a crer. Havia atividades específicas para cada dia, muito embora isso não consistisse uma regra rígida. Nas segundas-feiras, ficava encarregado da inspeção de segurança nos pátios e pistas de pouso e decolagem; nas terças e quartas, assumia a sinalização e operação de pontes aéreas; quintas reservavam-se à fiscalização de abastecimentos; e a melhor parte ficava para as sextas-feiras, quando trabalhava em parceria com Giro na viatura, transitando pelos pátios de manobras, para a inspeção de equipamentos. Quando o Boeing da American Airlines passou por apuros na aterrissagem, quis o destino que estivesse se ocupando da segurança das pistas, daí ter sido o primeiro a avistar o problema da aeronave em aproximação, o que lhe valeu a oportunidade de socorrer passageiros e tripulantes a tempo.

Acomodado na soleira, refletindo sobre o passado que nem era tão passado assim, afinal ocorrera praticamente ontem, Daniel reinterpretava a vida como uma jornada que começara em algum momento no primeiro semestre de 2005, findo o curso de formação e a homologação da aprovação nos testes ao término do treinamento. Tinham sido  apenas duas semanas. Recordava-se nostalgicamente daqueles dias ensolarados como se somados resultassem em décadas. Giro era o veterano responsável por lhe ensinar os macetes do ofício. Também lhe falava coisas lindas sobre Deus e Sua mãe Maria, por mais que, à época, não lhe interessassem tanto. Ao chegar ao Liberty, havia sido Giro, sempre paciente e bem-humorado, o responsável pela sua adaptação aos novos ares. Lembrava-se de detalhes do primeiro dia, da apresentação aos novatos no auditório, evento atendido pelos agentes políticos fortes das autoridades portuárias de Nova York e Nova Jersey, da salada de frutas servida em sequência à cerimônia, na antessala. Recordava-se que fora um dia de sol forte, do cheiro de tabaco dentro da caminhonete ao apanhá-la para dar um pulo em casa no intervalo para o almoço para comer na companhia da avó e lhe contar que era melhor do que imaginara e, para todos os efeitos, o neto estava empregado, a maior alegria de Gladys.

Seis anos tinham se passado desde o almoço com vovó na cozinha escaldante. Sentado na esquadria da mesma janela de onde costumava observar o aeroporto distante, ansioso para terminar o almoço e voltar como quem não queria perder um só momento, reavaliava a vida com os olhos de um homem de trinta, e não mais com os de um menino fora de tempo por causa da tragédia do esquecimento. Sacudiu a cabeça e bateu palmas, chamando Cyrano, louco para que o gato o alegrasse. O médico que cuidara tão bem de Daniel também fora gentil e atencioso, e o hospital havia reportado à imprensa que ele sairia somente no fim de semana, uma pista falsa para manter as câmeras distante. Ramificando-se a partir da estrada que seguia para downtown Newark, uma das vicinais levava diretamente a Elizabeth, e o rapaz conseguia enxergar um carro levantando poeira ao atravessar o amplo loteamento numa velocidade que indicava a ausência de qualquer obstáculo à frente, que não asfalto e solidão, ladeado por ocasionais casinhas do convidativo deserto.

- Você não vai aprender a não me dar trabalho, vai?! - Encontrando alguma dificuldade para sair do carro por causa da emoção, um senhor de meia-idade alto e magro, de óculos, com um grande crucifixo a adornar o peito e uma camisa branca que o deixava parecido a um padre, surgiu, vocalizando a frustração. Daniel saltou da sacada e exclamou.
- Giro! - Correu para o abraço do amigo, preparando-se para o sermão. - Apenas me escute...
- Então em vez de esperar pelos bombeiros jogou-se na linha de fogo? - Deu-lhe um abraço paterno e então o apanhou pela gola da camisa para meter senso na cabeça vazia. - Da próxima vez, por que não se imola e torce para a brigada apagar o fogo a tempo?
- Não entende, Giro, eu não tive alternativa! - Com a mão na nuca do senhor, o rapaz o trouxe para dentro de casa. Giro chegara numa boa hora, e o cheiro do feijão começava a se distinguir, principalmente agora que a avó salpicava a mistura com cebola, salsa e alho, e a mexia com a colher de pau. 

Os três tiveram um almoço maravilhoso e sossegado. Ocasionalmente, Cyrano passeava por entre suas canelas e se esfregava para ganhar um pedacinho de carne dos humanos, e então ia descansar sobre a cadeira de balanço no alpendre, um cochilo que não durava, pois logo repetia o passeio para ganhar novos agrados gostosos. Era uma tarde diametralmente oposta ao dia no hospital. O sol apontava forte; entretanto, o clima jamais cumpria com a promessa do calor insuportável, ficando ligeiramente abaixo. Na verdade, havia morna amenidade na corrente de ar a soprar de Newark, e a mornidão remetia Daniel a aquele dia, seis anos antes, quando aparecera para assumir a vaga no terminal de cargas. Depois de terminarem, os dois amigos foram se sentar no alpendre, e a avó foi coar um cafezinho.

- Você sabe a verdadeira proeza? - Daniel acomodou os pés nas tábuas do parapeito, mirando a estrada distante e, mais além, o aeroporto de Newark, um gigante adormecido que também fazia a sesta. - Retomar a vida normal, colocar o acontecimento para trás.
- Você fez algo extraordinário. Precisa compreender o súbito interesse das pessoas. - Giro analisou, pensativo enquanto dobrava os óculos para guardá-los no bolso da camisa. - Mas há algo mais, ou estou enganado?
- Comecei me sentir assim no hospital. - Comentou o "algo a mais". - Foi como um chamado da vida, dizendo-me que não há mais tempo a desperdiçar.
- Penso o mesmo. - Observou, orgulhosamente. Como um cavalheiro, levantou-se discretamente `a chegada da avó e a ajudou a servir a garrafa térmica e as xícaras sobre a mesinha de tampão de vidro e armação de palha. Depois que a senhora voltou para dentro, os dois se serviram. Giro bebericou de sua xícara cuidadosamente. Pareceu ponderar por um instante e prosseguiu: - Salvar aquelas vidas te obrigou a reavaliar melhor a própria. 
- Eu não tenho feito um bom trabalho com a minha? - Daniel indagou e Giro o respondeu com um olhar confuso. - Desculpe-me, amigo, não queria constrangê-lo a...
- Não, não. - Fez um sorriso compreensivo. - Eu entendo. Você é meu amigo e lhe devo  honestidade, por mais que possa desagradá-lo com meu ponto de vista. - Giro agora pôde dar um gole, o café já estava no ponto a partir do qual podia ser consumido sem sopros. Passou os dedos sobre as linhas de expressão da testa e aprofundou. - Podia fazer muito mais, isso é fato. Você não tem mais vinte e quatro anos, como quando chegou a Elizabeth, mas também não chegou `a minha idade. Aos trinta, há muito a se fazer, mas não tem tempo a perder. Todo trabalho engrandece, mas às vezes sinto que são outras as paragens que lhe esperam, amigo.
- Teria orgulho de chegar a sua idade fazendo o que faz. - Revelou, com doçura, apertando com camaradagem o braço do amigo, que ficou enlevado.
- Tudo bem, eu sei, apenas não quero que faça isso! - Giro inclinou-se, como se fosse contar um segredo. - Não se acomode. O cavalo selado aparece um par de vezes, na vida, e da próxima, não esperará até que caia na real.

Daniel apoiou os ombros em cima do peitoral e permaneceu entretido, estudando a curva mais distante no riscado feito pela borda perolada da pista. A forma como a luz do sol incidia sobre o asfalto criava uma duma dourada e sobrenatural. De algum lugar mais ao sul do loteamento, vinha a sirene da madeireira, anunciando o horário de almoço. Esse era seu simples, modorrento e tedioso mundo. Simultaneamente, ao alcance da vista e além do aeroporto de Newark, ofuscada por cortinas e mais cortinas de ouro polvilhado, na verdade o espetáculo cênico perpetrado pela radiante tarde peneirada por gigantes de concreto, a promessa do sucesso irrealizado, do potencial jamais realizado, no perfil monolítico e elegante de Nova York.

- Cheguei aqui com uma porção de ideias. - Começou, virando-se ao amigo. - Penso em voltar a estudar, a planejar alguns anos à frente. Pela primeira vez em muito tempo, acredito que existe um futuro para mim.
- Você acredita? Pois eu tenho certeza. E agora, você se apercebeu disso, e vive uma crise existencial. - Diagnosticou, com sagacidade. - Tudo bem, é normal. - Giro finalizou o café com um gole curto e preciso, e se juntou ao amigo no peitoral. - Seja o que for que tenha despertado essa chama, mantenha-a acesa. O que pensa em fazer com a vida? Já tem um plano?
- Estudar. - Respondeu, com o sorriso de alguém preparado para ser duvidado. Ao contrário do esperado, Giro o encorajou. - Preparar-me para algum concurso, talvez. Poderia fazer tanto por vovó! Não acha que seja tarde para voltar a estudar, certo, Giro?
- A hora certa para qualquer coisa é aquela na qual decidimos começar. - Giro apoiou, a que o confiante Daniel assentiu, animadamente.

Na segunda-feira, ao voltar à tona, Daniel foi recebido por câmeras vindas de muitas direções, no saguão da entrada, para registrarem o reencontro do herói com a turma da excursão que ele arrancara do avião em chamas. Ao se apresentar à reunião do começo da manhã, o cerimonial da American Airlines o "raptou", e o pôs dentro de uma shuttle. A shuttle o levou ao Marriott, o único serviço de hotelaria operante dentro da região do aeroporto internacional, onde uma recepção fora preparada. Os jovens, cuja faixa etária variava de 16 a 19 anos, compunham-se exclusivamente de estudantes da East Side, uma das várias escolas públicas de Jersey que integravam o distrito reservado `a renovação do ensino público. Os garotos da East Side eram oriundos da classe trabalhadora de Jersey, uma comunidade multiétnica e unida, batizada sob a alcunha de "Ironbound", graças aos trilhos armados no entorno da vizinhança, e pelo fato de os chefes de família tirarem o sustento das indústrias metalúrgicas atuantes na área. Era a vizinhança dos "saloon": os velhos bares resistiam à passagem do tempo, acolhendo trabalhadores exaustos que., após um duro dia de trabalho, antes de tomarem os trilhos de volta `as casas, queriam beber algumas canecas de cerveja e jogar cartas com os companheiros. Ali, nas jukebox, jamais se deixara de escutar Sarah Vaughan, sua mais célebre filha.

Daniel contou quarenta e cinco abraços e apertos de mãos. Ao término da apresentação, sentia-se confuso, porém grato por tantas amizades tão subitamente! Seriam exigidos dele investimento emocional e tempo até conhecê-los por nome, mas adoraria tentar! Pareceram-lhe surpreendentes, os pequenos detalhes que o incitavam a reavaliar a própria vida, a percepção de quão rápido o tempo se passara. Para Legrand, quando os novos amigos se dirigiram a sua pessoa como "Seu Daniel", pareceu impossível que quinze anos tivessem se passado desde que fora um garoto da mesma idade, tão movido a sonhos e motivado por ingenuidades quanto os integrantes da turma. Ele tratou de pedir para que o chamassem de Danny. Assim como demandaria tempo para que associasse nomes a rostos definitivamente, também precisavam se esforçar para o abandono de formalismo artificial e tolo.

Os companheiros de serviços aeroportuários compareceram e festejaram, e a manhã transcorreu aprazivelmente, animada, rica em calor humano. Sentados em torno de uma das mesas no restaurante do hotel, uma pequena multidão se formou ao redor de Daniel. Eles tiveram a oportunidade de trocar impressões sobre a assustadora segunda-feira anterior. `A medida que os convidados foram se despedindo, Daniel os assegurou de que apenas se desejavam "até logo". Mal os conhecia, sabia que não os deserdaria. A promessa de um novo círculo social parecia restaurar a crença que tinha por si, parte da ingenuidade com a qual costumara enxergar a vida um dia, e então fora perdida sem que se tivesse atentado a quando. Tão entretido se encontrava, um dia inteiro se passou despercebidamente. Daniel estava atrás do volante da caminhonete, um dos cotovelos apoiados na janela aberta, a brisa de inverno acariciando-o com o zelo de uma discreta e compreensiva amante, de saltos altos contra sua canela, talvez sob a mesa de algum lugar onde sorrisos e bons modos precisassem ser sustentados em nome da etiqueta. Ao lado e acima, aves animadas migravam para os lados de Nova Jersey em busca de ares mais quentes. 2010 batia `a porta, Daniel Legrand tinha 30 anos, porém era um recém-nascido cuja vida estava para começar. Não imaginava o quão próximo da verdade se encontrava em seus pressentimentos.

Quando o passado começou a emergir para a quitação, Daniel de nada pôde suspeitar. Um mês se passara desde o milagre do voo da American Airlines e ele se readequara `a vida de antes, ou melhor, quase a mesma, agora mais movimentada e recompensadora. A turma da East Side praticamente o obrigara a abrir uma conta na rede social, e ele se sentia inserido num novo meio, com pessoas interessantes, dispostas a ouvi-lo e tê-lo por perto. Daniel memorizara eficientemente os nomes, mas as figuras mais marcantes eram mesmo Suntee e Olívia. Assim como em qualquer turma, na qual existe um líder sagaz, espirituoso e bem-humorado sobre cujos ombros repousa a responsabilidade de manter a coesão de um grupo, a rapaziada da East Side tinha seu representante na figura de Suntee, o observador, compassivo e engraçado criador de casos, que não se contentara em ficar parado assistindo a Daniel colocar solitariamente a vida em jogo e, na manhã da confusão, ajudara Legrand com o resgate. Sempre que Daniel o via, Suntee o abordava cantarolando alguma música da moda, conseguindo risadas de Daniel. Legrand se recordava muito bem de Olívia. Ele se lembrava de como ela tomara sua mão, oferecida entre poltronas enxovalhadas, e fora a seus braços: parecera tão suave quanto um fardo de palha, uma lembrança muito vívida que jamais esqueceria. Ela era muito alva, e Daniel não sabia ainda se não passava de impressão, mas ao falar, fazia-o tão baixinho que sua delicadeza soava como um rondó de caixinha musical aos ouvidos. O jeitão acessível e aberto de Daniel pusera fim `as etiquetas, e logo eles se moviam `a vontade. Nas noites de sábado, despedia-se da avó, e aguardava no alpendre pela chegada dos amigos, quando seguiam para a pizza e o boliche. Giro fora arrastado para a bem-vinda e jovial realidade pelo próprio companheiro de pista. Havia momentos nos quais Daniel estava se divertindo bastante e dando gargalhadas a cada bola que arremessava desastrado pela pista, quando sentia o olhar aprovador e contente de Giro sob sua pessoa, feliz por vê-lo se divertir como nunca. O veterano funcionário da aeroporto também não tinha do que se queixar, se apenas conseguisse sobreviver `as incansáveis piadas feitas em face de seu modo de se conduzir de Giro, que lhes fariam jurar que o homem se tratava de um padre disfarçado! Os rapazes davam gargalhadas, nenhuma delas mais sonora que a de Giro, que lhes perguntava de onde tinham tirado aquele papo de ele ser padre. Era tudo uma grande festa.

A avó fez um belíssimo trabalho de proteger o neto da superexposição. Com o suporte das pessoas cujas vidas haviam sido tocadas por Daniel, ela começou a respirar mais aliviada quando, no início de 2010, os repórteres recrudesceram nas tentativas outrora tão invasivas contra a privacidade do neto. Gladys era a única pessoa, fora o neto, a saber que, muito embora os demais capitulassem sua história entre antes depois dos eventos na cabeceira do aeroporto, a verdadeira cisão ocorrera seis anos antes, em 2004. A parte anterior a 2004 era especialmente dolorosa, e o neto prestara um grande serviço a avó ao evitar perguntas a respeito. Gladys temia que, cortesia da exposição, rostos do passado ressurgissem das sombras de onde avó e neto os haviam deixado. O temor, ela só o teve mitigado um mês mais tarde, quando o frisson da mídia arrefeceu, sem que ninguém do passado aparecesse.

Daniel apreciava as interações na rede social. Ele recebia convites para amizades todos os dias. Havia um momento `a noite no qual abria o perfil para participar de grupos de discussão, adicionar novos contatos e ler e-mails. Ele havia comprado dois volumes de matemática e raciocínio lógico para concursos, e o estudo das matérias consumia suas noites. Balançava-se na rede, revisando capítulos e resolvendo exercícios de provas de concursos anteriores, enquanto Cyrano distraia-se sobre a cama, assistindo `a televisão, deixada ligada pelo tutor em baixo volume. Ocasionalmente, Gladys apontava na porta, orgulhosa, para perguntar se o neto desejava alguma comidinha. Legrand fazia o conhecido sinal, um espaço entre polegar e indicador, sinalizando o quanto apreciaria uma pequena xícara de café. Ao fim da noite de estudo, ao dar conta dos papéis rabiscadas sob a rede, sentia que dera mais um passo rumo ao amanhã.

Ele jamais imaginou que se sentiria vítima de escrutínio virtual, muito menos que seria uma completa estranha a sua admiradora. Especificamente, foi numa quinta-feira na qual tudo começou, muito incipiente; entretanto, somente dois dias mais tarde, começou a se aperceber de que vinha sendo observado. Daniel estava para deletar uma porção de mensagens de spam, quando identificou um e-mail aparentemente genuíno. "Olá, eu sou uma velha amiga sua" era o título da mensagem. Havia tantas coisas a repassar naquela noite que optou por guardar o e-mail para um momento posterior de tédio, talvez. Legrand só voltaria `a caixa postal na madrugada de sábado, tendo chegado do passeio na pizzaria com o pessoal da East Side. Ao entrar em casa, a avó dormia, mas assim como acontecia a quase todas as vezes nas quais saia para passear, deve ter sentido a chegada, pois se levantou cerca de meia hora depois só para perguntar se precisava de algo. A casa encontrava-se mergulhada num delicioso e confortante breu. Luzes, apenas as emanadas pela televisão do quarto. Cyrano sacudia a cauda sobre o travesseiro da cama, o rostinho pincelado pelo azul sem charme vindo da tela. Daniel fez o sinal com o polegar e indicador, e a avó foi preparar o café antes de se recolher para dormir pelo restante da noite. Abastecido de sua xícara, sentou-se na escrivaninha com as costas para a televisão e abriu o notebook. A janela estava semiaberta, um convite à entrada da brisa fresca dos campos desimpedidos, atravessados pelas vias secundárias ramificadas ao longo do eixo da estrada principal ao aeroporto internacional de Newark. Daniel soprou o ar morno dos pulmões dentro das mãos, esfregando-as para encorajamento.

"Olá, eu me chamo Simone, não sei se você se recorda de mim, pois faz muito tempo desde que conversamos pela última vez. Eu fui estagiária na repartição jurídica do escritório de representação da Guarda Costeira, no Departamento de Transporte, estive lá por dois anos. Você era agente administrativo, e...". Era um e-mail extenso, dois parágrafos enormes, repletos de detalhes dos quais Daniel não teria como se recordar. Imediatamente, sentiu um aperto no coração e fechou o computador, num impulso. Seria um mau presságio? Não soube precisar, mas ficou intrigado. Empenhando-se para não fazer barulho, deixou Cyrano distraído com um filme de horror e foi se sentar com a xícara de café na cadeira de balanço do alpendre. Levantou o vidro da lamparina à querosene, riscou o fósforo, aproximou o fogo do pavio e regulou a chama em menor intensidade, o suficiente para pincelar as tábuas do chão em lânguidas gradações ditadas pelo toque da brisa. Não custou a mariposas se achegarem para acompanharem-no em sua vigília. Balançando-se sossegadamente, os olhos não tardaram a pesar e em algum momento entre uma e uma e meia da madrugada acomodou o queixo no peito, adormecido.

Quando despertou, foi o sol radiante a trazê-lo de volta. Acordou com um gosto ruim na boca, a xícara vazia virada, presa a um dos dedos pela asa, encostada às tábuas do alpendre. Ele não se lembrava, mas o sonho fora bom, porque despertara com um sorriso. Na cadeira, parecia um rei cansado, refugiado no esquecimento do trono. Passou as mãos pela testa ardida e consultou o relógio de pulso. Oito horas da manhã. Sendo sábado, não se observava movimento nas unidades habitacionais mais próximas. Gladys ainda cochilava e Daniel deixou a avó seguir no sono imperturbado. Se a acordasse, sabia que ficaria preocupada, correndo para tirar a frigideira do armário e itens da geladeira, para preparar a mesa para o café da manhã. Em vez de incomodá-la, tratou de retribuir o carinho e resolveu arrumar a mesa por si, para que a encontrasse perfeita quando estivesse de pé! Daniel tomou um banho quente, vestiu roupas mais leves e começou o trabalho na cozinha, desde cobrir a mesa com uma toalha nova a preparar comida. Cyrano lhe assistia com um olhar curioso e divertido, balançando a cauda. Enquanto fritava os ovos, sentou-se ao lado do fogão. Dando palmadas nas coxas, convocou o gatinho, que saltou sobre seu colo. Uma manhã gloriosa encontrava-se em marcha, emoldurada pelas janelas escancaradas a darem de frente ao alpendre, suas folhas rangendo discretas num articulado vai-e-vem sobre dobradiças e pivôs gastos. Gladys investigou assustada a cozinha, certamente punindo-se por ter-se permitido dormir até tarde, quando viu o neto terminando de servir à mesa pratos com fatias de queijo e presunto. Daniel fazia companhia à avó e a via comer com gosto, ao tempo em que esboçava mentalmente a maneira mais adequada para abordá-la e perguntar sobre o passado, sobre a vida antes de 2004. Em parte, sabia que cedo ou tarde a conversa precisaria acontecer, e não havia como seguir em frente sem endereçar o que levara neto e avó às margens do aeroporto de NewarkNova York mais além e sempre ao alcance da vista como epítome de uma nova, excitante e convidativa existência. A avó o surpreendeu ao antecipar-se à questão a qual Daniel tanto hesitava abordar. Gladys lia-o muito bem e não precisava de astúcia para deduzir que o neto procuraria saber do passado, sobretudo agora, quando recomeçar lhe era um tema recorrente nas conversas.

- Quando partimos de North Cape May, não deixamos nada enormemente importante para trás. - Ela começou, a voz arrastada pelo grave peso do dever. - Podia ter sido pior, caso fosse casado e tivesse filhos. Uma família teria te prendido para sempre. Felizmente, não havia vínculos suficientemente fortes.
- Recebi uma mensagem de uma moça que se identificou como Simone. Ela escreveu que me conhece da época na qual servi na Guarda Costeira. - Daniel se abriu. Sacudindo levemente a cabeça, com um olhar confuso, continuou. - Não me lembro de nada anterior a 2004, vovó. Ela mencionou "setor jurídico" do Departamento de Transporte, o que faz sentido, pois sei que conclui o curso superior e passei numa prova; entretanto, o resto permanece envolto em sombras. Sinto que preciso saber mais sobre por onde passei, as pessoas que...
- Não está perdendo muita coisa. - Ela deu com os ombros, fazendo parecer desimportante, ou apenas fingindo muito bem a despreocupação. - Quando você sofreu o acidente e perdeu a memória, o que se foi de sua mente não foram coisas a se reativar.
- Mas não é assim, vovó. Eu tinha 24 anos, era só um rapaz. Seis anos se passaram sem que eu parasse para revisitar o que houve e por que aconteceu...
- Que benefício traria? Você retornaria a North Cape May, mas para todos os efeitos, estaria apenas conhecendo uma cidadezinha turística à beira-mar. A vida é aquilo que faz dela no instante em que se fala, Daniel.
- Às vezes, eu receio ter deixado pessoas importantes para...
- Sim, mas e daí? Quando se é jovem, tudo parece demasiadamente sério, porém não é. - Pousou as mãos sobre os ombros do neto. - Mas e quanto a toda essa garotada cujas vidas foram salvas graças `a sua intervenção? Não são amigos em quantidade suficiente? - A avó serviu-se de leite quente à xícara onde já colocara açúcar e café, e mexeu com a colherinha. - Raciocine sensatamente. A maioria daquela gente do seu passado seguiu em frente. As vidas daquelas pessoas se afastaram demasiadamente da nossa. Focaremos no agora. Vamos deixar o passado sossegado no devido lugar: em North Cape May.

Gladys conformou-se com a ideia de que, para proteger o neto, precisava protegê-lo da parte de si desejosa de conhecer intimamente de onde vinha e o que realmente acontecera a ponto de ter deixado North Cape May aos vinte e quatro anos sob proteção federal. Ao longo do sábado, ele se manteve ocupado e aproveitou a tarde para estudar. À tarde, pegou a caminhonete para beber uma cerveja e jogar sinuca com colegas do terminal no bar onde a turma de carga do Liberty costumava confraternizar. Pela noite, revisitava em pensamento o e-mail não inteiramente lido e se sentia dividido entre deletá-lo assim que chegasse a casa e ler até ao fim o que Simone tinha a dizer. "Você era agente administrativo, e eu estava na metade do curso de Direito", uma vez de volta, retomou a leitura, sentindo um nó na garganta, o temor de sacar a censura da história que a avó procurava afastar de seu alcance. "Nós nos demos bem desde o primeiro dia, por mais que nossos colegas achassem surpreendente, a amizade entre um cabeça dura e uma chatinha". Daniel não conteve um sorrisinho meigo. "Eu achava que sabia tudo da vida e que mesmo que você fosse mais velho, não havia nada que tivesse a dizer que eu já não conhecesse. Com o tempo, porém, tudo passou a fazer mais sentido, quando insistia para que eu me focasse em mim e no meu desenvolvimento pessoal". Oh, Deus, Daniel pensou, não tinha ideia consciente de quem era a moça, mas suas palavras o tocavam de uma incomum maneira. Ela falava sobre a sua pessoa e o descrevia como o tipo de cara que adoraria ter sido. Simone seguia com elucubrações sobre a vida que realmente o fizeram refletir, e lamentava pelo distanciamento entre os dois, concluído o estágio e a separação em face das demandas do dia a dia. Os pensamentos se desfocaram quando Cyrano saltou na mesa para se esfregar no seu peito.

- Quer a sua comida, é, ferinha? - Alisou-o entre as orelhas e, com os olhos ainda presos ao monitor, tateou o criado-mudo para apanhar a latinha de ração. Despejou um pouco no pote e Cyrano a devorou vorazmente. Daniel imprimiu o e-mail. Foi na quietude do alpendre, onde mais intensamente a friagem convergia após a passagem pela imensidão das estradas secundárias, onde concluiu a mensagem.

"As suas palavras faziam sentido, e eu me sentia lisonjeada pela atenção. Sinto muito pelo afastamento pois acho que subestimei algo sensacional: a nossa amizade. Quando percebi que passava as mesmas instruções aos demais, que lhes falava sobre a importância de estudo e preservação moral, eu percebi que tipo de pessoa era. Foi somente depois, porém, quando sai para a vida, ao me defrontar com a realidade do mundo, que passei a refletir sobre o que me dissera. Procurei encontrá-lo em North Cape May, mas me contaram sobre o acidente, e que você e a sua avó haviam deixado a cidade. Preferi não incomodá-lo, e quando menos esperava, mais de seis anos se passaram. Quando li nos jornais sobre você e o salvamento dos passageiros e tripulantes do avião da American Airlines, soube que era hora de buscá-lo". O barulho de panelas remexidas entregou a movimentação de Gladys na cozinha. Ela lançou uma pergunta qualquer, mas tão absorto o neto estava, não compreendeu, tampouco prontamente respondeu.

- E então, querido? Uma boa ideia ou não: a torta de frango? - Gladys meteu a cara no vão para insistir na questão. Daniel lentamente voltou-se para a avó, o encanto da leitura momentaneamente perdido.
- Oh... Não, vovó, por favor. Eu adoraria trazer uma pizza para a gente. Hoje é sábado, afinal de contas. - Justificou, com um sorriso fácil, dobrando a folha e a guardando no bolso da camisa. Levantou-se, deu um beijo no rosto de Gladys e avisou. - Vou tomar um banho para me vestir. Não coma a torta, logo estarei de volta com a pizza.

Dominoe's do aeroporto era bem-frequentada, mas nada cheia. Era a pizzaria de escolha, frequentada por sua pessoa em razão da proximidade de casa, deixada de lado uma vez que Daniel e a turma da East Side escolheram uma outra, mais ao centro do distrito de colégios de Elizabeth. Recentemente, a decoração passara por reformas, fitas de led instaladas na parte de baixo dos balcões. Daniel também não se recordava dos cordões de piscas ornamentando a subida espiralada para o segundo nível quando ali estivera pela última vez, há menos de um mês. Ao se encaminhar para a fila para pedir, foi abordado por uma porção de pessoas que o cumprimentaram e o parabenizaram. Sorridente e enrubescido, sentou-se `a mesa de um grupo de universitários enquanto esperava a ordem, compartilhando impressões daquela fantástica manhã na qual o curso de muitas vidas fora desviado. Com graciosidade, tendo recebido a caixa de pizza, precisou se escusar, tomando o caminho de volta para casa.

A placa sinalizava a preferencial. Com um suave giro no volante, Daniel traçou a subida em contorno a guiá-lo ao retorno, Nova York misteriosa e distante a oeste, Elizabeth e sua previsível simplicidade ao norte. Daniel parou no acostamento, abaixou o vidro e restou ensimesmado. Não teria como explicar ao certo por que parara. Desdobrou a folha. Por um momento, a vista correu pelo papel sem realmente se ater a palavras, até retomar a leitura. "Não sei se você se recorda de mim, porém adoraria que me escrevesse. Quando eu o encontrei na internet, e achei que isso não aconteceria pois você sempre foi muito privado, tomei como oportunidade para me introduzir. O tempo não passou só para você; sou madura para não pisar na armadilha revisionista do passado ou das falsas justificativas. Sei que sua amizade foi extraordinária e sinto saudades das coisas que me dizia, e não há razão alguma para deixar essa oportunidade escapar. Realmente aprendi muito a cada dia, ao seu lado, em North Cape May, e gostaria de saber o que tem feito da vida, fora salvar centenas de um avião em chamas! Deixo-o com um beijo carinhoso. Simone". Depois disso, Daniel leu e releu o e-mail impresso uma dúzia de vezes, procurando capturar novos reveladores detalhes a cada passagem de vista. Preocupado, com a cabeça cheia de dúvidas, esqueceu-se das horas. O celular chamou: era a avó, perguntando se já podia devorar Cyrano, pois Daniel a estava impacientando com tanta demora! Ele riu, pediu desculpas, saiu-se com a história de que tinha se atrasado na Dominoe's por causa de alguns amigos de terminal que o haviam convidado `a mesa. Virou a chave, e sinalizou para fora do acostamento, um ato desnecessário, vez que, `aquela hora, seu carro era o único estacionado na imensidão da pista. Ele partiu, imprimindo velocidade.

Distraiu-se com a avó `a mesa, percebendo o quanto sua companhia era tão divertida quanto a do pessoal da East Side. Quando falava sobre os programas de televisão, Gladys era boca suja e engraçada e Daniel morria de rir com suas observações sarcásticas. Não tinha como conhecer profundamente a variedade de coisas a que a avó tinha acesso todas as tardes, pois o trabalho o mantinha preso ao aeroporto de Newark, mas sabia que mesmo tomando conta de casa, regando com dedicação e prazer os vasos e flores do jardim, jogando conversa fora com as comadres ou conversando unilateralmente com Cyrano, a idosa tinha, a seu modo, uma vida preenchida e satisfeita. Às vezes, quando ela não se encontrava fazendo nenhuma das atividades acima, rascunhava os passatempos caça-palavras e palavras-cruzadas, na cadeira de balanço do alpendre. Os dois só contavam praticamente um com o outro e apesar de soar como constatação deprimente, o fato não o deixava se esquecer de sua responsabilidade perante a vida.

A problemática, portanto, passava por um delicado viés. Embora a situação atual não representasse fidedignamente o que imaginara para si aos 15 anos, havia tempo para realizar os sonhos desde que colocasse a "casa", sua mente, em ordem. Cuidava da avó e era grato pelas coisas boas, mas havia noites nas quais se imaginava numa carreira que lhe garantisse melhores dividendos e maiores responsabilidades, ou numa vida onde ao fim de cada tarde fosse recebido por esposa e filhos, num lar feliz e barulhento, onde faria caber a avó. Para colocar a vida em ordem, acreditava que precisaria investigar o próprio passado, para finalmente deixá-lo descansar em paz.

O mercado popular de Newark podia ser facilmente alcançado do aeroporto `a caminhada. Certo que não era boa ideia encarar a andança em dias de sol implacável, mas para manhãs tão amenas quanto aquela terça-feira de fevereiro, não fazia diferença e uma caminhada vinha a calhar. O mercado popular de Newark fora ereto há quase um século e fazia parte do patrimônio cultural, da história daquela comunidade. Era um espaço enorme e valorizado, gozando de infraestrutura para guarda, conserva e serviço dos quiosques dos comerciantes. Ali, reinava uma quentura, uma rusticidade, alheia a shoppings modernos. Por isso, Daniel o apreciava tanto. Dividido em três pavilhões, separados conforme a natureza dos serviços, quem por ali passasse ao meio-dia certamente enxergaria Legrand no terraço do 2˚ piso. Existia a arejada praça central, margeada por árvores em colunas paralelas a entradas de uma variedade de serviços, de lojas de materiais de construção a chocolates. Encostado no parapeito da ponte a conectar a praça central ao setor onde se vendiam produtos não perecíveis, Daniel distraia-se todos os dias, no intervalo do almoço, quando se punha a observar o Northeast Corridor balizando trens da AirTrain Newark até a Penn Station, no coração de Nova York, a metáfora perfeita para vidas em movimento, enquanto a sua parecia estagnada. Quando chegou ao mercado, ao atravessar o pavilhão dos pequenos quiosques de alimentação, foi tomado por uma agradável sensação de sumir em meio ao coletivo palpitante. Das cozinhas minúsculas, vinha o convidativo cheiro de assado de panela. Na passagem para a praça central, alguns moradores punham-se na frente de uma televisão pequena, para o telejornal local. Falava-se do curioso mistério envolvendo queixas feitas à secretaria de agricultura por conta de mutilações infligidas ao rebanho bovino do frigorífico de Elizabeth, marcas de perfuração nas ancas dos animais. Daniel tinha outras preocupações em mente.

- O que motivaria alguém a mentir sobre isso? - Daniel perguntou a Suntee enquanto inseria o canudo no furo da tampa do copo de chocolate gelado. Encontravam-se na passarela, o sol a pino. - Por que  me procurar  por e-mail, mas não pela rede social?
- O perfil dela não me parece 100% legítimo. - Suntee inclinou-se, braços cruzados no parapeito, aproximando o papel do rosto, intrigado, mirando os parágrafos do longo e-mail. Estudara o perfil do facebook na noite anterior, em casa. Ele descobrira que havia uma  "Simone" de Cape  May na rede social. - Ela tem poucos amigos e são do mesmo meio. Quero dizer, se foi uma pessoa que bolou esse pequeno grupo de coadjuvantes, ela merece meu respeito: demandou certo esforço, certo investimento de tempo. Aos olhos de quem está habituado, entretanto, não me parece muito autêntico. Por que alguém faria isso, você quer saber? - Reformulou a pergunta sob nova perspectiva, com um olhar de divagação, e quebrou o feitiço, deixando o papel para encarar o amigo. - Bem, talvez porque tenha se adiantado, sabendo que a procuraria na rede social após o e-mail e, consequentemente, desejado dar um ar de veracidade à sua existência. E até porque talvez queira ser indiretamente descoberta, por que não? Escute, fica meio difícil...
- Fica difícil sem que conheça a si. - Giro entrou na conversa. Enquanto os outros dois ainda estavam começando, ele já consumira seu chocolate. Dirigindo-se a Suntee, opinou. - Não há outra saída. Ele precisa conversar com a avó. Depois da atenção por causa do resgate, as pessoas de quem ele se esqueceu têm sua localização e contatos. Vou ser bem direto. - Dirigiu-se especificamente a Legrand. - Essa menina te procurando... Ela não é quem afirma ser. Eu posso garantir. - Ele soava tão convicto que assustou a Daniel. Como Giro podia estar tão certo assim? - Isso é só a ponta do iceberg. Vá se habituando. Logo, haverá uma porção de rostos do passado pipocando no curso dos próximos meses. Converse com a Gladys. Quanto ao perfil de "Simone", você o trouxe impresso? Tem como eu... - Ia perguntando, mexendo os dedos, esperando que Suntee lhe entregasse qualquer coisa.
- É só o e-mail que ela mandou para Daniel, ele não imprimiu o perfil. - Suntee disse a Giro. - Encaminharei por e-mail. Cheque sua caixa postal quando voltar do trabalho. - O garoto mordeu os lábios, dando a entender que estava em vias de vocalizar algo importante. - Salvei as fotos de Simone. Usarei as ferramentas do Google para fazer uma pesquisa de imagens. Se essa pessoa copiou as fotos de um outro perfil, terei como saber. Agora, Daniel, escute o Giro. Agora, cabe à sua avó ajudá-lo.
- Deus, que grande confusão. - Com as mãos no cenho, Daniel deixou as costas escorregarem e se sentou no chão, os cabelos melados de suor na testa.
- Podemos "mudar de estação" por um momento? - O garoto brincou, satisfeito que o pior da conversa passara. - Sexta-feira que vem, festa na casa do McBride, só que ele não sabe. A turma preparou a surpresa, então vamos dar um susto no cara, portanto se falar com o McBride no facebook, não mencione o que eu disse, combinado?
- Sexta-feira que vem? Algo para tirar minha cabeça desta confusão. - Considerou, com um bocado de entusiasmo. - Giro está convidando também, certo?
- O Giro? Vamos fazer uma festa, cara, e não celebrar uma missa! - Eles deram risadas, mas ninguém deu risadas mais altas que Giro, sempre boa-praça quanto ao modo como as pessoas o reinterpretavam em sua palpitante fé e religiosidade.

Conforme prometido, Suntee  enviou para Giro e Daniel o e-mail com um link para o perfil da "Simone" de North Cape May. Era uma menina bonita em seu jeito "girl next door". Não havia muitas fotos, apenas onze; entretanto, mesmo superficialmente, sugeriam traços de uma figura cativante; algo no olhar, como se o espelho de sua alma estivesse permanentemente capturado pelo registro da máquina. As fotos de Simone a mostravam em momentos variados com amigos, duas delas no que parecia ser a formatura; noutras, numa festa familiar. Seus cabelos eram muito pretos e desciam belamente sobre os ombros. Tinha a pele alva, sobrancelhas expressivas e um sorrisinho que parecia esconder peraltices. As proporções do rosto eram bem simétricas, maçãs mais proeminentes, testa e mandíbula estreitas. Pelas cores das imagens, pelos tons, Suntee datou as fotos como momentos acontecidos em 2002, 2003. Daniel esforçou-se, vasculhando dentro de si, atrás de alguma centelha que lhe respondesse se já a vira antes. Sentiu-se diferente, atraído por um desconhecido magnetismo `as fotos. A mensagem seguinte de Suntee o deixou mais desconfiado: a
 pesquisa de imagens não o levara a terceiros. Colocando de forma simples, não obstante o perfil não parecesse 100% fidedigno, as fotos não haviam sido "roubadas" de outra pessoa, o que consistia uma surpresa. Suntee e Daniel trocaram opiniões via e-mail, Giro ficou no silêncio. Na quinta-feira, véspera da festa de McBride, Daniel respondeu a mensagem da moça. Foi educado e cortês, mas encontrou no comedimento a estratégia para não se comprometer.

"Olá, Simone. Obrigado pela sua mensagem. Foi uma feliz surpresa, receber parabéns de amigos do passado, por mais que eu tenha problemas para me recordar do que se deu antes de 2004, quando sofri um acidente que me tirou parte das recordações. Assim sendo, espero não magoá-la em minha falta, ao não me lembrar das coisas bonitas descritas tão poeticamente. De qualquer jeito, se eu signifiquei tanto, e de alguma maneira contribui para sua formação, foi uma honra, um prazer. Deus te abençoe. Daniel". Legrand releu o fecho do e-mail, e sorriu com carinho. Falar em Deus era uma característica que absorvera do amigo Giro. Ele remeteu a mensagem e comprometeu-se consigo, ao menos por um tempo, a se distanciar um pouco da internet, ao menos por um tempo. Na mesma quinta, chegaram pelos correios os DVDs de vídeo-aulas encomendados. Com o pacote, Daniel ganhava acesso aos arquivos digitais e apostilas, impressas no mesmo dia, para acompanhar melhor as aulas de Matemática & Raciocínio LógicoPortuguêsInformática e os principais cursos de Direito. Certo de que era hora de se concentrar, a ideia de afastamento da internet veio a calhar. No dia seguinte, Giro o atiçava com a festa de logo mais: "Vai ser ótimo, cara!". Daniel ria ao imaginar a surpresa de McBride. Suntee ligou ao meio-dia, Daniel distraído com divagações na passarela do mercado. Ele avisou que o apanharia em casa, por volta das 21:00. "Não se preocupe comigo, vou direto de casa para o local da festa", Giro o despreocupou, e contou que Suntee já lhe adiantara o endereço.

Suntee o apanhou em casa e antes que Daniel o convidasse a entrar para tomar o café de Gladys, lembrou-lhe que, por causa do atraso, precisavam correr. E correr foi o que fizeram, o carro ganhando a pista com liberdade. Os ponteiros apontavam para depois das 21:00. Postes muito altos acompanhavam a corrida de lados opostos, encontrando-se à frente no infinito. Daniel não compreendeu por que as luzes da casa encontravam-se fechadas, mas quando se deu conta de que seria ele o surpreendido, não teve tempo de se preparar para o impacto. Acabou se emocionando, quando as luzes foram acesas e os aplausos e confetes desceram sobre sua cabeça. Cobriram-no com palavras de gratidão e carinho, e Daniel realmente se sentiu apanhado. Seus olhos marejados deixavam patente o impacto da homenagem. Tão aturdido com a surpresa, não viu quando Giro chegou com Gladys. Ele deu uma gargalhada e correu para abraçá-la. Com os olhos em Giro, deduziu:

- Então envolveram até mesmo vovó no plano, certo? - Daniel insinuou.
- Espero que tenha gostado. - Ele respondeu, e deu um passo para o lado, para o amigo abraçar a avó.- Você merece tudo de bom e tenho orgulho de ter alguma participação em sua história.

Suntee o chamou num canto e disse que só haviam preparado a surpresa porque queriam muito bem a Daniel. Ligeiramente albergados naquele espaço da cozinha, Legrand pôde mostrar-se mais vulnerável sem se preocupar, e Suntee agiu de maneira nobre, com o braço sobre seus ombros, insistindo que, da mesma maneira que levara o bem `as vidas das pessoas no voo da American Airlines, o destino se encarregaria de desatar os nós a prenderem-no a um modelo de vida que não lhe fazia mais sentido. Depois de desabafar, Daniel sentia-se menos sufocado. Olivia aguardava o homenageado do alto da escada. Ele nem introduziu o cumprimento, já chegou a abraçando, o que deve tê-la surpreendido bastante! Sentados em uma mesa do segundo nível, assistiram aos alunos dançando e celebrando na área da piscina. Quando Giro deixou Daniel e Gladys em casa, passava das 02:00. Avó e neto estavam exaustos, certos de que não tinham uma noite tão divertida em anos. Cyrano dormia ao lado da televisão na sala-de-estar. Ao escutar o barulho das chaves na porta, o gato lhes lançou um olhar rabugento e voltou a dormir. Cyrano sendo Cyrano, Daniel cochichou para a avó, que assentiu: não levaria mais do que 24 horas para que voltasse a se comportar como o velho xodó da casa.


Daniel estendeu a rede do quarto e abriu a janela. Uma aragem fresca preencheu o alto com familiar facilidade. Ainda com roupa de festa, permaneceu balouçando-se, pensando num monte de coisas. Depois de se trocar para se recolher, a avó foi visitar o neto para desejar uma boa noite. Ao encontrá-lo introspectivo, sentou-se na cama, ao lado da rede. Algo dizia a Daniel que a hora da tão temida conversa chegara e quando Gladys começou a falar, viu que a intuição provava-se certeira.


- Foi um acidente na estrada. - A avó introduziu e Daniel a respondeu com um olhar de gratidão, aliviado pela proximidade da verdade, cuja superfície logo começaria a arranhar. - Em julho de 2004. Você tinha 24 anos. Apenas dois anos tinham se passado desde sua formatura.
- Formei-me em direito e fui um cidadão de North Cape May? - Antes que Gladys respondesse, emendou mais uma. - Eu fazia parte da Guarda Costeira, certo?
- Sim, você era servidor concursado da Guarda Costeira. Entrou na Guarda no mesmo ano da graduação, em 2002, o que me deixou aliviada,  porque eu queria, independente do que viesse  a ocorrer, que você conseguisse se sustentar. A essa altura, seus pais já eram cartas fora do baralho.
- Meu pai e mãe. - Repetiu, com pesar, os olhos vívidos de dor antes mesmo de conhecer a verdade. - Eles não estão...
- Esqueça-os, eles morreram. - Gladys resumiu, determinada. - A perda não o impediu de se tornar um homem bom. Quanto a você, se procurar nos jornais da época, se fizer uma pesquisa na internet, encontrará reportagens sobre o que aconteceu em julho daquele ano. Você corria pela grande estrada da travessia do estuário de Cape May, no sentido da praia, quando perdeu o controle da direção, avançou na grade de proteção e despencou até parar contra as pedras do rio que eventualmente desemboca no mar. Passei semanas rezando ao seu lado até despertar. Quando o fez, não se recordava das coisas distantes.
- Como eu... - Tentou esboçar, a voz embargada.
- Como você era? - Ocorreu-lhe uma fugidia recordação, possivelmente um instante feliz, e ela sorriu. - A mesma pessoa que é hoje, querido, apenas mais ingênuo. Talvez acredite que tenha perdido parte de si após o acidente, mas não foi bem assim. Você só perdeu as lembranças, a parte verdadeiramente importante não se foi.

Gladys seguiu adiante e revisitou o passado, entrando em assuntos como quando Daniel tinha 14 anos e costumava chegar do colégio ao meio-dia; adorava quando a avó preparava empadinhas de frango, pois as esmigalhava para misturar ao arroz, feijão e carne moída. Falou sobre o quanto fora estudioso e amara matemática e química e que costumava pedir para que preparasse a garrafa térmica de café para deixá-la ao lado da rede onde passava a maior parte do dia, estudando e resolvendo questões na prancheta enquanto deixava passando na televisão algum de seus filmes preferidos, em fita. Disse-lhe que quando tinha 22 anos, a vida se resumia `a correria do dia a dia e tinha muitas cadeiras na faculdade, o horário ocupado de segunda a sexta-feira; à época, dava o melhor de si para concluir direito de modo a prestar o concurso para a Guarda Costeira a tempo. Ela relembrou quão sensacional era pegar o ônibus na volta para casa, pois descia pela freeway, sem que houvesse muitas pessoas a bordo: a pista era toda sua. Gladys contou sobre as noites parecerem mais longas e mágicas. Com a narrativa ricamente descritiva, vez que ele não conseguia evocar recordações, Daniel criou novas, assistindo-lhes em pensamento, imagens inesquecíveis, enquanto era arrastado à inconsciência.

Daniel teve sonhos bons. Neles, o mundo era felicidades, expectativas e o sol do meio-dia, justamente ao se mostrar mais contundente e abrasivo, ao alto do  firmamento do céu impecavelmente azul. Não se recordou de detalhes, mas sabia que o que vira o tocara profundamente, lágrimas no rosto e travesseiro apenas reforçando sua conclusão. Ao despertar, voltou com um ameno sorriso, a alegria de quem reconhecia ter recuperado parte do romantismo, e abandonara a pesada carga do ranço e do cinismo vindos depois. Aguardando que os movimentos voltassem lentamente ao corpo, como se emergisse de uma piscina, pôs-se a admirar a beleza do dia a insinuar-se entre os vãos das gretas. Logo, os cabelos da nuca eriçaram ao perceber que era observado da porta.

Parker tinha cabelos pretos, olhos verdes de uma cor semelhante à esmeralda, a voz delicada mas contundente, sobrancelhas bem delineadas, um rostinho lindo cujo formato era suavemente quadrangular, um charmoso sinal logo acima do lábio superior, tão perfeito a ponto de parecer ter sido feito a lápis apenas para deixá-la mais impressionante. Ela não era alta, em seus 1.70 metros, porém detinha uma poderosa presença. O tipo de mulher que, transitando num ambiente, concentrava as atenções sobre sua pessoa. Quando Daniel a viu ao lado da avó, não compreendeu. Ele se recordava, sim, de Parker Cowan, mas não pelos motivos verdadeiramente importantes. Daniel amava filmes, parte da personalidade que levara consigo mesmo após o acidente em 2004, e Parker era atriz. O que uma artista que Daniel vira em filmes de arte europeus e dois excelentes de horror fazia ao pé da porta, ao lado da avó, as duas sorrindo como se fossem conhecidas? Um tanto atônito, Daniel tentou balbuciar qualquer cumprimento para a avó, porém saiu como um gaguejado. Parker parecia não se importar. De maneira discreta e não invasiva, veio alguns passos em direção à rede.

- Olá? - Ela disse. Quando Daniel começou a se levantar, ela pôs a mão gentilmente sobre o peito dele para detê-lo. - Por favor, não se levante ainda.
- Você não é... - Semicerrou os olhos com reconhecimento, e Parker e Gladys se entreolharam, cheias de expectativa. - Eu não a vi em filmes?
- Sim, sim. - Confirmou, escondendo muito mal uma ponta de desapontamento. Ela lhe estendeu a mão. - Parker Cowan.
- Sim, claro. Eu a a vi em alguns filmes muito bons, mas não me recordo de tê-la conhecido pessoalmente. - Comentou, com um sorriso que a deixou à vontade e emulou um magnético sentimento de familiaridade. - Não estou... Entendendo? - Insistiu, com um olhar confuso para a avó, a qual, por suas próprias razões, parecia comovida.
- Eu... - Parker subitamente se calou. Pela forma que respirou fundo e de olhos fechados, antes de recomeçar, Daniel percebeu que uma porção de coisas a se sucederem no quarto, não em palavras, mas através de olhares e inflexões as quais não conseguia ler. - Eu tenho um parente vivo pois foi arrancado de dentro do avião da American Airlines por suas mãos.
- Oh, compreendo. - A tensão no rosto dissipou-se. - Conheci quase todos os passageiros do voo, mas me tornei mais próximo dos alunos da excursão da East Side. Você é...
- Eu e a sua avó aguardávamos seu despertar, mas pelo que me contou, a festa de ontem à noite fez por merecer o descanso prolongado! - Parker brincou, numa intimidade adoravelmente espontânea. Houve um silêncio meio demorado, Daniel sem saber realmente para onde ir a partir dali, quando Parker retomou. - Adoraria se pudéssemos conversar mais.
- Claro, será um prazer. - Concordou, com o aceno firme e breve de cabeça. - Eu vou me trocar, e então te levo para um lugar muito agradável a caminho do aeroporto. Conversaremos melhor.
- De acordo.

Nesse ínterim, as patinhas decididas de Cyrano puderam ser ouvidas em marcha. O gatinho desfilou indiferente para o quarto e saltou sobre o colo de Daniel. Os ressentimentos da noite anterior, quando dormira ao lado da televisão, eram águas passadas. Parker e Gladys riram com gosto. Foi um momento doce e especial, o tipo de feliz sincronia impossível de se premeditar. Parker se ajoelhou ao lado da rede e passou a mão sobre a cabecinha do anjinho, que a ficou cheirando e lambendo como se a reconhecesse de outra época. Daniel se trocou, vestindo algo mais apropriado para o frio. Apesar de dia de sol, a manhã amanhecera fria e refrescante. Enquanto vestia as botas, sorria divertido, entretido com os pensamentos, as cenas de filmes com Parker surgindo na cabeça como trailer de cinema. Encontrou a visitante sentada à mesa da cozinha, Gladys mexendo a colherinha na xícara, ao pé do fogão. Ela o recebeu com um olhar de grande felicidade, como se em vez de apenas seis minutos, tivessem se passado seis anos desde que o vira pela última vez. Havia dois pratos com talheres e copos sujos, então deduziu que Gladys já servira Parker. Ele não estranhou a proximidade, a avó era a pessoa mais confiante e gentil que conhecia, todavia, mesmo no ar, existia eletricidade de cumplicidade entre as duas que ele não conseguia pontuar muito bem.

Daniel conhecia o trabalho de Parker. Ele a vira no cinema exatamente uma vez ao longo daqueles seis anos desde que se mudara para Elizabeth, um filme de arte europeu chamado "Distant Lights", exibido no circuito de arte dos cinemas de downtown Newark. O filme fora produzido em 2005. Encontrando-a hoje, achou que Parker continuava tão bela quanto quando a vira no drama rodado na Itália. No filme, interpretava uma mãe que ao morrer trágica e prematuramente, deixa o filho e o marido consumidos pelo luto, até o menino chegar para o pai com um colar, garantindo que ela voltou para visitá-lo e o tem feito com frequência. O filme era melancólico e açucarado, experimentando com temas diversificados, os quais, combinados, produziam um elegante resultado, uma história dramática a ensaiar incursões na ficção científica, sugerindo em sua segunda metade a chegada de seres alienígenas à pequena vila italiana, ocupando o lugar deixado por pessoas recentemente falecidas. A premissa fantástica era lidada de maneira madura pelo diretor. Daniel se recordava da forte impressão que a performance de Parker deixara. Quase chegara a conferir a nova versão britânica de "Lady Chatterley" comandada por John Boorman, onde Parker fazia Constance Chatterley, mas perdera a brevíssima passagem do filme pelas salas do circuito alternativo. Como artista, Parker preferia desafios, suas escolhas tendiam a filmes independentes mais difíceis, interessantes e, portanto, menos vistos.

Parker e Daniel estavam na passarela entre os pavilhões do mercado onde ele costumava assistir à manhã indo embora e a tarde a substituindo, enquanto, bem distante, Nova York o seduzia a retomar as rédeas da vida como a deixara antes de os problemas terem se avolumado tanto. Os dois foram se achegando casualmente aos corrimãos da rampa e ficaram distraídos, os olhos perdidos nos contornos de arranha-céus da metrópole insone. As pessoas passavam próximas ao casal e Daniel reparava que, vez ou outra, alguns transeuntes davam mostras, em seus semblantes, de vago reconhecimento.

- Então, vamos quebrar o gelo e levantar os tabus. - Parker disse, para seguir com uma brincadeira a suavizar tensões. - Você está tentando esquecer a minha cena de nudez frontal em "Lady Chatterley", e eu, fingir acreditar que não está pensando nisso.
- Oh, não, não assisti a "Lady Chatterley"! - Disse, com uma gargalhada. - Perdi-o por conta do pouco tempo em cartaz. Para mim, John Boorman é um dos grande cineastas vivos. Imagino a honra de trabalhar sob a batuta dele!
- Sim. Como estar sob a direção de FelliniDavid LeanIngmar Bergman... - Ela assentiu, com um pequeno sorriso de gentil orgulho. - Eu amei a experiência.
- Você fazendo cena de nudez frontal? Vou pegar o DVD hoje na Blockbuster. - Daniel brincou, porém, após o mordaz flerte, arrependeu-se de arriscar tão ousada paquera. Parker respondeu com uma gargalhada e eliminou seus temores de pronto.
- Nudez frontal, produção britânica, ritmo lento, diálogos difíceis, diretor queridinho da crítica especializada... - Ela foi adjetivando. - "Lady Chatterley" tem tudo o que se espera de um filme com Parker Cowan.
- Você mencionou um parente no voo da American Airlines... - Introduziu, mas, tão rápido mencionou, Parker delicadamente se esquivou do assunto.
- Deve ter sido uma experiência ímpar. Não posso imaginar a forma como semelhante aventura muda profundamente a rota de vida de uma pessoa.
- A verdadeira aventura começou depois que a "oficial" acabou. - Ele concordou, com maturidade. - Sim, eu deixei a cabeceira do Newark Liberty transformado. Não poderia explicar mais detalhadamente, mas foi como se minha melhor parte tivesse sido arrancada de um abismo da alma. Depois que sai da experiência, escrevo melhor, estudo melhor, trabalho melhor. Pela primeira vez em muito tempo, tenho planos e há uma certa urgência para pô-los em movimento!
- Você tem um amiguinho encantador. - Parker afirmou, com um olhar analítico, como se estudasse sua reação.
- O Cyrano está comigo desde sempre. Antes de virmos para Elizabeth, é o que vovó me disse.
- Vocês moraram em outra cidade, antes de Elizabeth?
North Cape May, conforme vovó. - Passou os dedos no queixo, a barba rala em sombra. Parecia ponderar uma observação importante a seguir. - Desculpe se pareço confuso quanto ao meu passado. As únicas recordações remontam há até seis anos, e nada mais para trás. Sobrevivi a um acidente e perdi a memória. Com a memória, também se foi a audição de um dos ouvidos. - Apontou para o faltoso com o indicador. 
- Eu entendo. - Ela disse, num sopro, e pareceu pouco surpresa com a fala de Daniel. O que parecia patente na voz era a tristeza acentuada que qualquer outra pessoa teria capturado.
- Não se sinta mal por mim. - Daniel sorriu e passou gentilmente as mãos sobre os ombros desnudos da atriz, uma súbita intimidade a qual eriçou os pelos de Parker. - Não gosto de falar a respeito porque sei que as pessoas tendem a se sentir péssimas pelo meu destino.
- Mas é compreensível que as pessoas se sintam assim. - Ela respondeu, cautelosamente. - Nós tendemos a nos preocupar demais com quem gostamos, e às vezes o carinho pode sufocar. Acho que consegue entender.
- Certamente. Pode soar estranho, mas o que ocorreu na pista... Para mim, ao menos agora, parece-me um resgate da minha história. Antes disso, deixei que se fosse a melhor época. Eu sentia falta de... - Tentou explanar melhor, mas não parecia encontrar as palavras adequadas. - Você sabe do que estou falando, não? É diferente, uma vez que se tem 24 anos de idade e tudo se resume ao futuro. - Daniel fez como se abrisse aspas com os dedos, nominando as questões importantes. - "O que vou fazer, que carreira pretendo seguir, como eu me vejo nos próximos dez anos". Temos uma visão romantizada, mas então dez anos se passam, por exemplo. Nós nos vemos aos 34, mais cínicos, calejados. Nós não mantemos a mesma chama de então, ao menos não intensamente. Salvar aquela gente foi como nova ignição, e eu me sinto assim, 24 anos novamente, apenas com menos tempo para desperdiçar e mais experiência para me ajudar a escolher melhor. - Daniel prestou atenção nos olhos de Parker, que parecia simultaneamente admirá-lo e compadecer-se da excessiva ingenuidade. Ele não compreendia como conseguiam interpretar tão bem a postura corporal um do outro, quando se conheciam somente há horas. A sintonia impressionava. - Espero não assustá-la com minhas considerações!
- Não, não assustando. - Ela respirou lenta e profundamente, uma brisa amena fazendo as mechas bailar, suspensas por ondas que não se viam, mas se faziam sentir, porque ele também se arrepiou. - Apenas admirada. Você é... Transparente.

Foi um elogio ímpar. Daniel ficou feliz. Parker disse que permaneceria em Newark apenas pela tarde, quando, ao seu fim, pegaria o voo de volta a Londres, onde fazia testes para uma nova produção. Permaneceria na Europa pelas próximas duas semanas. Daniel a convidou a almoçar e Parker aceitou no mesmo momento. Ele ligou para avisar a Gladys que a convidada se juntaria à família. A avó prometeu preparar uma comidinha especial. A manhã se passou sem contratempos. Se os três fizessem parte de uma orquestra, teriam sentado na mesma seção de cordas da filarmônica, tão afinados reagiam uns ao outros. Quando o sol começou a se pôr, Daniel a guiou ao Liberty. Fora a mochila, Parker não levava bagagens, afinal não planejara permanecer por mais de um dia. Ele quis oferecer uma despedida incomum. Por isso, uma vez tendo tomado café no bistrô do mirante, de onde conseguiam observar as pistas e os hangares destinados ao estoque e manuseamento de carga, apontou para a estrutura mais elevada, a da torre de controle, e a tomou pelas mãos. Mesmo quando parecia tarde demais para desistir, Parker insistia em perguntar se seria seguro fazer a "visita". Às risadas, Legrand respondia que "não morreriam", pois era agente portuário e Parker, sua convidada. Tomando-a pela mão, ia à frente, subindo as escadinhas rumo à cobertura da torre, e Parker atrás, trepidante, com uma das mãos dadas a Daniel, e na outra, os saltos altos descalçados para a subida.

Ali, golpeados pela ventania, os cabelos da atriz roubaram o brilho da panorâmica, batendo a grandiosidade das pistas e da planície intocada, a qual ficava com um honroso segundo lugar. Inicialmente, Parker pareceu um pouco incerta. A torre era mesmo muito alta e só havia corrimões nos entornos da cobertura, o que lhe emprestava a incomum sensação de voo. Olhos não familiarizados custariam a absorver ou se acostumar `a envergadura da panorâmica. Parker foi visitada por uma ligeira tontura e Daniel veio ao socorro, abraçando-a sem pensar muito a respeito. Ela ergueu os olhos suplicantes ao nível dos de Daniel. Os dedos finos dela então subiram entre os cabelos da nuca dele. Quando se deu conta, os dedos dela já pressionavam, trazendo o rosto do rapaz para perto da boca dela. O ar que deixava seus pulmões eram quentes e confortantes. Suas bocas se encontraram. Embora parecesse inicialmente tenso e temeroso, logo ele explorava a boca e as texturas de Parker como se não houvesse amanhã. Os dois ficaram nisso – o beijo – por quase cinco minutos, quando finalmente o bom senso os apartou com discrição e sorrisos constrangidos.

- Oh, desculpe. - Parker enrubescera, os olhos baixos, fixos nos saltos altos que tinha em mãos.
- Não, eu peço desculpas. - Daniel minimizou, executando um curto, bem-vindo e carinhoso gesto ao passar as mãos pelos ombros dela. - Você tem frio?
- Muito. - Ela respondeu prontamente, tendo aguardado a pergunta. Daniel livrou-se do casaco. Insinuou-se às costas da atriz para cobri-la. - Sente-se melhor? - Indagou, sem conseguir enxergar o rosto dela, mas lhe sendo confirmado quando Parker meneou em afirmativo. - Preciso perguntar...
- Sim.
- Nós nos encontramos antes, não? - Ele apostou. Parker se virou, as maçãs cheias de lágrimas. - Eu imaginava que sim. Eu me sinto péssimo, pois não consigo me recordar de quando e como...
- Tudo bem, não foi sua culpa. - Tentou mentir sobre quão magoada se sentia, dando com os ombros e passando os dedos suaves pelo rosto cansado.
- Você não considerou me contar logo do... - Parker ergueu uma mão silenciadora e se justificou.
- Sim, mas eu e sua avó conversamos e concluímos que o melhor a fazer era esperar um pouco para ver como reagiria `a minha presença. Nossa ligação foi forte o suficiente para manter uma centelha do passado acesa... - Daniel sacudiu a cabeça, confuso e vacilante. Parker esboçou um pequeno, triste sorriso e procurou acalmá-lo. - Por favor, eu não quis deixá-lo confuso.
- Tudo bem. - Apertou os pulsos da atriz com candura. Teve de se sentar, procurando raciocinar uma maneira de processar as consequências de tantas sucessivas revelações. - Eu sei que minha posição é delicada, mas a sua é ainda mais difícil. Eu lamento por tudo, Parker.
- Não lamente por mim. - Sentou-se ao lado dele e pôs o braço sobre os ombros do homem de uma maneira tão cúmplice que os teriam tomado por irmãos. - Será que decidi mal? Procurá-lo depois de tantos anos? Por favor, diga que não.
- Não fez mal, mas por que após tantos anos? - Ele quis saber, uma pontinha de medo no tom mais grave.
- Porque se não fosse agora, então nunca mais. - Colocou pragmaticamente, e Daniel teve de concordar com o ponto de vista. Dificilmente os dados atirados pelo destino repetiriam a mesma sequência. O resgate dos passageiros do avião da American Airlines fora algo único, uma vez em toda a vida.
- Você tem que partir? - Perguntou, a dor expressa no olhar, na torcida de uma resposta negativa.
- Não, se você não quiser. Eu posso passar o fim de semana com você e sua avó e pegar outro voo para Londres na semana que vem. Ficaria melhor?
- Adoraria que ficasse. - Disse, contundentemente, simultaneamente exausto diante de tanta informação nova.
- Ótimo, pois também quero! - Ela passou as pontas dos dedos por entre os cabelos de Danny com doçura, um gracioso gesto de trégua.

Gladys esperava no alpendre, fazendo o passatempo caça-palavras. Quando viu a caminhonete dobrar na entrada da vicinal rumo ao loteamento, juntou as mãos, grata. Sorriu com um balanço afirmativo de cabeça ao reconhecer na figura do carona a silhueta de Parker. Daniel desceu rapidamente e subiu os três degraus num salto. Parker assistiu à reunião de neto e avó com os braços cansados sobre o capô. Precisava lhes ceder espaço. 

- Eu conversei com Parker e ela me explicou. - Adiantou. - Vovó, não quero que fique preocupada comigo.
- Espero que me compreenda, querido. - Ela lamentou, emocionada.
- Compreender o quê, vovó?
- O fato de não ter lhe adiantado logo...

Daniel sacudiu a cabeça em negativo e deu dois passos para a frente, envolvendo-a com os braços. Cyrano apareceu na cauda da saia de Gladys e os deixou para receber Parker. Avó e neto assistiram a Cyrano correr para as mãos da atriz, que o recebeu nas mãos e o acomodou sobre um dos ombros. Agora, parecia tudo evidente, até nos pequenos detalhes: ele até podia não se recordar de North Cape May, mas Cyrano sem dúvida se lembrava. Parker achegou-se com o gatinho, aproximando-se timidamente. Gladys e Daniel sorriram e abriram os braços para a atriz. Giro emergiu da sala para o alpendre, testemunhando a cena com um olhar meio cúmplice, meio preocupado.

- Eu pedi para ela ficar. - Daniel explicou para a avó, que achou ótimo.
- Só por este fim de semana. - Parker adiantou. - Teremos um domingo juntos, e será fantástico.
- Oh, querida, não há melhor notícia. - Trouxe-a enfaticamente para si, como se Parker fosse uma neta.
- Olá, tudo bem? - Giro veio timidamente, estendendo educadamente a mão para a atriz. - Daniel deve ter falado de mim, eu espero. Supostamente, sou o seu melhor amigo! Chamo-me Giro. - Brincou, dando uma piscadela para o colega de aeroporto. - Eu sei, eu sei, é um nome idiota. Diminutivo para Girolamo.
- É um prazer conhecê-lo, Giro. - Parker o deixou à vontade, respondendo `a iniciativa com carinho, um jeitinho especial ao colocar a cabeça ligeiramente inclinada para o lado ao se dirigir a pessoas.
- Daniel é um rapaz maravilhoso e merece tudo de bom. - Giro declarou, com graciosidade. - Eu acho que vocês dois têm muito a conversar.
- Não o vejo há mais de seis anos. - Contou, os olhos subitamente marejados. - Ele tem muito a me contar sobre todo esse tempo; e eu, quanto ao que veio antes.
- Bem, o que importa é que aqui estão. - Dispôs uma das mãos grandes sobre a cabeça de Daniel. - Não percam tempo. Vocês são jovens, mas não há tempo a desperdiçar. Lembre-se dos objetivos, Daniel, e não deixe o caminho escolhido. - Depois, dirigindo-se especificamente ao amigo, combinou. - Nós nos vemos na semana que vem. Precisamos falar sobre uma coisinha. Até lá. Boa sorte, Parker!

Giro partiu, Cyrano saltando dos ombros de Parker para correr atrás da viatura aeroportuária até Giro alcançar a secundária e deixar o rastro de areia ascendendo à altura da carroceria. Gladys perguntou se Parker queria tomar banho e Daniel pediu à avó para separar bermuda e camisa para que ela pudesse se vestir mais à vontade. Gladys foi preparar o quarto onde Parker dormiria, bem como separar as roupas. Daniel foi cuidar da mesa para o café. A chegada de Parker veio a desinibi-la de um modo que nem o neto conseguia. Agora, permitia-se falar abertamente sobre North Cape May. Daniel era mais espectador a protagonista das conversas; primeiro, à mesa para o café, depois nas cadeiras servidas no alpendre.

Daniel ria enlevado ao aprender que fora um menino estudioso e aplicado em quem a avó depositara os melhores planos. Ele especialmente gostou de saber de sua obediência canina à avó, uma conduta deveras importante após a morte dos pais. Católico que o era, Giro adoraria saber disso, e Daniel lhe contaria! Parker e Danny se conheciam desde a adolescência, porque haviam estudado no mesmo colégio. Quando Parker e Gladys falavam sobre 1994, a abundância dos detalhes inspirava Daniel a sentir nos braços a quentura das manhãs ensolaradas sobre as quais falavam tão romanticamente. Conhecia a parte na qual, após chegar à casa da avó, amassava as empadas de frango e as misturava a arroz, feijão e carne moída, a garrafa com café, as folhas de papel ofício borradas por gotas de café, rascunhos onde resolvia questões de matemática e química. Agora, podia reconstituir novos detalhes através do suporte da narrativa de Parker. Ela lhe devolvia a época na qual tinham se sentado lado a lado na sala de aula, quando ocupavam carteiras escolares da classe A da 8ª série, os trabalhos de literatura em grupo, filmes que faziam com a turma, excursões em grupo à Flórida, os primeiros anos de faculdade. Parker aparecia como uma personagem fundamental naquela que teria sido a melhor década da vida de Danny.

Parker os deixou na terça-feira seguinte. O voo partiria `as 15:00. Os três haviam combinado que Gladys e Daniel a acompanhariam até ao portão de embarque. Almoçaram juntos, e a avó preparou as empadas de frango para que pudessem esmigalhá-las e misturá-las ao almoço, como um dia o neto costumara fazer, aos 15 anos. Gladys se recolheu para um cochilo antes da chegada da hora de acompanhá-los ao aeroporto. Daniel e Parker saíram para uma caminhada pelo loteamento e, enquanto passeavam sob o exuberante manto ensolarado, também se sentiram abraçados pelo espaço e árvores os quais os ciceroneavam caminho afora. A brisa fazia as pontas das gramas curvarem-se de maneira elegante, para logo em seguida reassumirem as formações iniciais. Borboletas dançavam inseguras e vacilantes sobre flores cujas pétalas pareciam muito amarelas e finas, e que apesar de espremidas quando agraciadas pelo vento, recuperavam facilmente a altivez e então pareciam mais belas que no minuto anterior, aperfeiçoadas pelas intempéries do meio. O casal não levava Cyrano: era o gato o condutor, sempre orgulhoso na dianteira. Dando risadas, divertiram-se quando o viram se atirar mato adentro, em direção às flores, para brincar com as borboletas. No ar, só a eletricidade da despedida sobrepujava o calor.

- Quero saber se posso voltar a procurá-lo. - Parker sumarizou o dilema. - Foi um ótimo fim de semana, mas sabíamos que ia terminar. Quando gostamos muito de uma pessoa, as horas voam.
- As horas? Eu diria os anos. Sabe que sim, querida. Você viu como deixou a mim e a vovó felizes. Se antes não me recordava do que falou de North Cape May, nós fizemos novas recordações. - Daniel apontou para um banco de madeira ao lado de um arranjo de trepadeira de flores aos pés de um poste. Os dois se sentaram para conversar mais calmamente. Agora, Cyrano lhes parecia um pontinho preto bem longínquo correndo atrás de alguma novidade, provavelmente um amiguinho felino. Daniel apontou para aquele pontinho que miava e saltitava, e deduziu. - Aposto que a forma como Cyrano chegou às minhas mãos tem uma história, certo?
- Sim, mas eu prefiro lhe contar quando estivermos em North Cape May. - Assim que terminou, estudou inquisitiva a expressão do rosto dele. - Você voltaria a North Cape May, certo?
- Sim, eu... - Pareceu distraído por uma súbita, complicada consideração. - Eu não pensei a respeito. Sobre voltar a North Cape May. Depois do acontecido com o avião, conforme expliquei, senti-me tentado a pesquisar, ir atrás dos fatos, mas jamais pensei concretamente em regressar a North Cape May. Seria um passo e tanto, quase como saltar a uma nova vida!
- Acho que seria ótimo para você, Danny. - Parker o inflamou, a que Daniel lhe respondeu com um olhar lisonjeado.
- Está vendo? Somos próximos novamente. Chamou-me de "Danny". - Ele mencionou. Tendo tomado ciência da intimidade, Parker riu. - Nós nos damos muito bem, não acha? Éramos mais do que amigos, antes de 2004, eu suponho?
- Sim. - Ela aproximou o rosto do pescoço dele e murmurou. - Amigos muito íntimos. - Suas bocas se reencontraram com a intimidade perdida no acidente que custara a Daniel as melhores recordações, momentaneamente evocadas pela força da conexão a ainda mantê-los unidos após seis anos.

Eram 18:00 quando o carro de Giro parou em frente à casa dos Legrand. Depois de ter deixado Parker no portão de embarque acompanhado pela avó, o rapaz se escusara do trabalho, tendo tirado o resto da tarde para descansar. Ele abriu o notebook e navegou na internet até o comecinho da noite. Só de ver vídeos de algumas cenas de "Distant Lights", sentiu a pontada da saudade. Tomava uma canja de galinha, o prato fundo no colo, deitado na rede do alpendre. Com a chegada do amigo, deixou o prato sobre a mesinha e se sentou na beirada da rede. Giro subiu os degraus num salto, os modos fáceis e corajosos de uma pessoa de casa.

- Ei, Giro! - Daniel olhou por sobre os ombros para ver se Gladys ainda se achava na cozinha.
- Ela já partiu, então... - Mais observou do que indagou, puxando uma cadeira para se sentar. - Muitas emoções para poucos dias, não?
- Oh, boa noite! - Gladys apareceu na janela. - Ela mal chegou, deixou-nos. - A avó fez a volta por dentro e saiu para o espaço do alpendre através da porta. - Os dois trocaram e-mails e ela prometeu escrever e telefonar. Não há pressão, fiz questão de deixar bem claro que será bem-vinda sempre que desejar nos ver.
- Ela falou sobre um teste para um papel na Inglaterra, mas disse que, findo o processo de seleção, ela virá nos visitar novamente e ficará conosco por mais tempo. - Daniel deixou a rede e encostou-se à grade. - A Parker levantou um ponto muito interessante. Ela me convidou a voltar a North Cape May. É muito possível que as lembranças ocorram uma vez que eu caminhe por lugares por onde passei, um dia.
- Muito bem. - Giro fez o sinal positivo, recebendo a xícara de café das mãos de Gladys. - Talvez essa moça seja uma das ferramentas da qual precise para preencher as lacunas.

Houve uns dez minutos iniciais nos quais neto e avó conversaram com o amigo sobre coisas recentes do cotidiano; porém, quando a avó saiu para qualquer afazer passageiro no lado de dentro, a expressão até então serena de Giro virou uma máscara tensa e retesada. Daniel ia lhe perguntar se ia tudo bem, contudo o amigo foi introduzindo:

- Escute, cara, Suntee me mandou o facebook da outra menina. Eu odeio ser o porta-voz de más notícias, mas ela não é quem afirma ser...
- Você se refere à Simone?
- Trata-se de alguém fazendo-se passar por outra pessoa. - Giro emendou com a segunda parte antes de Daniel gaguejar qualquer comentário. - Preste atenção, apenas confie em mim. Olhe... - Giro deu um rapidíssimo, tenso olhar para dentro da casa, para verificar se Gladys estava ao alcance de suas vozes. Ao ver que não, foi adiante. - Você tem se sentido observado, seguido, nesses dias?
- Credo, Giro... - Ele pôs as mãos na coxa para sair da rede, mas Giro não deixou. - Como pode saber dessas coisas?
- Tem se sentido seguido ou não?
- Não! - Sentenciou, firmemente.
- Avise-me se notar qualquer mudança! - Giro esfregou os cantos dos olhos e, com uma careta de incômodo, vestiu os óculos melhor. - Eu não sei... Para alguém fazer um facebook falso e começar a te escrever... Os próximos e-mails dessa menina, prometa-me que me mostrará, certo?
- Giro, mas... - Daniel não conseguiu terminar. Giro o fuzilou com o olhar de preocupação paterna e determinou.
- Quero ver. Guarde os e-mails, e me mostre! Não posso falar muito agora, Daniel!
- Tudo bem. Ficamos combinados. Os novos e-mails, eu os mostrarei.

Daniel ficou um pouco intrigado, mas ao tempo em que terminou de coar um café fresco, tinha novos pensamentos em mente. Antes de ir se deitar, foi checar a caixa de entrada. Havia algumas propagandas do curso onde comprara os DVDs, uma mensagem do Suntee, a resposta de Simone ao seu e-mail e a grande surpresa: uma mensagem da Parker. Daniel conscientizou-se da alegria em receber a mensagem de Parker e considerou que, caso não se conhecesse melhor, estaria "caidinho" por ela. Chamou Gladys para lhe mostrar a mensagem. Gladys se inclinou às costas do neto e forçou a vista desnecessariamente, já que Daniel tratou de ler o e-mail em voz alta. "Queridos Daniel & Gladys, apreciei os momentos que tivemos juntos! Espero vê-los dentro de duas semanas. Daniel, a sua avó jamais se esqueceu do forte sentimento que nos uniu e ela é o nosso mais resistente elo. Deus os abençoe, até breve! Parker C.". O e-mail havia sido mandado às 14:40, Parker o tendo escrito no internet café do terminal de embarque após os dois a terem deixado no portão do voo que partiria para Londres.

Suntee havia escrito para combinar um cinema com o pessoal da East Side na sexta-feira. Ocorreu-lhe uma sensacional contraproposta: por que não fazer uma sessão domiciliar, onde se sentiriam à vontade para se entreterem, confraternizarem e comerem? Ele respondeu o e-mail de Suntee com a proposta e imaginou que os amigos a acolheriam! Sem dúvida, seria uma novidade. Daniel já tinha escolhido o filme: "Lady Chatterley", de John Boorman. Quando foi abrir o e-mail de Simone, foi tomado por antecipação, e acabou permanecendo um pouco mais no alpendre, andando vagarosamente em círculos, pensativo, voltando em pensamento à conversa com Giro, horas antes. Sentado sobre os degraus do jardim, encostado à coluna, deu-se o prazer de saborear o gostoso café com leite preguiçosamente. Distraído, com os olhos no distante banco de madeira onde tinham se beijado, Daniel imaginou se Parker chegara bem a Londres. Escutou a avó ao telefone, na sala-de-estar, com uma comadre do loteamento, consolando-a em razão de algum pequeno incidente corriqueiro. Quando os olhos começaram a pesar, Legrand preferiu deixar o torpor antes de adormecer, voltou ao quarto. 

Esfregou os olhos com os nós dos dedos e clicou no ícone da cartinha da mensagem de Simone. Um tipo de quentura forrou seu ser, uma grata surpresa quando ao correr a vista pela mensagem viu, na introdução, "Querido Danny". O contraditório "desconforto" ajudou-o a perceber suas limitações quanto a habilidades sociais. Ficava realmente lisonjeado e desconcertado com manifestações de afeto. Viera acostumando-se a uma vida sem intrusões, mas então ganhara a turma inteira da East Side como amigos fiéis, e agora Parker & Simone. "Fiquei muito feliz ao receber a sua mensagem! Você não apenas contribuiu com a minha formação, foi a partir de nossa amizade que me senti estimulada a refletir sobre coisas que, quando se é bastante jovem, não se pensa a respeito. Você tinha uma maneira de enxergar a vida que no começo tomei como fatalista, mas vim a compreender o peso das palavras. Se lembra que costumava me dizer que tudo o que temos são emoções e não devemos ser levianos com as nossas e, principalmente, com as dos outros?". Daniel achou o trecho muito bonito e murmurou consigo mesmo "Não me lembro de muito, mas se disse isso, estava certo mesmo". 

"Eu espero que não tome por mal minha iniciativa de aproximação. Eu sei que deveria ter procurado você antes, porém as demandas da vida têm seu jeito de nos fazer crer que dispomos de muito tempo, quando não é bem assim. Você mencionou não se recordar de mim por causa do acidente. Adoraria ajudá-lo a se recordar. Ficaria feliz, se soubesse que estou aberta `a sua amizade. Talvez pudéssemos voltar atrás e construir uma amizade tão fantástica quanto a de antes de 2004. Com carinho, Simone". Daniel ficou ali, com o queixo suportado pelos punhos cerrados, cotovelos sobre a escrivaninha, estudando a mensagem com o afinco com que fazia as lições. O celular chamou. 

- Ei, Suntee, recebeu o meu e-mail? - Perguntou, ao atender.
- Achei uma ótima ideia e os outros também gostarão. Próxima sexta-feira, então?
- Ou sábado. Talvez sábado seja melhor, não acha? - Sugeriu.
- Sim, perfeito. Era o que eu diria, deixarmos para sábado `a noite. - Uma pausa, e Suntee puxou conversa. - Ocupado?
- Lendo e-mails. Mais uma mensagem de Simone. - Contou, e Suntee pareceu interromper o que fazia para prestar atenção. - Ela parece me conhecer tão bem! Escreve coisas que parecem tão pessoais!
- Vamos pesquisar melhor a história dessa sua amiga, meu patrão. - Suntee não sabia como dizer ao colega que ele vinha se precipitando, então procurou fazê-lo indiretamente. - Você precisa conversar com a moça por telefone, não?
- Sim, porém creio que acontecerá naturalmente, sabe? Quero dizer, relacionamentos são uma soma de etapas de comprometimento...
- Como eu te disse... Eu não acho que essa menina seja real, cara.
- Até você? - Daniel reclamou. - Porra, um dia desses foi o Giro. Apareceu aqui como se tivesse visto um fantasma. Falando a mesma coisa! 
- Olhe, conversaremos melhor no sábado. - Suntee capitulou. - E falando nos mistérios do coração, acho que Olivia está apaixonada por ti...
- Oh, não diga bobagens. - Daniel riu, mexendo a xícara quase vazia de café. - Ela é uma menina com a vida pela frente e vai encontrar alguém bem mais interessante que...
- Mais interessante que o cara que salva os passageiros e tripulantes de um Boeing em chamas, certo? - Suntee fez uma criativa gozação com tremendo fundo de verdade e os dois deram gargalhadas. 
- Cala a boca, Suntee! Aquilo foi pura sorte! - Daniel finalizou. - Então, ligue-me na sexta-feira `a noite, para fecharmos o cinema em casa para sábado, feito? De toda sorte, já vou postar uma mensagem no meu facebook para avisar a galera!
- Até sexta-feira, meu patrão, cuide-se bem.

Daniel respondeu a mensagem de Simone dois dias depois. Certo de que era o momento para se abrir um pouco mais, confessou sentir-se recompensado por receber mensagens de alguém de North Cape May e que há apenas alguns dias Parker Cowan o visitara. Também usava o pretexto como isca, afinal, ao introduzir o nome da atriz, esperava por fosse o que fosse que Simone tivesse a comentar sobre Parker. Se ambas compunham  sua história, deviam ter se cruzado em North Cape May. O fato de ter se mostrado mais extrovertido e natural a convidaria `a aproximação. Agora que a muralha invisível havia sido transposta e o passado não precisava mais de desculpas fajutas de Gladys, Daniel desejava abraçá-los de uma só vez - passado, presente e futuro -, como qualquer indivíduo de  integridade. Ele não falou mais de Simone a Giro, porque desejava apostar em até onde a situação iria chegar.

Daniel reabsorvera totalmente a rotina administrativa do aeroporto. Paulatinamente, o lugar restaurava a aparência de normalidade de antes do Natal de 2009. Ao meio-dia, punha-se a caminho do mercado apenas para subir a ponte, sentir o calor da terra e divagar, enquanto a vista tentava inutilmente penetrar através da imensidão do maravilhoso espaço a apontar no sentido de Nova York. Agora, todavia, ao se inclinar sobre o parapeito para se distrair com os trens correndo sobre trilhos, em vez de ponderações sobre a vida e o que gostaria de fazer, eram Parker e Simone quem ocupavam seus pensamentos. Não tinha como saber muito sobre a Simone. Por ora, ele se familiarizaria apenas pelo que lhe adiantasse por e-mail. Com Parker, as regras eram outras. Se quisesse, tinha como pesquisar sua vida, pois a carreira artística a deixava em evidência, todavia sabia o suficiente e preferia limitar suas conclusões ao que ela lhe mostrasse. Gladys gostava muito dela. Se a avó confiava em Parker, era porque conhecia a história a conectá-los em North Cape May antes de 2004.

Giro chegou `a passarela aparentando falta de fôlego, segurando dois copos de isopor com café. Entregou o de Daniel, e ao tirar o boné da cabeça, exibiu a marca vermelha deixada na testa suada. A dupla sorveu o café em silêncio, ao tempo que o engarrafamento distante sob a quentura os hipnotizava com a energia a emanar do asfalto, como entranhas de um forno. Daniel lembrou-se de dar uma excelente notícia ao amigo, que até então guardara para si.

- Então, Giro. - Começou, e Giro tirou preguiçosamente os olhos da pista para prestar atenção. - A autoridade portuária de Nova York e Nova Jersey publicou edital para preenchimento de cargos de níveis médio e superior. Eu realmente aprecio a área de atuação e os vencimentos são excelentes... Tenho três meses até as provas.
- Oh, rapaz! - O rosto de Giro se abriu num sorriso de gradual recepção. - Estou tão feliz por isso!
- Preciso organizar os horários de estudo, mas com as provas, sigo me movendo em direção a um objetivo concreto. E agora que Parker voltou e o passado não é o mesmo oceano de mistérios, não faria sentido que me mantivesse preso a terminais de aeroporto. Por um tempo, foi uma espécie de limbo onde não precisei escolher.
- Olhe, sobre Parker... - Giro abordaria um ponto delicado. Sentia-se aprisionado a uma responsabilidade e tanto, porém o rapaz tomou o ônus para si.
- Eu sei, eu sei... - Num tom cúmplice, antecipou. - Eu não estou "me apaixonando", Giro. Eu a conheci por uma segunda vez e apreciei sua companhia, os dias em que esteve conosco. Não alimento expectativas. A única resposta que espero da Parker é que ela fique bem. Pense comigo... - Deixou por um momento o copo de café sobre o parapeito e prosseguiu. - Quantas pessoas têm a chance de recomeçar? Talvez o acidente em 2004 tenha sido a melhor coisa que poderia ter ocorrido, pois me obrigou a repensar, e melhor ainda, aos 30, agora que tenho experiência. - Entusiasmado, seguiu o discurso com insight. - Você mencionou Parker. Vamos supor que nossa história tenha acabado mal, lá atrás. Agora, em 2010, quando Parker retornou, ela não reencontrou o homem de antes. Eu fui moldado pelas dificuldades, e é ótimo. Hoje, não há como perder. Se Parker e eu nos envolvermos romanticamente, aconteceu! Se não, tudo bem, ambos somos maduros, teríamos como saber o melhor para nossas vidas! Você vê, Giro, levando-se em conta tempo e dissabores, não somos realmente donos de coisa alguma, como Simone escreveu no e-mail. Na maioria das vezes, estragamos as coisas por conta de um senso distorcido de posse. Leva-se a vida para se compreender em linhas bem genéricas a dinâmica das relações. Se o acidente me forçou a amadurecer rapidamente, talvez tenha sido melhor assim. Parker não tem como me ferir.
- Muito bem. - Giro devolveu, com uma expressão resignada, preocupada. - Espero que saiba o que faz. O sentimento passa, sabe? Não se jogue tão destemidamente. Preze as virtudes, perguntando-se se ela é a pessoa que pode te levar ao céu, e se você, com as suas, tem como ajudá-la a chegar lá, também. Para relacionar-se com alguém, deve se livrar das fantasias. Fantasias como a de que ela te fará feliz... Mas ninguém neste mundo é capaz de fazer quem quer que seja feliz, Daniel. O que uma mulher virtuosa fará será ajudá-lo a chegar lá, o que só pode se dar  no contexto da missão que é a de ser família. Cuidando dos filhos, perdoando pacientemente as falhas um do outro, e buscando a santificação: é assim que se encontra felicidade na vida, que é pouca, mas é a antessala para a felicidade plena no céu.

Encantado com quão ressonantes as palavras de Giro soaram, Daniel concordou com um vagaroso e lento menear da cabeça, no qual só existia puro respeito. Ele voltou a estudar o Northeast Corridor com um olhar transcendente. Quando o sol se tornou forte o bastante, protegeu-se sob o toldo onde pombos faziam os ninhos entre pilares e a curva laminada da duma. Sorriu ao observar a obstinação de um pombo, o qual não desistia de procurar levar no bico um grande fio de palha que teimava de cair quando a ave batia as asas para o pilar. Ao ver que apoiando-se sobre o corrimão conseguiria alcançar a parte superior do pilar, tomou para si a tarefa e fez um favor ao pássaro, alinhando o fio ao esboço de ninho costurado pelo pombo.

`A noite, aproximadamente vinte amigos da East Side apareceram para assistir a "Lady Chatterley". Suntee trouxe caixas de pizza e refrigerantes. Travesseiros no chão, todos se puseram `a vontade para assistir a Parker no filme de John Boorman, até mesmo Cyrano, recebendo afagos no lombo sobre o colo de Olivia. Quando entrou a primeira cena de Parker, Gladys bateu palmas, a que os demais não compreenderam. Daniel riu e explicou "Ela é uma velha amiga", referindo-se `a atriz. A produção era visualmente deslumbrante e onírica, o que era de se esperar do diretor de "Excalibur" e "Amargo Pesadelo". Parker comandava o filme com uma performance destemida e comovente. Era impossível tirar os olhos da atriz enquanto explorava o caleidoscópio de emoções. Agora, Daniel compreendia a brincadeira de Parker, quando estavam se conhecendo melhor: havia, sim, uma cena de nudez frontal. O momento era tão estética e artisticamente confeccionado, porém, que não havia traço de agressividade, somente elegante erotismo. A corajosa cena se dava no momento mais emocionalmente pesado, quando Constance & Oliver, os personagens do romance original de D.H. Lawrence, faziam amor pela primeira vez.

Daniel deixou os travesseiros aos pés do sofá e perguntou a Olivia se poderia lhe oferecer mais uma fatia. Olivia adoraria outro pedaço de pizza. Quando Daniel foi tirar mais duas fatias, o celular chamou. Antes de atender, levou a ela o prato com dois pedaços. Antes de deixar a sala, explicou-lhes que atenderia a ligação no quarto, mas não demoraria a voltar. Para conversar mais desinibido, fechou a porta. Ao olhar para o display, não se recordou do número.

- Daniel? - Assim que atendeu, a voz feminina indagou.
- Parker? - Ele pensou, já imaginando que não, pois a voz de Parker teria soado mais apologética. Essa nova voz pronunciava-se mais afiada, assertiva.
- Não. - Uma pausa que pareceu durar mais do que efetivamente custou. - Eu sou Simone.
- Simone? - Repetiu, estratégia para ganhar tempo. Ela deve ter murmurado Uh-hum, a que Daniel não pôde se certificar. - Oh, olá. Que surpresa adorável!
- Espero não parecer ousada, procurando-o dessa forma. - O destemor não combinava com o pedido de desculpas. Simone não parecia o tipo de mulher que tinha como hábito o exercício da humildade. - Foi fácil conseguir seu número. Não estou ligando num mau momento certo?
- Oh, não. - Mentiu, puxando a cadeira da escrivaninha para se sentar. - Fico feliz que tenha me procurado. Gosto muito de nossas correspondências por e-mail e acho que você também se sente parecido.
- Sem dúvida. Compreendo o constrangimento, Daniel. Se eu estou te deixando...
- Não, não. - Sorriu com os cantos dos lábios, entretido. Antes que prosseguisse, ela conectou o flerte.
- Você tem uma risada acolhedora. Não há indelicadezas que não possam ser corrigidas pela força de uma mera risada, não acha? - Ela falou, e Daniel respondeu a paquera com mais risadas.
- Então você estagiou comigo, foi essa a história? Você sabe do acidente e que não foi minha culpa o esquecimento do que se passou?
- Não é inteiramente mau se esquecer. No seu caso, por outro lado, houve momentos bons, teria sido melhor se tivesse ficado com eles. 
- Quando subo na passarela do mercado para me encostar no parapeito e observar o Northeast Corridor, sei que em algum lugar da minha mente alimento a ideia de voltar a North Cape May. - Sentindo-se mais `a vontade, vencidos os tensos segundos iniciais, travavam o diálogo com facilidade e desenvoltura. - Simples assim. Subir na minha caminhonete e seguir dirigindo até chegar `a cidade. Você ainda reside em North Cape May?
- Não. Hoje, eu moro em Nova YorkNorth Cape May é a minha cidade natal, onde nasci e onde ainda mora meu pai. Eu sempre visito North Cape May, ora para vê-lo, ora para resolver alguma questão no Departamento de Trânsito da Guarda Costeira. - Nesse trecho, ela pareceu censurar-se, modulando a rapidez com a qual soltava as informações, como que temendo revelar o suficiente para que Daniel lançasse questões fundamentais. Atento, compreendeu que Simone não queria falar detalhadamente de si, e manteve o papo alegre e bem-humorado.
- Eu fiquei curioso. Quando mencionou que era chatinha e eu zangado, o que quis dizer? - Recebeu como troco a generosa, aberta gargalhada de Simone. Daniel soube então que restabelecera sua confiança.
- Eu não sei. - Respondeu lacônica, e reconsiderou. - Talvez não passe de um ponto de vista, a maneira como me recordo de mim em North Cape May. Sempre achei meu nariz um pouco apontado para cima.
- Mas não fez diferença alguma para mim?
- As pessoas que passaram pelo estágio levaram lembranças muito bonitas de sua presença em seu dia a dia. Costumeiramente, dois anos. - Simone limpou discretamente a garganta, o que fez Daniel imaginar que estaria engasgada com lágrimas, o que não fazia sentido algum, afinal dera gargalhadas há segundos. - O tempo que leva. Um estágio dura dois anos. Pelo menos, foi assim no começo da década. Falava tanto sobre a vida, sobre a importância de se investir em si, em conhecimento, em crescimento pessoal e profissional. Dizia-me que contamos nos dedos aliados que nos tocam a ponto de nos transformar. Até então, 2002, eu não pensava tão frequentemente sobre assuntos existenciais. Eu fui enxergando melhor quando, no cotidiano, fui incorporando as coisas simultaneamente belas e tristes ditas por ti. Não se lembra?
- Não. Mas fico grato por você se recordar. - Ele respondeu, com encantadora espontaneidade. Daniel precisou de uma pausa para não se emocionar também, e complementou: - Se você se recordou, foi porque deixou uma forte impressão.
- Quando vi o que aconteceu no Liberty de Newark, sobre como salvou aquela gente, fiquei tão feliz! Eu me sentia péssima, sei que devia ter te...
- Por favor, gosto muito de sua amizade e não precisa se explicar. - Alguém bateu à porta, e Simone também pareceu escutar. Era Suntee. Daniel avisou ao amigo, com os dedos sobre o fone para não ser escutado. - Já estarei com vocês, Suntee!
- Oh, não estou te... - Simone finalmente compreendeu que ligara em uma noite na qual se reunia com os amigos.
- Oh, não. - Daniel tentou deixá-la tranquila. - Não está me incomodando e é ótimo conversar contigo. Estamos assistindo um filme, eu e a turma da East Side, os garotos a bordo do avião da American Airline com quem fiz amizade!
- Ah, um filme, com amigos. E em casa, o melhor lugar!
- Em casa. Uh-hum. Na sala. Estamos assistindo a "Lady Chatterley". Foi surpreendente quando Parker Cowan me procurou para me contar sobre como nos conhecíamos de North Cape May!
- Sim, claro. Também me recordo da Parker. - Ela falou, para imediatamente emendar. - Escute, Daniel, posso ligar uma outra noite?
- Será um prazer, Simone! Eu aguardarei! Acho que aprendemos mais um pouco após a conversa de hoje.
- Aproveite o filme, e depois me diga se foi bom. Escreva uma de suas resenhas! - Ela finalizou, a voz avivada, novamente tão afiada quanto no começo da conversa. - Boa noite!
- Boa noite!

Daniel desligou. Por um tempo, não mais que um par de minutos talvez, deixou que lhe esperassem, braços apoiados nos joelhos, olhos transfixados na janela escancarada, entretido com considerações transitórias e fugidias. Observava como as gramas do campo pareciam cheias de vida por causa do manto amarelado com o qual os postes acarpetavam a superfície, cadenciados por espaços desolados e quase vazios, não fossem os bancos de madeira do qual só tinha um esboço de forma na escuridão. Não soube o que o incomodava, até lhe ocorrer o motivo. "Escreva uma de suas resenhas", Simone dissera e Daniel não sabia interpretar a linha. Mais batidas à porta: dessa vez, era Gladys avisando pela porta que a turma estava se impacientando por causa da ausência e que requentaria as pizzas. Daniel levantou-se num salto, bateu palmas e tratou de avisar que ainda suportaria no mínimo três fatias. 

No começo da semana, Parker telefonou de Londres, e Daniel lhe contou que havia assistido a "Lady Chatterley" com os amigos numa sessão de cinema caseira. Ao tecer elogios à performance dela, Parker disse que seus comentários importavam mais do que qualquer crítica da mídia impressa. Ele começaria a "pegar pesado" nos estudos a partir daquela semana, mas antes conversaria com o pessoal da East Side. Ainda jovens, aos dezoito, dezenove anos, os amigos fariam melhor passando logo num concurso do tipo. Daniel explicou que se pudesse voltar no tempo, teria traçado um plano parecido, garantindo um emprego honrado para seguir estudando e aperfeiçoando-se, galgando oportunidades de crescente retorno financeiro. Havia algo no discurso centrado, correto, que fascinava a Parker. Ele era um homem que não conquistara o desejado, mas além de parecer mover-se consistentemente para a frente, fazia-o com tocante ingenuidade. A mera sugestão do amanhecer ensolarado para onde se encaminhava era suficientemente sedutora e atraente e, em sua companhia, fosse por telefone, fosse quando se viam (o que, ao menos para Daniel, ocorrera apenas uma vez), sentia-se à vontade, de uma maneira que nenhum outro homem conseguira emular. Não havia cobranças, não existiam pressões. Ela tinha muito a aprender com Daniel. Ao seu lado, não precisava se esforçar para parecer tão magnética quanto a "alienígena sedutora" de "Distant Lights" ou a esposa infiel de "Lady Chatterley", imagens às quais pessoas fascinadas com cinema de arte alternativo associavam a sua persona. Em Londres, deitada na cama do confortável Kensington, bem no coração da cidade, fechava os olhos para se recordar do caminho da estradinha poeirenta a encontrar o alpendre da casa de Gladys, quando sentia a força asseguradora do sol incidindo sobre sua pessoa e a terra, vida emanando do solo e fazendo-a se sentir parte de algo perfeitamente integrado.

02. Cachinhos dourados.

Conforme decidira, mesmo raciocinando que podia ter cometido um erro, Daniel nada disse a Giro sobre o telefonema de Simone. Com o desabrochar de muitos tipos de flores, a riqueza de girassóis, jasmim e gazânias perfumadas e coloridas que desabrochavam pelos cantos, de pequenos canteiros dos jardins de casas em estilo sonho americano à imensidão da planície sobre a qual fora ereto o aeroporto de Newark, a primavera, em sua adorável jactância, anunciou a chegada, eliminando qualquer pretensão do inverno de deixar saudades. Daniel convocou os amigos a uma reunião importante, quando pôde escalá-los para a missão. "Não é porque concorrerão a cargos de nível médio que terão de permanecer na mesma carreira pelo resto das vidas", iniciou a preleção no alpendre, de pé, enquanto os amigos, sentados no chão de gastas tábuas, escutavam e assistiam com olhos atentos. "Mas se eu tivesse a idade de vocês, sei que teria feito melhor dividindo meu tempo entre trabalho e faculdade". Daniel conseguia lê-los através de expressões e sabia que os tinha cativado; os amigos realmente se importavam com o que tinha a dizer. Percebia que se tornara uma espécie de líder a quem respeitavam e procuravam para se aconselharem. A compreensão de seu papel o encorajava a incutir ainda mais nas cabeças daqueles jovens o que a vida, a duras penas, ensinara-lhe.

- Eu não sei se conseguiremos sem um plano. - Suntee levantou a mão para pedir licença para falar. Reportando-se nervosamente aos colegas, explicou: - Se nós formos adiante na empreitada, precisaríamos de organização.
- Olhe, antes de qualquer plano, nós temos de nos comprometer. - Frisou Daniel. - Temos praticamente três meses até maio. Eu resolvi fazer as provas. Vocês vêm comigo?

Mãos erguidas e o coro de suporte: Suntee deu com os ombros e, encorajado, levantou a mão por último. Daniel meneou afirmativamente com a cabeça, certo de que os convencera. Muitos enfrentariam o desafio movidos pela convicção dos poucos que já viam a importância do passo; entretanto, eventualmente, mais para frente, quando tivessem sua idade, compreenderiam por que insistira para que se juntassem a sua aventura de volta aos bancos para as provas. Sustentado sobre o incondicional apoio dos amigos, compreendeu que chegara a hora de traçar a meta de estudo. Jogando e recebendo ideias, no decorrer da tarde, o grupo rascunhou o horário semanal para as aulas. Eles se reuniriam à noite na casa de Daniel para assistir às vídeo-aulas e nos finais de semana, em qualquer uma das muitas salas livres do campus, para a resolução de questões.

- A sala contribuiria e muito no processo de aprendizagem. - Daniel comentou, reiterando a Suntee para ser realista. - Você tem certeza de que o seu pai vai...
- Papai é professor. Ele conseguirá autorização para as nossas reuniões aos sábados! - O rapaz afiançou. 
- Estou orgulhoso de vocês, garotos. - Declarou, cheio de contentamento. Os meninos se entreolharam como se estivessem a caminho da guerra. - Mesmo que nem todos passem no exame... A felicidade está no fazer e não necessariamente no conseguir. Por si só, fazer já constitui nossa grande vitória.

Nos meses seguintes, a rotina de Daniel foi tão apressada que perdeu os devaneios, o que foi bom. Era o que dizia aos colegas de estudo, por volta das 23:00, ao concluírem mais uma rodada de aprendizado: "Vocês podem descansar quando estiverem mortos". Os amigos não sofreram tanto para se adequarem `a rotina extenuante, e perseveravam no duro e gratificante caminho. De qualquer maneira, ainda existiam os domingos, único dia da semana no qual, consensualmente, não tocavam nos livros. Aos domingos, Daniel se sentia tão esgotado que encontrava gratificação nas coisas menores, como brincar com Cyrano no alpendre ou deixar o dia passar em conversas com a avó, Gladys na cadeira de balanço e ele nos degraus que davam para o caminho do jardim. Ele aprendera a balancear as presenças de Parker e Simone, a aproveitar suas amizades, a participar das novidades que pareciam lançá-lo a lugares ensolarados, arejados da mente. Parker lhe contava sobre como vinha se saindo bem nos últimos testes em Iver HeathBuckinghamshire, nos estúdios Pinewood. Mencionava o frio devastador ao se levantar muito cedo; isso exigia mais do que o mero respeito pelo ofício da atuação! Simone ligava pelo menos uma vez por semana e, com as conversas e e-mails trocados, a noção e imagem de passado de Daniel iam ganhando matizes. No trabalho, Giro arrefeceu nas indagações sobre Simone e se ela o vinha procurando. Ele devia ter acreditado na mentira de Daniel, e ele, claro, sentia-se mal por isso.

Os admiráveis esforços de Daniel e a turma foram mantidos com o entusiasmo do primeiro dia da reunião até maio, mês no qual efetivamente se iniciou a contagem regressiva para o dia 23, o dia das provas. Daniel combinou com Suntee que se reuniriam até a sexta-feira anterior para a revisão de última hora, mas deixariam o sábado vago para que não fizessem nada, que não descansar. Sábado amanheceu cinza e friorento, mas nem por isso menos estranhamente encantador e estimulante. Era uma daquelas manhãs únicas do ano, uma esquisita eletricidade. Existia uma tenacidade sustentada de modo sobrenatural quanto a maneira como as nuvens escuras se mantinham bem alinhadas, em vias de desabar, mas sem realmente fazê-lo, como formações de um exército celeste preparando-se para o cerco da cidade. Em algum lugar para os lados da baía de Newark, um arco-íris nascia em Elizabeth e punha seu pé para muito depois do estuário, desaparecendo num encanto, pincelando sua superfície plácida e gelada com cores aquosas. Daniel acordou mais tarde do que de costume com os miados e arranhões de Cyrano na cabeceira, aperreando-o por ração. Daniel se virou e cobriu a cabeça com o travesseiro, mas o gato não se daria por vencido. Saltou sobre a cama, abocanhando o lençol e, mesmo pequenino, tentando pateticamente arrancá-lo do tutor. Daniel não conseguia acordar de mau humor com Cyrano, mesmo quando o gato procurava arruinar o sono suave e tranquilo numa manhã gelada de céu escuro, apenas por conta de um punhado de ração!

Daniel ajudou a avó no alpendre com meia dúzia de trabalhos manuais, entre eles o conserto de algumas tábuas frouxas. A manhã foi escoando facilmente. Avó e neto almoçaram sossegados, assistindo à televisão, a moça reportando de Times Square o tráfego quase nulo em razão das chuvas intensas que vinham caindo, somadas a um acidente menor envolvendo um carro de bombeiros, uma soma de incidentes para agravar a delicada situação, provocando consequências massivas. "Prepare-se, essa frente está descendo para Jersey", Gladys previu, baixinho, ao deixar seu lugar à mesa para levar as louças `a pia. O rapaz fazia nós com o pano de prato, absorto. Gladys sabia que a prova da manhã seguinte o preocupava. Ao meio-dia, um pouquinho da coroa do sol apontou. Ele a deixou a sós por um momento. Foi passear com Cyrano. Caminhando pelas ruas, o solo barrento aos pés, as gramas muito verdes e umedecidas como tapetes cuja extensão parecia maior do que a vista capturava numa só toada, Daniel carregava no peito muitos pensamentos e preocupações. Certamente a proximidade da prova o fazia repensar a vida; entretanto, fora o concurso, havia Parker. Apesar da felicidade que a atriz vinha trazendo, não deixava de se atentar aos perigos do envolvimento emocional. Parecia injusto a Daniel que se apegassem tão prematuramente. Pensou se as demandas de suas tão distintas vidas tenderiam a afastá-los.

As nuvens "seguraram" a ameaça de precipitação. No começo da tarde, entretanto, o céu veio abaixo, e aí foi como se o resto do dia tivesse se tornado madrugada. Cyrano se meteu entre os lençóis da cama de Daniel, que "se vingou" e morreu de rir ao brincar com o gatinho preto, puxando-o e dando tapinhas de brincadeira em seu traseiro, o que acabou por irritá-lo a ponto de ele lhe dar uma patada e refugiar-se sob os travesseiros. A chuva não impediu Gladys de convencer o neto a levá-la ao Walmart para fazer as compras da semana. Enquanto bebericava um cafezinho na lanchonete do supermercado, vez ou outra a avó surgia no seu campo de visão, dobrando com o carrinho rumo ao próximo longo e espaçado corredor. A decoração muito branca servia bem o lugar. Em tardes muito chuvosas como aquela, sustentava uma contagiante eletricidade de saudosismos e mistérios. Gladys encontrava-se na sessão de limpeza, no outro lado do Walmart, quando Daniel recebeu uma mensagem de texto de Parker. "Sinto saudade de sua companhia e de nossas conversas. Tudo parece mais gelado e sombrio quando não estamos juntos. Amanhã, você será coberto de felicidade. Te amo. Parker C.". Grato pela surpresa, Daniel quase se antecipou a escrever a resposta, mas resolveu deixar para outro momento. Ia se levantar para pagar o cafezinho no caixa e se juntar à avó, quando notou um elegante cavalheiro de paletó gris, sentado próximo ao refrigerador dos sucos, ao lado da vitrine de salgados. Parecia vir o observando há um tempo. Vestia óculos, parecia um pouco míope, e seu corte de cabelo rente o deixava parecido a um agente policial especial. Devia ter um pouco mais do que cinquenta anos, mas podia ser mais velho; a excelente forma física o rejuvenescia. Ao se encararem, o cavalheiro levantou a xícara, como que o cumprimentando, e Daniel correspondeu ao gesto cheio de classe. Raciocinando que se tratava de alguém que o reconhecera pelo ocorrido com o avião no Natal anterior, não pensou muito a respeito. Ao deixar o supermercado com a avó, o fato evaporara de sua mente.

Pode ter sido a exaustão dos meses de estudo intensivo, o fato de ter apostado as fichas na manhã seguinte, as mensagens reveladoras de Simone, as simultaneamente agradáveis e terrificantes declarações de amor de Parker, ou o incondicional suporte de Gladys & Cyrano, mas, tendo voltado para casa, ao se recolher para cochilar pelo resto da tarde, assim que repousou, Daniel começou a chorar. Uma vez que se permitiu enfrentar a turbulência, não houve volta. Chorou a ponto de achar que precisaria enfiar o rosto no travesseiro para não correr o risco de a avó ouvi-lo, mesmo com a porta fechada. O que havia dentro de sua alma era um peso emocional tão brutal que, ao deserdá-lo, levou junto suas defesas psicológicas, pelo menos por um tempo. Ele despertou às 18:00, com o rumor estranhamente confortante de torrente correndo contra as lâminas de vidro e formando pequenos riachos através das esquadrilhas. Da sala, vinha o barulho da televisão. Daniel foi urinar. Ficou um tempo sentado na beira da cama, pensativo. Foi a ligação de Suntee que o tirou de seu estado contemplativo. 

- Ei, cara, eu não posso ser o único que não consegue mais aguentar a espera, posso? - Foi o que Suntee falou assim que pôde dizer uma palavra.
- Nós nos sentimos igual. A sorte é que sublimei a tensão dormindo. - Daniel respondeu com a voz monocórdia e cansada de quem acabara de deixar o sono. - Falou com o restante do pessoal?
- Cada um sobrevivendo ao sábado da maneira que julga melhor. - Respondeu, com um fiapo de voz. - Escute, meu patrão, eu só liguei para te agradecer em nome de todos. Eu sei que foi um semestre cansativo, mas a gente te admira muito pelo que fez e por tentar nos ensinar os fatos da vida, que talvez os nossos pais não...
- Oh, não, Suntee, não faça isso comigo agora. - Daniel estalou a espinha ao se levantar, e bocejou. Abriu a janela e se deu o direito de usufruir o acalento da brisa molhada. - Já me emocionei o suficiente por hoje. Façamos assim: quando passar, choraremos juntos, lágrimas de alegria, mas até à prova, precisamos nos comportar com frieza e resolução. Já fez o caminho para seu local de prova?
- Duas vezes hoje, só para me familiarizar. - Assegurou-o, com o senso de dever cumprido, e Daniel se sentiu péssimo, pois ainda não fizera o mesmo. Tinha posse do cartão de prova, com o endereço do colégio, número de sala e os outros dados relevantes, contudo não se precavera de fazer a rota com antecedência. Nada que não pudesse ser resolvido antes do dia terminar.
- Farei o mesmo. - Comprometeu-se, animado ao se imaginar pegando a estrada naquela tarde fresca e aprazível, uma boa pedida para "fechar" o dia. - Não se preocupe. Crescemos muito ao longo dos últimos meses. Passando ou não nos exames, só há razões para comemorar. Eu tenho muita fé na gente.

Daniel explicou a avó, atarefada com o preparo da mesa para o café, que conferiria o local dos testes para se habituar ao caminho. O cheirinho de pães frescos besuntados com manteiga deixou o forno, almiscarado ao de ovos fritos, queijo prato e presunto de peito de peru. Gladys avisou que ainda prepararia pães de queijo. Daniel disse que sendo este o caso, era melhor se apressar, gostaria de comê-los quentinhos. Ele pegou a pista para fugir das vias secundárias alagadas, e realizou a curva que o colocou a caminho do centro de Elizabeth. Não custou a chegar ao colégio. Ao sondar com a marcha reduzida a continuação da quadra, encontrou um ótimo lugar para estacionar na manhã seguinte. Eram 22:00, quando Daniel recebeu a ligação de Simone. A avó tinha ido dormir. Ele se balançava na rede, sem nada específico em mente. A casa mergulhara no breu, mais aconchegante graças ao frio, mais acolhedora, uma vez que se contemplasse de dentro a chuva intermitente sobre Jersey, do jeito que Daniel fazia. Sentia as recordações formigando para emergir. Por mais que de nada soubesse quanto ao que se dera antes de 2004, acreditava que, ainda naquele ano, toda a verdade seria trazida da escuridão à luz. O celular começou a vibrar. Na terceira chamada, tinha-o em mãos.

- Oi, Danny. Peço desculpa pelo horário. Não o despertei, certo? - A voz feminina que sempre se apresentara como "Simone" começou, a que foi interrompida pelo bem-humorado interlocutor.
- Não peça desculpas, fico feliz pela ligação! - Comemorou, esfregando as têmporas e consultando o rádio relógio. - Você não acreditou que eu estaria dormindo, certo?
- Você ainda está repassando a matéria? - Perguntou, com um tom suplicante, quase infantil, novamente incongruente a uma voz costumeiramente imperativa, firme. 
- Não, nada disso! - Ele riu. - Não há mais o que estudar, ao menos não a poucas horas das provas. Isso, nós o fizemos muito bem ao longo de três meses. Não foi o estudo que me manteve desperto. 
- A experiência te fez pensar mais a fundo sobre coisas, não? - Completou as lacunas da fala do interlocutor, certeira. - Danny, amanhã será o começo de algo sensacional. Voltará a sentir o friozinho na barriga do ano da Guarda Costeira. Quando sair o resultado desse próximo concurso, parecerá a primeira vez, já que a novidade do primeiro se perdeu no acidente da estrada.
- Ninguém jamais colocou as coisas dentro dessa perspectiva e eu fico grato pelo que disse, pois foi muito bonito. - Comentou, esboçando um sorriso empático visto somente por Cyrano. O gato, que até então dormia entre travesseiros na cama, lançou ao tutor um olhar severo, repreendendo-o por conversar tão alto, e voltou a enfiar a cabecinha sob o lençol, para retomar o sono dos bons felinos. 
- O que fará quando o concurso ficar para trás? - Ela o questionou, convidando-o a ponderar o ponto pela primeira vez. Ela tinha razão. Dedicara-se tanto aos estudos que não considerara como seria após o decisivo domingo. Sentiria saudades quando estivesse acabado.
- Talvez descansar para retomar os livros mais tarde. Manter o ritmo e estudar para o próximo, mesmo que seja aprovado amanhã. Só não quero me deter, porque ao menos para mim, apesar de cansativo, o preparo me deu os meses mais gratificantes dos últimos seis anos!
- Nesse meio tempo, pretende visitar North Cape May? - Perguntou, num misto de expectativa e preocupação. 
- Quando chegar o tempo, acontecerá naturalmente. - Daniel respondeu educadamente, e elaborou melhor: - Acho que seria um ato tão compreensível e natural que nem adiantaria preocupar-me com North Cape May. Um dia, uma manhã qualquer, subirei na caminhonete com planos de tomar café no aeroporto, mas mudarei de ideia. Farei o percurso até a North Cape May, e será fantástico. O sol quente, brilhando no retrovisor... - Foi dando voz à imaginação.
Hum... - Murmurou Simone, assistindo em sua mente às lindas imagens liricamente colocadas por Daniel.
O Atlântico ao leste, acompanhando-me numa curva infinita e suave. Mais para dentro, invadindo o continente e à margem da rodovia, os lírios muito amarelos com seu perfume frente ao qual nenhum outro olor rivalizaria. Perfume que só se experimenta no auge da primavera. Minhas perguntas definitivamente para trás, um mundo de possibilidades abrindo-se como um sorriso, quando estiver atravessando Cape Canal pela Intracoastal, as dunas escondendo até onde possível o mar, que quando finalmente se apresentar, o fará com um impecável azul, ondas quebrando e espumando como o melhor champanhe... - Parecia ler de um romance. Ao esfregar os olhos, constatou quão emocionado ficara. 
- Escute a minha voz, agora. Escute-me. - Repentinamente, ao comando dela, Daniel galvanizou-se, como que perpassado por uma lança no coração. Ela prosseguiu. - Você consegue me enxergar entrando na quadra das competições, armada na frente da barraca, para a partida entre os colégios?
- Sim. Você desce da barraca para a arena, ajeitando uma faixa na... O que houve com seu joelho? Tem uma joelheira longa com orifício na patela, na sua perna direita. No outro pé, você está vestindo uma tornozeleira branca. - Ele ia descrevendo, e a mulher do outro lado da linha reagia comovida, murmurando "Isso, isso, lembre-se, lembre-se". Você não se parece com a senhorita das fotos. Você está loira. Você já teve cabelos loiros? - Daniel sentia, pela mera espera ao telefone, a eletricidade e importância do momento. E então, concluiu. - Não, não é que pareça diferente. Você é uma outra pessoa. - Daniel abaixou o rosto e fechou os olhos com força, deixando lágrimas rolarem. - Você se serviu de fotos de outra menina, do nome... Eu agora consigo vê-la por quem é. Por favor, quem é você?
- Essas perguntas serão respondidas em seu tempo: nem antes, nem depois; na hora certa. - A mulher jurou. - Não se angustie. As situações se encarregarão de nos levar para dentro da área da competição.
- A área da competição? - Repetiu, vacilante, confuso e incrivelmente movido, a testa franzida em angústia.
- A área da competição. É a bússola e o farol de nossas vidas; é o porto de chamada. E cada passo que demos, inconscientemente, só os demos para nos levar aonde precisamos nos reencontrar: dentro das linhas do quadrilátero. É a razão final de nossas vidas à beira mar. É o Corpo de Estado.

Clic. Ela desligou. Boquiaberto, com os olhos impressionados, Daniel ficou com suas indagações em meio ao breu. Trepidante, ainda ligou para o número deixado na lista de chamadas. Como esperava, o celular fora desligado. Ademais, convenceu-se de que devia ser um aparelho descartável de um número pré-pago. Ele não acreditou que dormiria, mas quando menos esperou, o mundo virara escuridão, paz e silêncio. Foi a avó, ao se levantar durante a madrugada para beber um copo d'água e visitar o quarto, que cerrou nos anéis da presilha as cortinas as quais, agraciadas pelo vento, avivavam como delicadas bailarinas em coreografia de permanentes inconstâncias. Ela passou a mão pelos cabelos deles e realizou uma prece silenciosa. Da cama, entre travesseiros, Cyrano prestava atenção à cena, os olhinhos brilhantes fixados no mestre. Domingo amanheceu nublado, mas livre de chuva. Daniel se vestia apressadamente, enquanto a avó pedia para que desacelerasse. A prova só começaria às 08:00, e ainda tinha duas horas! Ele não quis comer muito. Tomou uma xícara de café com leite, e forrou o estômago com um generoso copo de iogurte. Antes de entrar na caminhonete, tratou de se assegurar que portava os documentos, caneta, lápis e borracha para o exame. Tascou um beijo no rosto da avó, que vestia um terço ao redor dos pulsos para abençoá-lo. Passou a mão sobre a cabecinha de Cyrano e atravessou o jardim, rumo à caminhonete, a ventania da manhã o apanhando em cheio, bem na altura do peito. Cyrano nem ligou para o tutor, pois logo uma abelhinha entre duas estacas do canteiro das margaridas mereceu sua atenção, e o felino gorducho teimou de tentar acertá-la com patadas, como King Kong no filme silencioso, abatendo os aviões sobre o Empire State. Gladys, todavia, assistiu ao neto partir com olhos cheios de lágrimas, as mãos juntas em oração.

Chegou cedo ao lugar da prova, e já havia um grupinho conversando, candidatos sentados na calçada em frente ao largo portão de acesso principal. Daniel foi cumprimentá-los. Os eventos do Natal de 2009 ainda perduravam fortemente, pois foi reconhecido e saudado de acordo. Ficou lisonjeado com a generosidade, porém lhe pareceu uma cobrança extra depositada sobre os ombros. Os amigos da East Side fariam prova em colégios distintos. Enquanto se divertia com as histórias de outros candidatos, os quais contavam fatos pitorescos de suas longas caminhadas no universo dos concursos, pensava em Suntee, Olivia, McBride e os demais, fazendo votos de que se encontrassem relaxados e prontos. Ao se ver debruçado sobre o caderno de testes, trabalhando concentrado em cima das questões, cujo nível apresentava-se `a altura do quanto se dedicara, as tensões não existiam mais. Ele só precisava fazer um bom trabalho, e o resto deixava de importar. A manhã foi passando.

Gladys aguardava o neto no alpendre. Daniel desceu da caminhonete com o olhar cansado e os ombros doídos, mas com o sorriso de grata expectativa pelo resultado! A avó o abraçou e disse que ia dar certo. Daniel pediu que orasse não apenas pelo seu sucesso como também pelo dos demais, seus amigos. Agora, a prioridade era espairecer. O almoço fora posto na mesa, e Gladys preparara os bifes `a parmegiana que tanto adorava. Enquanto comia, enchendo a boca com generosas garfadas antes de conseguir engolir direito, a avó lhe contava que Parker ligara há pouco para perguntar se havia chegado e como se saíra. O nome de Parker bastou para que detivesse o movimento do garfo e parasse para erguer os olhos do prato para a avó, visivelmente encantado. Repentinamente, seu peito inflamou-se de disposição. Parecia que explodiria, se não fizesse alguma coisa, qualquer coisa, para estar mais próximo dela, mesmo espiritualmente. Ele tinha de voltar.

Com os vidros baixos, Legrand levou a caminhonete à pista, deixando nuvens de poeira na sua passagem, o loteamento desaparecendo no retrovisor. Gladys assistia de longe. No espelho do veículo, de seu ponto de vista, a casa se assemelhava a um pontinho longínquo. Daniel compreendia que se não se detivesse antes de apanhar a rampa de acesso para a Interstate 95, somente pararia quando chegasse... lá. Quando ele pagou o pedágio e atravessou a cancela, encontrando pela frente a infinita corrida da Interstate, a qual, com a chegada do sol da tarde, parecia converter asfalto em brasa, o firmamento repentinamente tomado por incomum azul, um azul de sonhos, um azul de perfeição, soube que teria muito o que explicar a Gladys e Giro, mas, conforme sua amiga misteriosa insistira na noite anterior, existia momento para tudo. Pisou no acelerador, e a caminhonete seguiu ganhando pista. Teve um caminho desimpedido e liberto, uma viagem clássica de domingo, cidadezinhas lindas a cada dezena de quilômetros para as bandas do Atlântico. Somente parou para abastecer num posto anterior `a penúltima rotatória até North Cape May, justamente na perna final da não tão longa viagem. Eram 15:00 da tarde quando a caminhonete entrou na encantadora cidade de veraneio pela pista principal. Reduzindo a marcha, foi-lhe possível absorver o frescor e o delicioso cheiro da maresia, ver as costas de dunas esculpidas a descerem para formar tapetes os quais se mesclavam perfeitamente ao mar, numa fronteira não inteiramente clara se era oceano ou costa . Na rádio, sublinhava o belo momento uma doce música romântica de Tevin Campbell, "Always in my Heart". As dunas eram precedidas por tapetes de vegetação nativa entrecortadas por cercas de tábuas meio soltas que balouçavam com a ventania quente. O tapete ia subindo até as falésias cercadas pelas grades de proteção. Já ao alcance da vista, espraiava-se a cidade cuja arquitetura tropical era bem representada pelas simpáticas, belas casinhas de três cores fáceis aos olhos, janelas do térreo projetadas para fora em estilo bay window, todas simétricas em varandas convidativas. Sempre à esquerda, a cidade em seu melhor perfil, os hotéis mais bonitos na linha de frente. À direita, vencidas as falésias, havia a praia.

Ele precisava de um lugar para se refrescar e recarregar as energias. Só de imaginar a conversa na qual explicaria a Gladys que dirigira a North Cape May, sentia-se apreensivo, e a gargalhada nervosa era o melhor remédio. A vocação turística concentrava os maiores hotéis na orla, a qual chamavam de praia nova, em oposição à praia velha onde ocorrera a maior porção da história de Daniel. Ele procurou algo menor, muito simples, afastado das seduções preparadas para turistas ricos, e foi atrás de algum albergue próximo ao lado mais antigo, nostálgico e esquecido. Encontrou um Holiday Inn para os lados de uma divisão onde existia uma simpática quadra de serviços, como farmácias e mercadinhos. Daniel pagou uma diária adiantadamente. Até onde sabia, retornaria a Elizabeth na mesma tarde. Sentiu olhares conhecedores sobre sua pessoa ao se apresentar no lobby. Daniel foi simpático e acessível. Assim que viu seu rosto, a menina o associou aos eventos no Liberty. Deitado exausto na cama de solteiro, com a chave do carro no criado-mudo, resolveu abreviar o suspense e contatar a avó. Pela tranquilidade da voz de Gladys, imaginou que ela já esperava que lhe dissesse que prolongaria o passeio.

- Não acredito que fez isso! - Assim que lhe contou a verdade, ela o canhoneou com cobranças de avó super protetora, e Daniel tirou onda, sacando apenas por um segundo o fone do ouvido para atenuar o ataque, ainda assim escutando a voz amplificada pela urgência. - Pensei que conversaríamos a respeito! Jamais esperei que...
- Vovó, escute, se não fosse assim, jamais seria. Eu espero que compreenda minhas razões. Não fique aborrecida, não se preocupe. Não viajei para outro país, por Deus! Retornarei ainda hoje, ou no mais...
- Não, não, meu filho, eu não quero que pegue a Interstate numa noite de domingo! - Gladys atirou o pano de prato na pia, frustrada, e arrastou a cadeira para a frente do fogão para se sentar. - Prefiro que passe a noite no hotel e retorne amanhã cedo. Pode tirar a segunda-feira... - Gladys então se corrigiu, aborrecida com a própria moderação, e tomou partido do neto amado. - Pode tirar a semana inteira para descansar! Direi a Giro que precisa se recuperar de um resfriado. Você se doa ao trabalho como ninguém, querido. Apenas esteja de volta.
- E onde está o Cyrano? - Não tinha como deixar de perguntar pelo melhor amigo.
- Eu te digo, esse gato entende a linguagem dos humanos, Daniel. Tá aqui me encarando com olhos tristes, e apostaria meu braço que compreendeu tudo o que foi dito!

Avó e neto riram. Como por passe de mágica, não existia mais fricção. Daniel sufocou o ímpeto de fazer novas perguntas acerca de Cape May. A avó poderia instrui-lo, funcionar como a ponte entre vida pretérita e a ampla liberdade de movimentos, agora que se colocava de volta na área, mas escolheu deixar ao destino o produto daquele imprevisível lançamento de dados. Depois de desligar, a mente vasculhou probleminhas mais imediatos. Tomaria um banho antes de deixar o quarto para um passeio na orla? Ele se contentaria com uma canja de galinha, ou deveria aproveitar melhor o tempo em North Cape May e comer um peixe frito? Escolhas práticas não consolidaram a atenção por muito tempo, pois não demorou a divagar por searas mais profundas. Enquanto os olhos estudavam o encaixe de caibros correndo entre ripas, a aventura  eletrizava cenas de um lugar distante no tempo, onde completara quinze anos, esmagava empadas de frango para misturá-las ao arroz, consumia garrafas de café para se dedicar à matemática, à tarde, e sonhava com o que existia à frente, e o mundo era apenas maravilhosas sensações. As ligações começaram quase na segunda hora após o check-in de Daniel. McBride o contatou primeiro, com ótimas notícias. A galera da East Side havia se reunido no campus após a prova, para trocar impressões. Genericamente, seus gabaritos batiam com o oficial. Daniel só soube o quanto os últimos meses o haviam deixado emocionalmente extenuado quando, tendo recebido a notícia, seus olhos marejaram com lágrimas de orgulho. McBride seguia falando animadamente, Daniel concordando com tudo, até o garoto indagar:

- Mas e então, como você se saiu? - Ao ser questionado tão à  queima-roupa, Daniel percebeu que sequer pensara a respeito de si. Sua preocupação revolvia os amigos, e o fato de terem se saído muito bem bastava para iluminar o incomum fim de tarde. 
- Olhe, McBride, eu acho que me sai tão bem quanto vocês. - Falou com um pouco de urgência na voz. - Fiquei muito satisfeito com as questões, pois estavam de acordo com o nosso nível de preparação! Muito provavelmente, nós nos demos bem. Vamos esperar! Teremos um bom tempo até os resultados, então...
- Nossa, cara, nem me lembre disso - Comentou, ansioso. - Meses de espera!
- O pior já passou. - Diminuiu as preocupações, com um tom reconfortante. - É hora de comemorarmos e retomarmos nossas vidas porque não podemos viver às custas de um resultado que só sairá daqui a um razoável tempo.
- Sim. Falando na palavra-chave, "comemorar", nós o apanharemos às 19:00 para a pizza?
- Cara, nem sei por onde começar... - Daniel sacudiu a cabeça, considerando, afinal de contas, que seria mais complicado contar aos amigos sobre o retorno a Cape May do que à avó! 

Logicamente, McBride, o primeiro a contatá-lo, também foi o primeiro a saber. Logo, os outros ligavam, querendo saber por que se metera em tamanha aventura, decidida praticamente de supetão. Para as perguntas disparadas, os amigos já sabiam a resposta, mesmo que indiretamente. Compreendiam que a dignidade e a entrega que Daniel exibira nos meses antecedentes ao concurso encapsulavam perfeitamente o propósito de entender o sentido para onde o destino tinha de levá-lo. Enquanto existisse vida, havia esperança, Daniel sempre soubera disso, apenas se acomodara a um nebuloso hiato, a perda da memória que o desviara do caminho, um desvio acidental do qual fora arrancado pela aventura no Liberty, no Natal anterior. Aos amigos, explicou que já na sexta-feira seguinte se encontrariam para a pizza, mas não gostaria que deixassem de celebrar naquele mesmo domingo apenas porque não participaria. Eles prometeram ter uma noite de muita celebração em sua homenagem. Quando Daniel conversou com Suntee e falou sobre a próxima sexta-feira, o amigo opinou que repetissem o cinema em casa. "Um novo filme da Parker", Suntee sugeriu, e o coração de Daniel se inflamou pela fugidia recordação. "Distant Lights!", ele escolheu, instantaneamente. "Vocês vão amar!".

- Meu patrão, antes de desligar, se não me contou a verdadeira razão dessa viagem, não serei eu a amolá-lo, mas me sinto no dever de te segredar uma coisa... - Suntee aconselhava, e a atmosfera ganhou densidade e escureceu. Ambos tiveram medo. O rapaz foi  adiante. - Cuidado com a mulher dos e-mails. Esperei o fim do concurso para falar. Não é apenas que essa moça não seja a menina nas fotos do facebook; ela se apoderou de fotos de uma pessoa morta. - Uma pausa. Daniel engoliu em seco.- A garota nas fotos se chama Simone di Sofia, e faleceu num acidente automobilístico com a mãe. Um cara bateu em cheio com o carro no lado do passageiro; matou as duas quase instantaneamente. Vinha na contramão. Tinha na matéria jornalística. O marido, nem mencionaram o nome, chegou em seguida, porque aconteceu a uma quadra de casa. Ainda  segurou as mãos das duas, nas ferragens, à espera do helicóptero. Elas morreram na mesa de cirurgia. Não encontrei mais informações, fora o recorte.
- Meu Deus.
- Então, meu patrão... Existe alguém jogando com sua cabeça, eu nem tenho dúvida disso. Não se encontre com ninguém aí, cara. Até pelo fato de você não se recordar das coisas, nunca se sabe se existe uma pessoa ressentida esperando pelo acerto de contas.
- Eu obedecerei. Suntee, não conte nada a Giro ainda, combinado?
- Não se preocupe. Aproveite a estadia. Só não abaixe a guarda.

Quando Daniel começou a desabotoar a camisa para tomar um banho quente, a tarde arrastava-se ao sepulcro do esquecimento, talvez ao mesmo lugar onde reminiscências de sua vida pré-2004 tinham encontrado morada. Abriu a janela, e o vento fez as cortinas ondularem, Daniel conseguindo sentir nas narinas os sais dissolvidos de um dia o qual parecia encapsular os muitos outros do ano na ensolarada Cape May. Daniel encontrou um bem abastecido mercadinho logo do outro lado da avenida. Encontraria coisas para passar mais alguns dias, caso mudasse de ideia e resolvesse adiar indefinidamente a volta para Elizabeth. Comprou chinelos, duas bermudas e duas camisas, itens para asseio pessoal e guloseimas para estocar no frigobar do quarto. Ao voltar ao hotel, encontrou funcionários da cozinha e da faxina no lobby. Eles queriam conhecê-lo e, se estivesse de acordo, registrar a ocasião com fotos. Daniel os agradeceu com cortesia e humildade, disse-lhes que seria uma honra. Convidado a jantar com os membros da staff na cozinha, aceitou a gentileza. Ele emergiu do quarto após tomar banho e trocar de roupa. Deliciando-se com canja de galinha e torradas de alho, narrou sua aventura com humor: uma vez que se passara o tempo, rir era o melhor remédio e, incrivelmente, encontrava coisas divertidas sobre o fato, agora ao repensá-los.

- Eu nasci nessa cidade, sabe? - Revelou, à certa altura.
- Sabemos. - A menina da recepção tinha ciência. - As matérias sobre o que aconteceu mencionaram Cape May.
- Fui embora em 2004. Sofri um acidente que me tirou a memória. Engraçado que sempre que via imagens daqui, sentia uma saudade indescritível, o que, a algum nível, deve implicar que ainda me lembro de coisas.
- Que interessante! - O cozinheiro comentou.
- Sei que fui agente da Guarda Costeira e amigo de uma moça de Cape May que alcançou muita notoriedade.
- Parker Cowan? - A recepcionista fez o palpite, mais como afirmação do que pergunta.
- Exatamente. Esteve na minha casa e a vi na soleira de meu quarto ao lado de minha avó. Ela me conhecia; para mim, foi como a primeira vez. - A sombra de nostalgia cobria as expressões, mesmo tendo dito tão pouco. - "A primeira vez", que bobagem minha. Na realidade, "a primeira vez" pode ter sido no início dos anos 90, quando éramos adolescentes, colegas na mesma classe.
- Veio para ficar por muito tempo, senhor? - Indagou o rapaz.
- Não sei ainda. - Juntou as mãos e esfregou os polegares, analítico. - Mesmo se quisesse permanecer, não o seria por muito tempo. Eu tenho uma vida em Elizabeth e vovó precisa de mim. - Deu com os ombros, e concluiu com inesperado otimismo. - Tudo bem, só o fato de estar aqui me alegra. Ainda que tenha de voltar a Elizabeth amanhã, creio que acabei com o "mistério". Vocês ainda me verão!
- Não guarda nenhum contato em Cape May? - Perguntou a recepcionista, franzindo a testa. - Pois se tem uma história com Parker, devia procurar a família. - Ela olhou para os colegas, que exprimiram concordância. - Gail e Bill Cowan. A comunidade é relativamente pequena, senhor. O sr. Cowan é magistrado e professor universitário; a sra. Cowan é uma dama da sociedade, atua em projetos de caridade. A família Cowan é uma das mais antigas e prósperas de North Cape May.
- A chegada de Parker canalizou minha gana por voltar, e lhe sou grato. - Deu novamente com os ombros, em admirável laissez-faire, desprendimento emulado `a custa da dor e experiência. - Prefiro conhecê-la, assim como a família, "ao longo do caminho".
- Muito bem, é justo. - A menina concordou, cruzando os braços na altura do peito, curiosa. - Mas não custa nada... Procure-os, senhor. Eu sei que seria muito bem recebido, principalmente em razão de você e Parker terem uma história de muitos anos.
- Vou pensar. Eu preciso raciocinar com cautela. - Respondeu com a precaução de quem ainda hesitava se comprometer. - Bem, pessoal, obrigado pelo excelente jantar! - Foi deixando a cadeira e os cumprimentando. - Foi um prazer ser tão bem acolhido. Voltando ou não a Elizabeth amanhã, e devo me decidir hoje, a hospitalidade dos senhores me fez querer retornar.

Daniel voltou ao quarto e o ambientou para deixá-lo ao modo de como apreciava ao se preparar para uma noite de filmes ou estudos. Quase tudo permanecia tocado pelo breu, não fosse o fulgor sem charme a emanar da televisão de quatorze polegadas. As pás do ventilador giravam num gentil rumor, e contou mentalmente que a coroa levava dez segundos para varrer, ida e volta, o espaço que ia da cama, passava pelo criado-mudo e frigobar, e terminava na porta. Por sob a porta, a discreta iluminação do corredor desenhava um borrado pálido, lembrança de que o mundo exterior seguia existindo por mais que se sentisse à parte. Daniel pensou no alpendre, na avó e em Cyrano. Enquanto as pupilas dilatavam a ponto de conseguir discernir caibros de telhas, ocorria-lhe o gatinho enfiando-se entre os travesseiros nas noites geladas, dormindo com a tranquilidade que a pureza lhe concedia. Então sua mente passou a devanear, colocando-o dentro da caminhonete, subindo pela Interstate quase deserta. Ocasionalmente, quando temores infundados ficavam prestes a irromper, salvavam-lhe os acostamentos com serviços `as margens da estrada. Postos de gasolina serviam colossos sobre muitas rodas, enquanto restaurantes de letreiros maltratados de neon convidavam ao descanso. Odor de cerveja e frituras deixavam as cozinhas sem que os velhos exaustores pudessem fazer qualquer coisa a respeito. Com pálpebras pesadas, Daniel deixou de somente imaginar a viagem de volta para afundar no sono onde vivia a jornada solitária em primeira pessoa. Quando assumiu o lugar atrás do volante, assoprou muito insistentemente nas mãos em concha, objetivando confortar-se diante do frio, pois era uma noite que tinha perante a si. Passou por duas ou três paradas  iluminadas, fagulhas distantes à margem da pista que, ele entendia agora, traçava diante de seus olhos uma reta para a praia. Da praia, não havia sinais, porém podia-se sentir nos ossos que o fato de o gigante ter adormecido não tirava-lhe a existência; muito contrário, reforçava-a. A noite sobre o infinito entre a frente da caminhonete em corrida pela pista e o oceano fora tingida por pinceladas de um azul-escuro. Mesclado à escuridão, o azul promovia uma combinação mágica, e, meu Deus, quando as estrelas passaram a cintilar, o manto da noite adotou a forma do mais lindo espetáculo que Daniel vira em três décadas de vida. Com a velocidade empreendida
, a noite começou a se diluir num inexplicável dourado. O lugar do frio foi usurpado pelo reconfortante calor que Daniel conhecera na pele na adolescência. Suas mãos não se encontravam mais na direção; ele estava em êxtase, chorando. De repente, não se limitava a calor. Daniel fora envolvido pela luz. Em seus ouvidos, ecoava as palavras de sua anônima, estranha admiradora: "É a razão final de nossas vidas à beira mar; é o Corpo de Estado".

E então, "encontrou" o lugar para onde o sono o tragara, o recanto do subconsciente onde compartimentalizara parte da memória. A tarde, Daniel não teria como trazê-la consigo quando voltasse `a consciência, mas as lembranças, sim. Agora, sabia a origem de tanta luz, de tanto calor. Era uma manhã semelhante às outras de 1995. Hoje, quinze anos mais tarde, parecia nada menos do que sensacional, vez que, chegada a fase adulta, perdera as "coisas" de criança, o agir e o pensar delas, com os quais vivera os momentos que agora reencontrava aleatoriamente. Daniel despertou com os raios de sol, os quais venciam as gretas para encontrar sua face. Nada causava melhor impressão, todavia, que o aroma do café de Gladys. Sob a rede, existia um calhamaço de papel abarrotado e rabiscado com números e operações matemáticas. Debaixo dos papéis, caixas de filmes em VHS compradas no fim de semana anterior. A fita de "The Guardian", de William Friedkin, ejetada da boca do aparelho, indicava que o menino adormecera antes que o filme tivesse chegado ao fim, sendo a enésima vez que o via! Apreciava rabiscar as questões de trigonometria entre goles de café e espiadas em momentos dos filmes mais queridos. Nas paredes do quarto, os pôsteres de coisas que compunham seu atormentado imaginário, numa excêntrica variedade que ia de David Cronenberg aos filmes de Clive Barker, produções que surpreendentemente haviam caído no gosto de suas características pessoais. Catou os livros das quatro disciplinas do dia, enfiou-os na mochila e, tendo acordado cedo, aproveitou para ficar uns dez minutos distraído, pensativo, balançando-se na rede, os olhos nos pôsteres, a mente noutro lugar. A avó sabia onde se focava sua agonia.

- Reze por ela, querido. - Gladys anunciou a presença na porta com duas batidinhas e um sorrisinho amigo. - Sua mãe está a anos-luz de distância, mas se fizer suas preces, terá como escutá-lo. Eu sei, você acha que não adianta, mas oração é uma arma, meu amor.

- Não é nada, vovó, sinto-me bem. - Forçou um sorriso e se segurou `a varanda da rede para sair da mesma sem dificuldade. - E quanto a você?
- Gostaria de voltar a enxergar as coisas como aos quinze anos. - Ela respondeu, pensativa. - Aos quinze, não tivemos tantas experiências, então a linguagem da vida permanece mais gentil, mais humana. À medida que amadurecemos, não deveríamos mudar; entretanto, as afirmações mais doces e ingênuas desaparecem, e em nossas línguas só restam cinismo e amargura. O mundo continua o mesmo, as manhãs as mesmas, as relações humanas também. Apenas viramos pessoas machucadas. Preserve sua boa natureza, querido, porque à medida que estiver no jogo da vida há mais tempo, o tempo tentará corrompê-la.
- Vou tentar, vovó. Vou tentar. - Daniel a abraçou e emendou um assunto distinto. Não era um bom momento para falar sobre dor. - Deixe-me tomar um gole daquele seu cafezinho antes de partir.

Subitamente, para um homem desprovido de memória, mesmo que revivesse na mente uma cena de 1995, navegava pelos espaços da casa como se jamais tivesse sido separado de seus cômodos e segredos. Era um sobrado de dois níveis, muito espaçoso, arejado e sempre iluminado, por causa das janelas de correr da sala de estar e principais quartos. Daniel saltou sobre a bicicleta, devolvendo o aceno de Gladys. Antes de ele sair, a avó não faltava à janela de onde acenava para o neto. Pedalando, constatou que seria uma manhã esplêndida, mas não o era sempre para jovens aos 15 anos? No estado de Jersey, dentre outros condados, Cape May se localizava mais ao sul, o melhor para se viver, um porto seguro às margens do Atlântico. Não por pouco, a ilha atraia turistas a ponto de ter hotéis e pousadas assoberbados durante o verão inteiro, inflando a população a um número próximo ao milhão. Apesar da movimentação intensa nos meses de férias, era uma cidade pacata e familiar, por mais que a agitação dos meses quentes sugerisse o contrário. Os visitantes canadenses e nova-iorquinos "batiam" os cidadãos da ilha numa proporção de nove para um! O tempero tropical engranzado na atmosfera era peculiar. Buxos enriqueciam o gramado desnudo entre altíssimos carvalhos os quais ladeavam a "descida" pela longa, ampla via principal de North Cape May, acompanhada por carris por onde o bonde circulava: o trem compartilhava a malha viária com o restante do suave tráfego automobilístico. Na alta temporada, o bonde era visto carregado de gente alegre. Por atender a uma demanda que não deixava assento vago, muitos passageiros seguiam a linha de pé, segurando-se às barras. Era excelente quando o bonde contornava a baía no ponto de inflexão, e sua face direita voltava-se à suave descida, a praia maravilhosa ao leste, vista de uma estupenda altura, que ia gradualmente ganhando cores e calor à medida que o bonde descia pelos carris, provocando um familiar friozinho na barriga e a altura ia sendo nivelada. Já em 1995, quando Daniel tinha quinze anos, falava-se que o encantador passeio seria substituído por uma novidade mais ágil e moderna. Havia um projeto ambicioso para se instalar light rails no lugar do velho bonde. Mesmo garoto, imaginava a confusão que tomaria conta de Cape May, durante as férias, assim que a administração começasse a executar o projeto. Trechos teriam de ser isolados. Por causa da procura, o tráfego da ilha ficaria caótico. Com a bicicleta, todavia, sempre a atravessar muito velozmente o largo e aberto cruzamento que o tirava do quarteirão e o colocava numa rota direta ao colégio, não tinha muito com o que se preocupar. Aos quinze anos, via o mundo pelo que de melhor tinha a oferecer, o futuro pelo seu absolutamente pleno, e os amigos, pelos melhores momentos, não pelos últimos. O firmamento era um azulado infinito, tão leve e hipnótico que observá-lo por um certo tempo faria as pálpebras pesarem. O céu estava riscado por nuvens de sedoso brilho que pareciam se dirigir, deslizantes, ao horizonte, entediadas pela própria perfeição.

Em 1995, Daniel Legrand era um garoto que tinha amigos e suporte para lembrá-lo de que a vida apenas começava a se espraiar inteira à frente. Notável pelo bom humor o qual o tornava um estimado colega dentre os demais, tinha "olhos diferentes" para um jovem, pois olhava para trás com uma variante de nostalgia própria a pessoas de passados muito dramáticos. Uma amiga especial teria definido perfeitamente seu olhar, mas para Daniel, ela era mais do que amiga; sua jornada de amadurecimento o permitiria enxergar melhor o modo como se sentia em relação a ela, ao fim. Era a segunda quinzena de setembro. O ano letivo avançava ao fim. O cansaço da turma refletia o peso do semestre. Em apenas dois anos, Daniel e os amigos estariam deixando o colégio para os campi, e o rapaz se lembrava da época em que a perspectiva parecera uma realidade afastada. O tempo verdadeiramente voara. Quando exercitava a imaginação quanto ao vindouro, angustiava-se. Estavam ele, Aramis, Max e Mac, seus três melhores amigos, conversando num canto no fundão da sala.

Aramis e Mac eram brincalhões, não queriam acordo com estudo. Viviam conforme a batida que melhor soasse aos ouvidos, e não havia problema: tinham tempo para se aprumarem, e a hora certa não era nem antes, nem depois; aconteceria na hora correta. Em seu devido tempo, despertariam para a chegada da maturidade e o salto para a transição ao mundo dos adultos, que, por ora, eram apenas fiadores de seus estilos de vida meio despreocupados e aéreos. Mais cuidadoso e sensível, Max portava-se um pouquinho mais comedidamente que Aramis e Mac. Assim como Daniel, Max amava filmes europeus, apreciava as artes. Apesar de suas pequenas diferenças pessoais, ali, juntos pouco tempo após a morte da mãe de Daniel, jamais haviam pertencido tanto à mesma página do que em 1995. Daniel demoraria muitos anos até reencontrar semelhante senso de integração, ele só retornaria à vida após completar trinta anos, ao salvar a turma da East Side. Aos quinze, porém, mesmo que semelhante parceria fosse bastante comum, não a subestimava, e enxergava o inestimável valor em tudo envolvido no colégio. Era o intervalo entre a terceira e a quarta e última aula da manhã. Assim como acontecia durante a "passagem do bastão" entre professores, a classe havia entrado em ebulição, uma grande balbúrdia.

Todos estavam excitados por causa do próximo domingo. Setembro era o mês dos Jogos de Praia; parte dos alunos do colégio disputaria vôlei e outras modalidades com os de outros colégios de Cape May. Daniel não fazia parte de coisa alguma, mas torcia pelos companheiros. Aquele ano, 1995, traria a terceira edição dos Jogos de Praia, e Daniel, que comparecera para aplaudir e torcer em 1993 e 1994, considerava passar "sob o radar" e recolher-se aos pequenos deveres de casa, agora que eram só ele e a avó Gladys.


- Eu realmente não sei, pessoal. - Daniel não sabia como se escusar do próximo domingo. Pressentia o desapontamento em face de sua recusa, e já tinha vergonha de encarar os colegas. - Sabem que torço por vocês, mas, nesses dias, a solidão tem consumido meu tempo.
 - Procurou explicar-se; a súplica na voz indicando seu desejo mais palpitante, o de "absolvição" dos colegas. Sabia que conseguiria ficar em casa, mas apenas se lhe acenassem com alguma resignação, algo que não o enchesse de remorsos, quando se encontrasse escondido dentro do quarto enquanto os demais desfrutavam as manhãs de sol na praia durante o tempo dos jogos.
- Não pedimos por você, mas pela gente. - Aramis não o perdoou, e o olhar pidão dava a prévia de que, mesmo contra à vontade, acabaria por aparecer mesmo.
- Não queremos exigir muito, mas há coisas que não se pode deixar de fazer pelos amigos, Daniel. - Sempre mais sóbrio e maduro, Max asseverou muito bem.

Escutou a voz do professor di Sofia e, como esperava, viu o pároco alto, magro, calvo e de óculos chegar à sala a passos muito tranquilos, conversando encurvado com uma aluna, a qual lhe mostrava um exercício no livro, ainda à porta da sala. Ao perceber que a aluna se tratava de Parker Cowan, um sorriso bonito em pura candura se desenhou nos lábios de Daniel. Era como se o mundo, após um período fora de foco em razão das confusões pessoais, restaurasse uma configuração familiar e aprazível. A maneira como seus olhos deitaram-se sobre Parker não passou desapercebida aos três amigos. Mac teve uma ideia e falou:

- Ela vai estar lá. - Falou, com uma indicação discreta do polegar.
- Não, ela não vai jogar. Você a está confundindo com a irmã. - Aramis lembrou.
- Não estou me confundindo! - Protestou. - Quis dizer, Parker comparecerá para torcer pelo time. Eu sei que quem joga é Robyn, e não Parker.
- Não digam esse nome perto de mim. - Aramis grunhiu, com uma expressão de desagrado, a que os outros estouraram com risadinhas.
- Bem, de um jeito ou outro, ótima notícia quanto a Parker, não? - Max pousou a mão fraternalmente sobre os ombros de Daniel. - Se soubesse o quanto gosta de você, não perderia tanto tempo com...
- Escuta, você só tem quinze anos, cara. Se Daniel precisasse de conselhos, compraria livro fajuto de autoajuda ou então faria a coisa certa e pediria orientação ao Padre di Sofia, então poupe-nos de... - Aramis lutou pela última palavra.
- Vá se foder e se meta com sua própria vida. - Max devolveu. Mais gargalhadas, e a soma de Parker mais as brincadeiras dos colegas acabaram por restabelecer saudavelmente a completa formatação do feliz mundo de Daniel, antes da morte da mãe. - Filho da puta, você passou o ano letivo inteiro copiando os gabaritos de minhas provas!
- E qual é o mal disso? Se existe um otário disposto a estudar para me fornecer as respostas de mão beijada, por que eu teria de estudar?
- Porque não o terá pelo resto da vida. - Daniel respondeu por Max, com razão. - Não há mal algum em levar essa fase na brincadeira. - Deu com os ombros e, numa linha de raciocínio mais prudente e pesarosa, explicou. - Posso ter quinze anos, mas sei que sentirei falta, uma vez que a festa acabar. Aproveite, Aramis. Apenas saiba que tem exatos dois anos de brincadeira. Logo precisaremos cair na real... - Franziu o cenho, compreensivo e ligeiramente preocupado com a inocência do amigo.

Professor di Sofia disse "Olá!" em bom som, mas apesar de o terem escutado, cada grupinho metera-se demasiadamente nas suas próprias confabulações para lhe dar imediata atenção. O professor bateu palmas e assoviou, até que foram, sem pressa, virando-se para a frente, com relutante curiosidade quanto ao que o adulto tinha a falar. Daniel deu um tapinha nas costas de Aramis e pediu que os amigos voltassem a seus lugares, pois "consideraria" o pedido com carinho. Podia até mesmo se ver repassando a história a Gladys, mais tarde, e a avó o censurando implacavelmente com vergonha e culpa "Você tem de ir, não pode fazer tamanha desfeita com seus colegas!".

- Atenção, galera, sei que estão cansados e focados nos Jogos de Praia! - Declarou, abrindo os braços, em constatação. - Não temos muito tempo até as provas finais, então vão ter que se acalmar um pouco! Prestem atenção na aula, haverá três questões de regra de três no exame! Prometo liberá-los mais cedo; entretanto, por ora, deixem-me fazer meu trabalho, sim? - di Sofia deslizou a tampa do estojo, quebrou um giz ao meio e se dirigiu ao quadro negro para começar, quando Aramis levantou a mão. Com uma careta de quem desconfiava que o moleque aprontaria alguma, di Sofia deu-lhe abertura. - Sim, mocinho, o que quer?
- Escute esta, turma, eu mesmo bolei:  - Sequer iniciara a piada, a rapaziada já levava as mãos às bocas, contendo as risadinhas, imaginando a graça por vir. di Sofia abaixou a cabeça e a sacudiu negativamente, também sorridente. - Imaginem só: professor di Sofia tá no confessionário, quando chega uma gostosa e diz que deu para o namorado e para o mecânico. 'Filha, você não se contenta com um só parceiro?', professor di Sofia pergunta. Ela responde: 'Você sabe como são as coisas, padre... Sou muito... Como é mesmo o termo? Volátil, isso'. 'Não, filha, o nome é volúvel, e não volátil', o professor di Sofia a corrige. Dois dias depois, essa sem vergonha tá de volta, afirmando: 'Dei para o padeiro e o carteiro, mas o senhor sabe como é... Sou muito... Como é mesmo o nome? Volátil'. E o professor: 'Volúvel, filha. A palavra que procura é volúvel'. Dois dias mais tarde. Adivinhem só? Essa vadia basicamente se materializa no confessionário: 'Padre di Sofia, eu trepei com o pai da minha melhor amiga e o cara que deixa o leite. Você sabe como é... Sou muito... Qual o nome mesmo?'. E o professor di Sofia: 'Puta, filha. Você é uma puta safada'. - A sala veio abaixo sob gargalhadas. Brincadeira acerca do sacerdócio do querido professor: a rotina começava a parecer cansativa, mas jamais cessava de emular gargalhadas, até mesmo pelo fato de o professor levar na gozação. Não por menos, era o professor predileto, uma presença luminosa nas vidas dos alunos daquele colégio e das crianças do orfanato que dirigia. Professor di Sofia detinha a alegria de viver e o amor ao Senhor numa carismática soma, não vista desde Venerável Fulton Sheen!  Apesar de aceitar a piada, havia o preço a se pagar por tamanha ousadia.
- Ótimo, filho. Agora você já pode se dirigir para a coordenação, por favor. - Fazendo um movimento com a cabeça, indicou a porta. Antes de deixá-los, Aramis subiu no plano mais superior sobre o qual os professores davam aulas, e curvou-se para receber os aplausos, como um autêntico artista. - Vamos ver se ele vai contar para os pais que foi expulso da sala com essa mesma marra.

Os ânimos foram se acalmando. Professor di Sofia introduziu: 'Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém. Inspirai, Oh Senhor, as nossas ações e ajudai-nos para realizá-las, para que em Vós comece e em Vós termine tudo aquilo que fizermos por Cristo Senhor nosso, amém. Santa Maria Mãe de Deus, rogai por nós. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém'. Agora, os jovens estavam serenos e inspirados, repetindo com devoção a oração puxada por professor di Sofia. Daniel sempre achava lindo o fato de di Sofia começar as manhãs com a prece em grupo, na sala. Então, o professor abordou a matéria. Houve um instante único, enquanto o professor diferenciava grandezas direta & inversamente proporcionais, quando, ao olhar novamente distraído para a saída, deu-se que Parker o observava há um tempo. Uma sensação de susto e felicidade anunciou-se bem no pé da barriga, como se lhe faltasse chão. O coração deu um salto, uma breve, benigna extra sístole que só uma poderosa emoção tinha como estimular. Ela não precisava vocalizar o quanto sentia pela morte da mãe de Daniel. O sorriso intimidado comunicava a mensagem de indubitável modo. Daniel meneou discreta e levemente com a cabeça, agradecendo. Era óbvio que precisavam - e queriam - conversar, contudo, por razões tolas, vinham deixando as oportunidades passarem. A menos de quinze minutos para meio-dia, conforme prometido, di Sofia os liberou. Max chegou a Daniel e se despediu pelo resto do dia:

- Se não o virmos nos Jogos, compreenderemos. Apenas prometa que considerará a possibilidade. - E então, como um irmão mais velho o teria feito, passou as mãos nos cabelos para bagunçar o penteado.

Daniel foi recolhendo os livros e caderno da carteira para a mochila, tentando avistar Parker por sobre os ombros de colegas, os quais o abordavam a caminho da porta pelos mesmos motivos de Max. Ele deve ter permanecido por mais uns dez minutos ali, pois logo a sirene anunciou definitivamente meio-dia, quando os alunos das outras salas e séries também foram liberados, levas e levas de jovens formando a feliz manada que começava no andar mais alto, o terceiro, e descia ao longo das escadas e corredores vazados, rampas de acesso na verdade, de onde se enxergava o restante do bloco. As salas eram muito arejadas e brancas, o campinho de futebol de salão, visível de outros pontos do prédio educacional, o maior bloco. No prédio de ensino, situavam-se a biblioteca, refeitório, cozinha, a praça de convivência no átrio central, espaços de inclusão digital e áreas para exposição de obras de arte e trabalhos artísticos. Era uma elegante unidade educacional, parecida a uma gota de tinta na tela branca que seriam as dunas naquela região essencialmente praiana. Os alunos desciam no sentido do portão principal como uma incontrolável avalanche de alegria. Daniel acreditou que seria o último a deixar. Ao vestir a mochila nas costas, deu conta do professor, sentado à mesa com a lista de chamada em mãos, batendo-a ritmicamente na borda, o terço enrolado numa das mãos.

- Oh, professor. Não havia me atentado!
- Como você está? - Aproximou-se, realmente não querendo soar intrusivo. Não havia jeito para abordar a questão, a não ser diretamente. - Leva tempo, você sabe.
- Melhor. - Ele respondeu, sem verdadeiramente acreditar em estar "tão melhor" assim. - Procurando melhorar. Sem pensar longe, com os olhos no agora, para saber onde piso. Não quero dar nenhum passo em falso.
- Isso. - Silêncio. di Sofia parecia ponderar, mexendo com um pedaço de giz entre os dedos. Ele então levantou o rosto e continuou, as expressões iluminadas por aparente e súbita ideia. - Bem, imagino que vá aparecer para os Jogos de Praia.
- Sim, sim. - Deu com os ombros, com bom humor. - Estão a me amolar para aparecer!  - Os dois riram.
- Ainda em dúvida? Mesmo sabendo que Parker comparecerá? - Mais risadas. Agora, o enrubescido Daniel entregava o sentimento "secreto" por Parker, escrito no rosto corado.
- Mas que diabos, até você sabe?!
- Olhe, não quero desapontá-lo, mas todos sabem desde aquela festa surpresa no laboratório de química! - E o professor tinha razão. Os companheiros entoando "Com quem será?" e respondendo com o nome de "Parker", no ano anterior, 1994, deixara forte impressão para mesmo hoje deixá-lo ligeiramente encabulado. - Ela se sente semelhante em relação a ti.
- Eu não teria tanta certeza. - Discordou, com uma expressão cautelosa.
- Bem, eu acho que ela gosta, sim, e se me perguntar por quê, acho que por ter mais idade que todas as de vocês somadas, e enxergar coisas que aos 15 anos não conseguimos... "ler", por falta de um termo melhor. - O professor pousou as mãos sobre os ombros do rapaz, e fez questão de lhe lembrar. - Mas, sabe, mesmo que ela não se sinta assim, a verdade é que as emoções não são tão importantes.
- Não são importantes?
- Não. Gostei do termo que usou, "nenhum passo em falso". Venha, vou lhe explicar.

As esquadrias das cortinas de vidro oscilavam ao toque da brisa morna, mais abaixo. O professor o encorajou com um ligeiro tapa no braço e pediu que o acompanhasse para cima. Subiram as rampas, o colégio praticamente vazio. Na cobertura, subiram as escadinhas a levarem ao ponto mais alto. Ali fora, a vista do espaço circundante era esplendorosa, a sensação de liberdade incomum, realçada ao sabor do cálido início de tarde. Sobre o concreto, a sombra engrandecida tremulante da bandeira do estado de Jersey fazia ondas que pareciam mágicas, uma miragem produzida pela refração da luz solar temperada pela altíssima temperatura.

- Professor, por que falou assim sobre... - Ia começando. di Sofia o interrompeu.
- Isso, sobre as emoções. Eu disse que não são tão importantes, especialmente quando confrontadas com as coisas permanentes, fundamentais. Muito embora eu ache que Parker sinta tamanha emoção por ti, lembro-o de que as emoções não são as colunas sobre as quais quererá erigir sua vida.
- Como assim?
- Seus fortes sentimentos por Parker fazem-no crer que não haveria um maior bem do que tê-la como namorada. Mas o namoro é algo mais. - O padre olhava para o mar, à distância um borrão aquoso azulado indo ao encontro do abrasivo branco que era a praia. Ele encarou o rapaz. - O namoro é o tempo da concórdia. É o tempo de você e Parker colocarem o coração no mesmo lugar. Ou seja, concórdia é isto: coração no mesmo lugar. Se vocês pretendem um dia se casar, devem ter os corações nas mesmas coisas, as coisas importantes, as coisas que verdadeiramente importam.
- Eu me sinto tão bem na presença dela.
- Eu sei, e é ótimo; porém o namoro não é somente um tempo de diversão. O namoro é uma viagem com um objetivo. Se você sabe onde quer chegar, não vai se perder no caminho, não vai dar nenhum passo em falso. E o mais importante: você não correrá riscos de se machucar. O namoro é tempo de amor, mas o contrário do amor não é odiar. O oposto do amor é usar e jogar fora. Disto, depende não somente a sua salvação. Disto, depende o destino eterno, a salvação, da sua esposa, dos seus filhos, da sua família. De tudo o que fizer a partir daqui. Então, vamos lá. - di Sofia lhe deu um tapa camarada no peito, encorajando, e o virou com a mão no ombro no sentido do mar, para que o visse tão lindamente. Ele finalizou: - Medite na verdade, meu filho. Estude, reflita. Comece já jovenzinho a preparar sua viagem para o céu.
- Obrigado. Obrigado, padre di Sofia. - O rapaz balbuciou, os olhos cheios de lágrima. De repente, deum uma alta risada ao reparar que era a primeira vez que se referia à pessoa do professor como "padre". di Sofia riu também - Sentirei sua falta quando o ano letivo terminar.
- Vocês passarão para o segundo ano, porém permanecerei indo e vindo entre o colégio e o orfanato. Velhos professores como eu sempre estão por perto. Não mais como professor, mas como amigo, ao menos eu espero. Hoje, tenho meus alunos como amigos, e os meus ex-alunos, como amigos e filhos espirituais. É quando essa gente chega casualmente, após tantos anos, para conversar em um supermercado, por exemplo, para me falar que estão matriculando os filhos pequenos no mesmo colégio, que eu tenho noção de há quanto tempo estou fazendo isso!

Seguiu-se uma pausa, a quietude servindo para sedimentar o significado de um diálogo tão breve e importante. Sobre a cobertura, viam a envergadura do grande estacionamento, quase deserto, não fosse por meia dúzia de carros de professores, ainda nas imediações para adiantar a correção de exames. A brisa chicoteava suas roupas, em especial a batina de professor di Sofia, e fazia um uivo em iguais medidas triste e tocante. Embora refrescante em cima, o abrasivo sol do meio-dia castigava a terra. Daniel deu um abraço no professor e desceu correndo as escadas. Ao passo que a malha viária atingia o ápice para os lados de downtown North Cape May, ali, um terreno elevado a encimar a porção mais nativa da praia antiga, só havia prédios comerciais menores de cortinas de aço abaixadas, calçadas ainda preservadas em charme e beleza, e ruas muito largas, tudo mesclado a uma aura de glória do passado, agora que novos tempos haviam empurrado a sofisticação e o glamour para os lados de downtown ou para a praia nova. Daniel pedalava sossegadamente em direção à caserna das cancelas, quando Parker a deixou e encostou-se à guia. Daniel sorriu e traçou meio círculo, parando ao lado da colega.

- Olá, Parker, tudo bem? - Perguntou, tentando soar como cavalheiro.
- Finalmente chegou. Esperava por você, seu tolo! - Daniel deu um sorriso inseguro e surpreso. Ela explicou: - Ouvi falar sobre quão maravilhoso é descer pela pista principal, ao lado do bondinho. Sei que faz esse caminho de volta para casa ao meio-dia, não?
- Não há nada melhor. - Elogiou, apoiando os braços sobre o guidão. - Um pouquinho assustador, também, porque, se olhar para o leste, verá o penhasco em curvas até nivelar com o mar. É uma vista incomparável justamente porque, de onde estamos, parece muito inclinado. E quando se faz a curva para downtown, há um último instante quando começamos a deixar a parte alta que dá o famoso friozinho na barriga. Eu só o sinto em duas circunstâncias.
- Uma, quando desce de bicicleta, e a outra... - Parker foi citando, baixinho, com um olhar penetrante. Ela o pegou desprevenido.
- A outra, quando você me surpreende com tanta beleza que me tira o fôlego. Eu estou feliz que esteja aqui. Suba. Sempre é tempo de conhecer a descida pela via de entrada!

Daniel e Parker cruzaram as ruas muito arborizadas e tranquilas a uma velocidade moderada, entretidos com o momento. Ela o segurava com os braços ao redor da cintura, e a sensação de intimidade era sensacional. Sentia que seria o garoto mais feliz do mundo, se o passeio tivesse como durar mais; se, em vez de deixá-la saltar em downtown North Cape May, seguisse pedalando, Parker sempre às costas, braços o cercando na linha de cintura, por um longo, longo percurso, que durasse a tarde inteira, e talvez terminasse apenas quando atravessassem o sinal de Elizabeth, o lugar onde efetivamente se reencontrariam quinze anos mais tarde, como dois adultos. "Preparada?", perguntou, ao frear a bicicleta no alto da avenida de acesso. Parker o apertou mais forte, os dedos de Daniel fechando-se nos espaços entre os nós. Rajadas fortes de vento golpeavam suas faces, e vários estilos de azuis, todos claros, balanceavam-se em tons harmoniosos no céu de uma inesquecível tarde em 1995. Conseguia escutar a balada suave e rítmica do After 7, "Till You Do Me Right", a romântica melodia para amores impossíveis de meados da década de 90. A recordação era tão real que, mesmo absorvido pelo sonho, lágrimas banhavam a face de um Legrand adulto, em 2010, a se recordar de tudo aquilo.

Daniel "voltou" a 2010 de maneira gradual, vencendo camadas e mais camadas de inconsciência até finalmente chegar a sua cama. Real que tivesse lhe parecido descer pela avenida, compreendeu que apenas revivera um dia há muito perdido. O ritmo de "Till You Do Me Right" permanecia nos ouvidos. Ao despertar, sentiu-se grato por ter vislumbrado uma porção da vida noutros tempos. Os olhos foram se abrindo. Além da enraizada dor no ombro sobre o qual adormecera, também sentia a presença de outra pessoa na cama, `as suas costas. Era um braço feminino, instalado sonolento no quadril. Ela o estudava com um olhar carinhoso. Daniel se virou e a viu, retribuindo a surpresa da companhia com um sorriso. Não se assustara, o que era impressionante. Mesmo depois de tantos anos, existia naturalidade entre os dois. Daniel estava curioso para escutar de Parker o que acontecia.


- Parker? - As pontas dos dedos tocaram o rosto de porcelana da atriz.

- Liguei para Gladys, ontem, para saber do concurso, e ela me contou que pegara a estrada para Cape May. - Explicou, segurando os dedos do rapaz e lhes transmitindo calor. - Ela me contou sobre o hotel. Foi meio difícil ganhar acesso ao quarto, mas ei, as pessoas são fascinadas por atores e, pelo que eles me contaram, você já falou de mim. Esse hotel fica próximo a um lugar que significou muito.
- Refere-se `a entrada antes da descida para a praia? - A urgência fez de seus olhos turmalinas brilhantes pela força do marejar das lágrimas. Parker sacudiu afirmativamente a cabeça e se sentou sobre o colchão, com as pernas dobradas. - Porque eu acho que me recordei... Vi o colégio, vi o professor chamado di Sofia... - Começou a enumerar, cada descrição recebida com um sorriso crescente e confirmador por parte de Parker. - Oh, Deus, parecia tudo muito real! A cobertura do colégio, o leito do mar à vista...
- Professor di Sofia, Aramis, Max, Robyn... - Ela foi nominando, enxergando muito mais adiante. - Os rostos voltarão mais facilmente se você não se precipitar, mas demorará a fazer sentido. Daniel, preste atenção... - Parker segurou as mãos dele. Agora, estava completamente desperto. O rádio relógio indicava dez para as seis da manhã. - Gostaria que não se aventurasse por Cape May sem mim. Se você se lembrou de um dia de 1995, então certamente me encontrou naquelas imagens...
- Sim. - Concordou, passando as mãos sobre o rosto lívido. - Você se recorda da primeira vez que descemos a ladeira?
- Recordo-me de como me senti segura às suas costas. Recordo-me da maneira que a luz do sol desenhou um traçado em seu queixo, na tarde na qual vencemos a grande descida. Você e eu ficamos `a beira da encosta... - Parker apertou o queixo de Daniel e o aproximou de seu rosto. - E nos beijamos pela primeira vez. - As bocas se conectaram, permanecendo por um tempo saboreando-se, sem que o dia que apontava por entre cortinas frustrasse suas pueris intenções de fazer o resto da madrugada durar.

A mala de Parker fora deixada num canto, entre um dos pés da cama e a sapateira em madeira maciça. Ela trouxera roupas, preparada para ficar com Daniel pelo tempo que ele resolvesse permanecer em Cape May. Depois do banho, Daniel vestiu as roupas leves compradas na tarde anterior. Os dois se deram o agrado de passarem um tempo, não mais que meia hora, abraçados, assistindo através da moldura da janela à rapidez com que a manhã ganhava ânimo de dia útil. Não custou, o rumor de vozes e motores deu ao mágico momento da transposição de madrugada para dia o familiar rosto da vida deliciosamente ordinária. De mãos dadas, o casal foi tomar o café da manhã. Parker não imaginaria que os seus filmes "difíceis" eram admirados por aquela gente, e embora apreciasse North Cape May por conseguir misturar-se sem dificuldades aos cidadãos, apreciou o contato com o pessoal familiarizado com seu trabalho. Era fascinante tornar carne e osso uma fantasia que, pelo menos para os membros da staff, até então, representava inalcançável mistério.


Daniel e Parker deixaram o hotel com planos de aproveitarem a segunda-feira de uma maneira suave. Parker queria levá-lo a um passeio por North Cape May. Quanto menos adiantasse sobre os lugares, melhor, pois talvez as lembranças viessem a seu tempo, em vez de ela o bombardear com novas informações que não fariam muito sentido, a não ser que brotassem naturalmente do próprio Daniel. Antes de subirem para a estação de embarque na interseção entre Washington Jackson Street, compraram uma bisnaga de protetor solar e dois pares de óculos. Subindo pelas calçadas de mãos dadas, sentiram-se incrivelmente transportados para aquela tarde em 1995, o ardor da manhã rivalizando com a força do calor que emanara do piso da cobertura do colégio, na recordação da noite anterior. Parker quis apresentá-lo a um canto de onde se viam os pássaros migrantes. Cerca de quatrocentas espécies de pássaros haviam sido documentadas na região. O bondinho era tudo de que precisavam, pois circulava pelo entorno dos pontos turísticos que ela tinha em mente. Desembarcaram na estação do parque. Às dez e meia, o gramado recentemente molhado, requentado pelo sol, recebia-os como um ente vivo, volitivo, um tapete exuberante cujos humores variavam ao toque do vento. Desceram por uma trilha de pedrinhas brancas ladeada por canteiros de margaridas de grandes coroas. Sobre os galhos das árvores, passarinhos amarelos trinavam, e Daniel gostou de fantasiar que o faziam especialmente para recebê-los. Espalhadas pelo gramado, sob sombras, famílias realizavam piquenique.


O observatório consistia num amplo arco cujo chão era formado por tábuas lustradas de madeira, e elas cheiravam a óleo de cedro. Era uma torre tão alta que se podia tocar os ramos das árvores mais frondosas, e, quando o vento avivava mais forte, segurar os galhos. Pássaros de cores heterogêneas saltavam e se bicavam ao alcance dos dedos dos visitantes. Crianças arremessavam punhados de alpiste, e os passarinhos desciam em espiral às tábuas para pôr-se a brigar pela ração, mesmo havendo comida suficiente para muitas revoadas. Parker observava as crianças com uma serena expressão de empatia, e então procurava por Daniel, que parecia sempre preocupado com o bem da companheira. Ele a abraçou por trás, e ambos se encostaram ao parapeito, um sistema de treliça de madeira. Um guia do parque discorria sobre o movimento migratório dos pássaros através das mudanças de estações. Crianças tinham mesmo uma senhora criatividade: um garotinho perguntou por que os bandos tendiam a voar em formação de "V". Mesmo Parker e Daniel esperaram pela resposta, pois jamais haviam pensado na questão! O moço lhe disse que o faziam por pura estratégia de navegação. Com a formação, as batidas de asa das aves à frente geravam deslocamento de ar e, portanto, momentum para as que viessem atrás. A resposta fazia sentido. Daniel e Parker uniram-se à área onde famílias realizavam piquenique, e se sentaram aos pés de uma árvore. Ao se sentarem, o farfalhar de muitas asas. Um bando repentinamente deixou o dossel das árvores, pareceu estacionar momentaneamente no ar, quando fez a correção para a direção do vento, e partiu para seu destino. Frente a frente, Parker tomou as mãos de Daniel e as deixou descansar no colo.


- Você está gostando? - Ela perguntou.

- Não me arrependo de ter pegado a estrada para cá. - Foi a resposta de Daniel. - E o fato de você ter me encontrando tornou a visita melhor. Não sei o que fiz para merecer a atenção, mas farei o melhor para honrá-la. Obrigado.
- Você é um homem bom. Eu me sinto grata por desfrutar de sua companhia. - Declarou, num tom que soou momentaneamente cheio de remorsos, a dor de quem sabia reconhecer nos valores de Daniel a grande importância, mas temia tê-los reconhecido tarde demais.
- Em pouco tempo, tenho aprendido muito. - Devolveu, igualmente movido. Para atenuar a eletricidade, temperou com a brincadeira. - O único "porém": você está regulando a nossa primeira noite de amor, mas tudo bem, a espera a tornará mais importante! - 
- A primeira? - Fingiu estranhamento. - Fizemos amor pela primeira vez lá atrás, nos anos 90!
- E eu não me lembro, dá para acreditar? - Abraçou-a. Com o seu peso, fê-la cair de costas para a relva umedecida. - Fazer amor com uma "alienígena" vinda de uma galáxia tão distante!
- Bem, naquela época, faltavam muitos anos para "Distant Lights"! - Num impulso, foi sua vez de ficar por cima. Ela soltou os cabelos, que fizeram cócegas ao brevemente pincelar o rosto de Daniel. - Ei, eu estava apenas brincando sobre termos feito sexo nos anos 90! - Agora, os dois deram sonoras gargalhadas.
- Sinto-me melhor: odiaria desapontar padre di Sofia. As coisas lindas ditas sobre a seriedade do namoro, o amor, a concórdia. Sobre não usar, sobre o amor como finalidade. Olha, se for para obedecermos o padre di Sofia, agarração só para depois do casamento! - Comentou, nostalgicamente, e com bom humor. Apenas acabara de se recordar da figura daquele professor especial, mas o sentia tão próximo a sua pessoa que achou estranho. - Parker, padre di Sofia ainda vive? - Ela reagiu com surpresa à questão. Era óbvio que sabia a resposta; entretanto, esperava que estivesse claro para Daniel também. De sua boca, pareceu sair o começo de uma pergunta, como se quisesse indagar: "Mas você não o reconheceu ainda?". No último segundo, ela se segurou, sorriu e insistiu que não se apressasse. As respostas viriam. Daniel
 a aproximou, com a mão na nuca, até acomodá-la a seu peito.

Os dois se desconectaram das demandas de suas vidas. Assim como aos turistas visitantes de Cape May, a pressa não existia. Por ora, não existia algo mais urgente que admirar a maneira como os raios de sol ultrapassavam a camada de copas das árvores. Qualquer pressa os faria perder a riqueza dos detalhes. Quando a tarde se avizinhou, voltaram no bondinho, e saltaram no calçadão na altura da praia. Parker tirou as sandálias, e Daniel os chinelos. Os dois correram para o quebra-mar com o ânimo de quarterbacks numa partida decisiva. Jogaram-se de mãos dadas às marés e foram engolidos pelas espumas feitas pelas ondas ao apanharem em cheio a linha da praia. O mundo, por vezes, parecia refrescante e delicioso ao se envolverem num abraço sob a água, por outras vezes, ficava abrasivo e cheio de vida ao emergirem para recuperar fôlego. De qualquer forma, não se lembravam de terem sido tão felizes quanto o eram agora. Os restaurantes da enseada, ocupados, produziam uma maravilhosa sensação de segurança e celebração. Daniel e Parker atravessaram a rua e retornaram para o hotel.

Existia tanta verdade nos conselhos de Padre di Sofia que o fato de Daniel ter se recordado de sua ensolarada e importante presença assumia contornos de uma operação da providência divina. Ele não teria hesitado em fazer amor com Parker, porém algo vinha trabalhando numa conversão dentro de si. Deitado com a atriz na cama do quarto, com Parker descansando a cabeça sobre seu peito, soube o quanto gostaria de caminhar pela estreita, mas recompensadora via que Padre di Sofia lhe preparara, aos quinze anos, ao vocalizar o quanto era tempo de preparar a escalada para o céu! A beleza das passagens trazia lágrimas aos olhos. Daniel a apertou nos braços e Parker lhe lançou um olhar inquisitivo. Ele murmurou: "Não é nada, eu apenas te amo", e ela sorriu, respondendo com uma interessante escolha a qual não rompeu o propósito da castidade de ambos, porém trouxe uma adorável proximidade e calor à forma como se entrelaçavam. Parker subiu um dos pés pela canela de Daniel, e o deteve ao tocar o pé do namorado. Ela os esquentava, seus pés nos deles. Legrand refletia sobre o discurso do professor, e somente uma hora depois notou que ela dormia. No rádio relógio, Klymaxx reiterava votos de amor numa linda rendição de I'd Still Say Yes. Seus pensamentos retornaram ao momento no qual mencionara Padre di Sofia, e ela se surpreendera perante sua pergunta, sobre se ele vivia. Era como se tivesse de saber da resposta, mas como di Sofia seria uma parte atual de sua vida, quando não conseguia vê-lo? Ou o via sempre, apenas não o reconhecia por quem ele verdadeiramente o era, o professor do colégio em 1995? Com esses mistérios interessantes, foi sendo levado ao sono. 
 
Daniel acordou no finalzinho da tarde. O cansaço dos estudos dos meses anteriores e a correria do passeio daquela manhã haviam mostrado seu peso acumulado. Beijando-o um pouco abaixo da orelha, Parker recomendou: "Durma um pouquinho mais. Tenho que dar uma saída, mas volto para apanhá-lo para o jantar". Ela deixou a cama e se trancou no banheiro. Minutos depois, Daniel pôde escutar a ducha no box. Esfregou os olhos e bocejou, alongando a espinha ao se levantar. Ele redobrou as vestes cobrindo-se com o lençol para se proteger do frio que sentia e, escondido por entre cortinas semicerradas, estudou o modo como o dia cheio de aventuras ia embora sem queixas. Calculou que, `aquela hora, Giro devia ter ligado para casa procurando por ele, e Gladys lhe contara sobre Cape May. Empurrou a porta e a encontrou se enrolando na toalha. Abriu a torneira e enxaguou o rosto.

- Volte a dormir, querido. Eu prometo não demorar. – Parker insistiu, ajoelhada ao lado da mala para apanhar roupas limpas.
- Para onde vai? - Perguntou, sentando-se na cadeira da escrivaninha.
- Ver a Robyn. - Respondeu. Daniel se lembrou do sonho, da menção rápida ao nome de Robyn. - Ela ficará em Cape May por uma semana. - Ia seguir com os comentários detalhados, até se ater que ele não se recordava. Ela descansou o queixo sobre o joelho de Daniel e "reduziu a marcha". - Desculpe, querido. Robyn é a minha irmã. 
- Eu sei. - Ele disse, e Parker empertigou a cabeça, interrogativa. - No meu sonho, ou melhor, na lembrança, um dos meninos mencionou esse nome. Ela fazia parte... De um time de esportes?
- Sim. - Respondeu, admirada. - Que bom, querido, logo se recordará do restante. - Ela o elogiou, beijando-o no joelho e apertando o abraço `a perna como um bicho preguiça. - Para nós duas, nossa ligação a Cape May resume-se a nossos pais e passado. Robyn é psiquiatra do Hospital Monte Sinai de Nova York, e eu sou uma cidadã "do mundo". Pelo menos, até agora. - Os dois riram, e Daniel acariciou os cabelos dela. - Depois que te recuperei, preciso me aquietar! Não quero que escape entre meus dedos novamente!
- Oh, linda... - Daniel notou a pontinha de tristeza do comentário, e não a deixou passar desapercebida. - Por que sempre menciona que me deixou escapar? Não imagino que eu tenha sido tão estúpido de ter me afastado propositalmente. 
- Prometo não demorar, tudo bem? - Usou um dos joelhos como apoio para se levantar. - Vou levá-lo para jantar num excelente restaurante `a beira mar. Muito romântico, por sinal!
- Eu preferiria um caldo de feijão, e poderíamos comer aqui mesmo no quarto!
- Sabe, acho que conseguirei te convencer a comer fora! - Parker insistiu. Após vestir-se, deu uma volta para que a visse por completo. - O que acha?
- Você está fantástica. - Opinou, aplaudindo. Parker sentou-se sobre seu colo e o abraçou. - Volte logo, pois estou faminto!

No bar do hotel, lindamente ornado, com um jardim suspenso em estilo italiano, e móveis de design propositalmente rústico e elegantíssimo, Robyn escrutinava seu drinque, pensativa. Havia uma farta mesa de frios com variedades de doces e salgados, sumos que haviam acabado de deixar o serviço de cozinha, sucos e brioches. Robyn parecia examinar a carta de café, quando Parker empurrou a porta de vidro a separar Lobby Bar de lounge. Robyn tinha 32 anos de idade, era loira, e seu rosto anguloso de traços clássicos a tornava a personificação de uma virtuosa heroína de filmes românticos baseados em romances de Nicholas Sparks. Simultaneamente, sob a ilusão de fantasias emotivas, existia um elemento secreto e traiçoeiro, impossível de se pinçar. Só foi dar pela irmã quando a atriz se aproximou para beijá-la no rosto. Allen Corliss, o marido de Robyn, chegou logo mais, e a maneira como aparentava pressa indicava sua preocupação com o atraso para o encontro. Allen era um juiz federal e importante jurista; conhecera Robyn por causa de Bill Cowan, o pai de Robyn, afinal pertenciam ao mesmo meio jurídico e ele o via como excelente partido para a filha mais nova, a sua cachinhos dourados, a quem chamara "Goldilocks" quando menininha. Elegante e cordato, fazia lembrar um "jovem James Brolin". Seu cavanhaque perfeito era de um preto intocável, mas as entradas começavam a mostrar cabelos grisalhos. O motivo da visita a Cape May era a semana jurídica, quando os campi recebiam alunos para uma série de palestras interessantes e pertinentes aos problemas da ciência do Direito. Robyn tinha outros motivos. Antes da cadeira de pesquisadora da ala de psiquiatria do hospital Monte Sinai de Nova York, trabalhara na Guarda Costeira, cargo conquistado logo após seu primeiro concurso, o mesmo no qual Daniel Legrand também figurara como aprovado, quase dez anos antes. Robyn tinha muitos amigos em Cape May

Robyn escutava a Parker falar com entusiasmo sobre os testes para o novo filme de Ken Loach em Londres, e sobre sua personagem Marie Pasteur, a companheira de Louis Pasteur, na cinebiografia cujas filmagens começariam a se engrenar no primeiro semestre. Robyn conhecia os motivos de Parker ter voltado para casa, e quando a irmã procurou contornar a questão, compreendeu que ela se sentia insegura ao falar de Daniel. Ela se esforçou para não explicitar a frustração, comprometendo-se a se comportar, mas quando Allen fez um comentário passageiro sobre o rapaz, Robyn teve de aproveitar a oportunidade para saltar na oportunidade:

- Você já o procurou, então? – Perguntou, girando sedutoramente o copo de whisky, as pedrinhas de gelo tilintando. Antes que Parker respondesse, Robyn deu um curto gole e continuou. – Depois de tantos anos, foi um milagre terem se reencontrado.
Eu o encontrei. - Ela fez questão de corrigi-la, mesmo que não parecesse mais necessário. - Daniel não se recordava de nada. Se eu não o tivesse procurado primeiro...
- As pessoas dariam um braço para esquecer, querida. - Robyn comentou, esforçando-se para soar fria, mas falhando por dar sinal de passionalidade quanto ao assunto. Seus olhos encurtaram, enquanto sombras bruxuleavam no rosto por conta da elegante luz de vela. Allen parecia desconfortável.
- Robyn, por favor. - Allen procurou demovê-la, com certa discrição. Parker fez um tímido gesto com a mão, indicando que a deixasse continuar.
- Não, veja bem. - Robyn sacudiu a cabeça, a tensão superada. Ao explicar-se para o marido, também o fazia para a irmã. - Apenas não quero que Parker se machuque novamente. Você consegue me compreender, não é?
- Sim, sim. - Disse, os olhos fechados, meneando a cabeça com a eletricidade de uma pessoa inofensivamente magoada. Justificou-se. - Nós estávamos aos vinte e poucos quando nos afastamos, Robyn. Você não consegue enxergar quão pequenos eram nossos problemas, dez anos atrás? Não vê que eram plenamente contornáveis, se apenas tivéssemos nossas cabeças no lugar?
- A vida não funciona assim. - Respondeu, com empatia e realismo. - Há uma razão para a maturidade vir com tempo. Talvez não seja prudente enxergar tão bem antes do momento certo. Você afirma que os problemas que os afastaram teriam sido contornáveis, porém como saber o desdobramento se tivessem efetivamente terminado juntos?
- Robyn, eu não conseguirei fazer isso sem você! - Lamentou, a voz subitamente assustada e insegura.
- Eu sempre estarei ao seu lado. - Segurou o pulso da irmã e a afagou na maçã do rosto com o peito da mão. - Daniel está na cidade?
Tão fácil deduzir? - Brincou, com os olhos cheios de lágrima, mexendo nos cabelos molhados, típicos a quem recentemente deixara o chuveiro. Robyn entendeu que Daniel não apenas se encontrava em Cape May, tinha Parker como companheira de quarto em algum hotel na praia. - Não posso me demorar. - Parker pôde enxergar o desapontamento nas linhas de expressão da boca de Robyn, e então emendou. - Escute, Robyn, você nem o reconheceria. Nem quis transar comigo esta manhã! - Anunciou, subitamente se dando conta das palavras pesadas e olhando para os lados com medo de ter se exposto. Aquilo eliminou a tensão, os três riram da situação. Ela continuou: - Ele está tão diferente... Falando de coisas como namoro como um caminho para o céu, família... Fala-me entusiasmadamente das coisas que o di Sofia costumava dizer quanto tínhamos quinze anos! Perguntou-me se o di Sofia tá vivo, acredita?
- Como assim? - Robyn custou a crer na profundidade da amnésia de Daniel. - O di Sofia não deixou tudo para acompanhá-lo com a avó?
- Pois é; entretanto, para um homem sem recordações, ele não consegue reconhecer di Sofia! Olhe, veja bem, nós programamos uma surpresa para Daniel, no bar do píer. A turma da Guarda Costeira, mais os amigos dos tempos de colégio.
- Sim, eu fiquei sabendo. - Robyn a surpreendeu. - Os velhos amigos da Guarda Costeira também são os meus, bobinha. Eu e ele começamos juntos. Fico feliz que tenha me incluído, mesmo que em cima da hora. - Ela brincou. Com sua peculiar elegância, Allen aproximou-se por trás de Robyn para cobri-la com o blazer lápis estilo europeu, preparando-a para partirem.

Para Daniel, Parker contou que o levaria para jantar num excelente restaurante na marina, e não chegou a mentir. Realmente, levou-o `a marina, porém Daniel se deparou com uma chocante novidade ao entrar no restaurante. Ele não fora levado a um jantar comum. De supetão, luzes foram acesas, e aplausos irromperam das mesas no terraço e no mezanino, numa recepção surpresa que não teria imaginado. Ligeiramente aturdido, tentou articular palavras de gratidão, mas os amigos - cujos rostos não conseguia ainda particularizar - foram abraçá-lo e felicitá-lo. Parker o conduzia, sussurrando uma ou outra explicação, exercendo o ofício que a memória falha não tinha como atender. Uma das últimas pessoas a chegar para cumprimentá-lo foi Robyn. Por um motivo o qual lhe escapava, sentiu-se eletrizado, e abriu um sorriso mais à vontade `a presença da irmã de Parker.


- Acho que Parker deve ter falado de mim? - A voz também atiçou a impressão de familiaridade. A intuição ensaiava abrir cortinas para alguma verdade importante, mas Daniel não conseguia operá-la bem. Por enquanto, precisava contentar-se com a convicção de que Robyn fora tão importante que, mesmo não se recordando diretamente de sua função, o eco da participação ressoava nas muralhas que aprisionavam o passado em algum recanto distante na mente.

- Desculpe se pareço meio desleixado. - Respondeu, preocupado. - Se não recuperar as minhas faculdades completamente, espero readquirir familiaridade com todas essas gentis e prestativas pessoas presentes. Imagino que tenhamos nos conhecido?
- Trabalhamos juntos na Guarda Costeira, sim. - Contou, com a afabilidade de quem acabara de se recordar de um momento bonito e secreto no olhar.
- Interessante, pois tive um sonho, e imagino que, na verdade, trate-se de recordação. - Por um motivo qualquer, sentiu a necessidade de confidenciar. - Uma lembrança de 1995. Vi o prédio do colégio, a praia, alguns amigos que devem estar aqui hoje. E um dos garotos a chamava pelo nome. E um campeonato esportivo entre colégios de Cape May?
- Sim. - Robyn sorriu, abaixando o rosto, embaraçada pela referência a seus dias mais selvagens de adolescente. Logo se recompôs, e o ajudou a preencher as lacunas, com bom humor. - Eu fazia parte de tudo quanto era time. Você está se aproximando da verdade, Danny.
- Espero não demorar muito a encontrar a verdade, sabe? Eu deixei vovó em casa, sozinha, e ela me preocupa... - Ia falando, aberta e inocentemente. - Deixou uma das bocas do fogão ligada, poderia ter...
- Nossa! - Robyn comentou, genuinamente surpresa.

Neste ínterim, chegou um jovem cavalheiro cujas laterais do cabelo detinham um prematuro grisalho, elegante em seu traje esporte fino: o terno azul-marinho beneficiava-se da ausência de gravata, dando-lhe o charme do despojamento. Os sapatos italianos marrons combinavam com o conjunto. Antes que se apresentasse, Robyn beijou o visitante na face numa intimidade de quem o conhecia há décadas, e concluiu o encontro:


- Nós nos falamos depois, então? - Ela convidou, e Daniel meio que balançou afirmativamente a cabeça, bastante intrigado com a montanha russa de pressentimentos incitados pela misteriosa moça. - Não se preocupe. Nós teremos tempo.


Ela os deixou. Sua caminhada era casual e à vontade, desenvolta como uma modelo ao longo da plataforma da marina, um lugar muito bonito, ainda mais deleitável ao sabor da noite no litoral, quando grandes lanternas eram iluminadas nos lados das principais passagens e caminhos. Os amigos presentes `a homenagem confraternizavam na ponte. Alguns tinham sentados nos bancos de madeira existentes em distintos pontos do píer; outros de pé, encostavam-se ao parapeito. Do atracadouro, chegavam as luzinhas de pequenos barcos ancorados. Daniel divertiu-se com o pensamento impulsivo de que adoraria deixar a vida para embarcar num daqueles e experimentar a vida de porto em porto, vivendo uma existência despreocupada e transitória. Enquanto assistia a Robyn  se afastar, a memória lhe fez cócegas: há meses, talvez, despertara de um sono rindo e, não obstante não se recordasse do que pensara, ver Robyn lhe dera a estranha impressão de que fora algo envolvendo a irmã de Parker. O homem recém-chegado lhe estendeu a mão. A pressão no aperto lhe pareceu estranhamente familiar, sensação que lhe ocorrera tantos momentos naquela noite. De alguma maneira, Daniel soube:


- Max?

- Daniel. - Correspondeu o reconhecimento, com um tom agradecido e cortês. Não satisfeito em apertar as mãos do amigo, deu-lhe um abraço. - Então você se recorda?
- De um dia muito feliz e distante em 1995, ao menos. - Especificou, embargado pela emoção. - Um dia do qual você fez parte. Espero me lembrar do restante.
- Quando eu o vi na televisão, no último Natal, repensei aquele tempo, como um filme passando diante de meus olhos. Havíamos perdido contato, mas talvez esteja dando um passo maior que minhas pernas. - Max sorriu, um sorriso resignado, quase triste, e explicou. - Há uma porção de detalhes para explicar o contexto de meu afastamento, e o fato de não se...
- É assustador. - Daniel confirmou, com um franzir de testa conhecedor. - Por causa das circunstâncias, minha vida começou em 2004, quando eu e vovó chegamos a Elizabeth. Ao longo desses últimos anos, involuntariamente, apanhava-me pensativo quanto ao "antes", principalmente quando me punha a caminhar pela passarela do mercado, no horário de almoço. E então, o avião correu para fora da pista, o que, de alguma forma, reacendeu o desejo de investigar, de compreender melhor de onde vim.
- Ficará em Cape May por muito tempo?
- Eu preciso conversar com Parker a respeito. - Esticou o pescoço, procurando encontrá-la, sem sucesso. - Eu terei de retornar amanhã. Eu tenho uma vida em Elizabeth, e a deixei para trás sem dar satisfações. Preciso pôr a casa em ordem, antes de regressar outra vez.
- Sem dúvida. - Max apanhou dois copos de refrigerante de um dos garçons. Entregou o copo a Daniel, e o convidou a acompanhá-lo ao mirante. Dentro de meia hora, estariam voltando ao restaurante, ao jantar em sua homenagem, e sentiu que não haveria melhor oportunidade para conversarem abertamente.

Ao olhar por sobre os ombros antes de deixar o cais, Daniel ficou feliz ao enxergar Parker dando gargalhadas numa roda de colegas. Ali, havia mais amigos de Robyn do que dela. Por mais que os conhecesse, a maioria compunha-se de companheiros da Guarda Costeira, atuantes nas vidas de Robyn e Daniel, mas não na da atriz. Daniel cruzou os braços, o frio inflamado pela súbita brisa avivada pelas ondas quebrando contra as colunas de sustentação. Max caminhava poucos passos à frente, parando sob o manto projetado pela lâmpada do poste, defronte a um banco. A estrutura do mirante parecia vibrar ao golpe das ondas, denunciando dezenas de junções de madeira cujos parafusos deviam se encontrar parcialmente corroídos pelo tempo.


- Não podia deixar de vir vê-lo, por mais que acredite que pareça estranho. - Max adiantou, quase tirando palavras da boca de Daniel, o qual respondeu com uma expressão de aliviada surpresa. - É importante que reencontre os amigos, mas o fato de não se recordar justifica que façamos essa abordagem mais calmamente. Espero que nós não tenhamos te assustado! - Referiu-se `a festa, abrindo os braços em direção ao restaurante, relativamente afastado do mirante

- Eu fiquei encantado. - Elogiou. - Sim, não estava pronto para assimilar tanta informação, mas suponho que tenha de começar de algum lugar. - Nesse ínterim, pegadas na estrutura chamaram a atenção da dupla para a pessoa a aproximar-se a passos rápidos. Era Mac. Com a sua chegada, reviviam a camaradagem daquela manhã de 1995. Faltava apenas Aramis, o que deu a Daniel a ideia de indagar: - Mas onde está Aramis?

Mac não os escutou. Chegou com algazarra, abraçando Daniel, o volume da garrafa de champanhe machucando suas costas por causa da força com a qual o abraço foi dado. Daniel não teve como deixar de notar o desconforto no rosto de Max. Era lógico que fizera uma pergunta cuja resposta ele preferiria não fornecer. Soube que algo ruim acontecera ao amigo que uma década e meia antes o fizera rir tão facilmente. Abraçado a Mac, encarava Max, ambos se entendendo pelo olhar. Max meneou negativamente a cabeça, com a lentidão do choque que também adormecera suas pernas, e Daniel fechou os olhos, pesaroso. Por enquanto, Max dissera o suficiente. Novas pegadas, mais leves, e os amigos viram Parker e seus saltos, descendo cuidadosamente os três degraus para a rampa a levar ao mirante. Mac abriu espaço para que a atriz fosse aos braços do companheiro. Daniel observou as estrelas, muitas delas, naquela noite de promessas e mistérios. Procurou rememorar a última vez que se sentira semelhante: feliz, mas contraditoriamente angustiado, o peito pressionado por expectativas. Parker descansou a cabeça no peito dele, e Daniel pensou na arte do pôster de "Distant Lights", o rosto de Parker, com um olhar enigmático, mesclado a uma noite de estrelas muito cintilantes e coloridas, tais quais as observadas agora.


A noite transcorreu consoante Parker pretendera ao pôr em ação a surpresa de última hora. Daniel e Robyn cruzaram olhares por três ou quatro oportunidades - ela se sentara numa mesa próxima ao palco onde uma banda de blues animava a festa, Daniel distanciado, mais para o lado da fachada translúcida, os dois meios separados pelo muro verde onipresente projetado pelo paisagista que, ali dentro, ambiente de ar condicionado, dava ao lugar requinte, garbo. Parker conversava com amigos sentados `a mesa e, do mezanino, Max observava a dinâmica de tudo, eventualmente mexendo com sofreguidão o copo de whisky, triangulando as diversas variáveis envolvidas no retorno de Daniel a Cape May, envolvidas em se mexer num 
passado cujas peças começavam a se combinar para criar retratos de instantes reais e longínquos, imaginando como ajudá-lo. De certa forma, Max pensou, não havia comparação mais apropriada. Daniel era o homem que precisava montar o quebra-cabeça, uma imagem tão rica e complexa como a reprodução de um artista para a batalha de Waterloo e, `a sua frente, existia um mundo de peças. Daniel tinha entre o polegar e o indicador uma apenas - o dia em 1995 ao qual fizera menção - e precisava agregar as outras informações ao dia, a partir dali. Se um quadro magistralmente executado saltava aos olhos por abrir um viés a um mundo de detalhes, um mundo de sombras, efeitos e perspectivas, o mesmo valia para a jornada de Legrand, de Cape May para Elizabeth, e agora de volta.

A banda trocou o blues por baladas românticas, e começou com "Rock me tonight for old times sake", de Freddie Jackson. A garota que defendia a letra realizou uma rendição que soou agradável aos ouvidos. Antes que Daniel tirasse a namorada para dançar, Mac cruzou o salão e estendeu a mão convidativa para Parker, com um sorriso divertido. Mesmo tantos anos após o colégio, ainda era o mesmo brincalhão, Daniel pensou, com carinho. "Vai lá, querida", o namorado a incentivou, e Parker concedeu-lhe a dança.

- É a única oportunidade que o cara tem para ficar com uma mulher. - Brincou, apontando para Mac.
- É, mas é com a sua mulher com quem fico, seu arrombado! - Mac devolveu, e os quatro deram sonoras gargalhadas, Daniel dando tapas nas coxas, de tão animado.

A maioria dos convidados foi se divertir na pista. Daniel preferiu permanecer na mesa. Ali, a ficha caiu quanto a sucessão caótica das transformações. Se antes se perguntara até quando a vida permaneceria na inércia do tédio de Elizabeth, agora os eventos se sucediam a uma velocidade tal que era imperativo dar um passo para trás e analisar as diferentes situações apresentadas. Acompanhando o ritmo da balada romântica com as batidas dos dedos na mesa, Daniel voltou a olhar para o lado da mesa de Robyn. Ela o observava. Ficaram dois, três minutos, encarando-se à distância, ambos movidos pela emoção e pela letra triste da música "Where you Are", de Whitney, numa rendição mais lenta que, nas cordas vocais da garota da banda, não fazia feio perante a versão oficial. Então, a conexão visual foi quebrada quando Legrand viu Max descer do mezanino. Obviamente, desejava conversar. Com a urgência do tempo, sabia que aquilo era uma útil janela de oportunidade. Daniel precisava partir na manhã seguinte, e chegaria um pouco depois do meio-dia, ou seja, mais um dia de trabalho perdido. Giro e Gladys deviam estar aguardando ansiosamente pela sua ligação.

- Olhe, retornarei amanhã para casa. - Quando Max se sentou no lugar anteriormente ocupado por Parker, Daniel foi ao ponto. - Fique com meu número e e-mail. - Ele lhe entregou um pedaço de papel dobrado. - Eu apreciaria contar com sua ajuda.
- Pode contar. - Já se voluntariou, examinando o papel num segundo antes de dobrá-lo para guardar no bolso da camisa. - Se eu prestasse uma visita a Elizabeth, você...
- Oh, seria uma satisfação. Você me ajudaria bastante. - Daniel respondeu, com urgência no tom. - Aramis está morto, Max? - Não havia modo de ser mais honesto, e Max respondeu com o olhar de quem havia acabado de levar um golpe nos rins.
- Aramis morreu algumas semanas após seu acidente de 2004, correto. - Foi a resposta, igualmente sem protelações. 
- O que aconteceu? - Moveu com a cabeça, como que buscando "sintonizar" uma faixa, uma sintonia, na verdade sua intuição.
- Aramis morreu estupidamente numa briga com um rapaz que estudou conosco, na saída de uma festa, por conta de algo que teria dito `a namorada do cara. - Escancarou a brutal realidade, dobrando sem razão alguma o guardanapo à frente. A balada romântica terminava. Do salão, risadas de casais satisfeitos. Parker logo retornaria à mesa. - Ele estava no lugar errado, hora errada. - Suspirou. - Escutará novamente de mim, amigo. Apenas fique no aguardo. - Ia deixando a mesa, quando Daniel o segurou pelo cotovelo, para uma última pergunta.  
- "Simone di Sofia". - Atirou a isca, sem acrescentar explicações, apenas para testar a reação. Nas expressões acendidas do rosto, as mesmas de quando perguntara por onde andava Aramis. Havia mais uma história por trás do nome. - Uma mulher se apresentou por e-mail, um tempo após a notoriedade por causa do resgate no aeroporto, e não custou a ela ganhar uma voz, pois começou a entrar em contato por telefone. Um amigo meu de Elizabeth, Suntee, verificou que uma menina com esse nome realmente existiu, em Cape May. Ela já é falecida. E agora, esse sobrenome reaparece noutro lugar, afinal sabe que tivemos um professor, padre di Sofia. Qual a ligação entre as duas pessoas?
- Você não se lembra mesmo. - Engoliu em seco. Viu Parker cada vez mais próxima. Com um olhar seriíssimo, explicou. - "Simone di Sofia" morreu. Se alguém tem escrito e conversado contigo, passa-se por outra pessoa, e não por acaso. Possivelmente, tentava atingir di Sofia, que sempre foi seu fiel escudeiro e se importou. Simone di Sofia morreu há muitas décadas, Daniel, quiçá antes de nascermos. Sim, obviamente há uma conexão entre as duas pessoas. Simone era a filha única do padre di Sofia. Ou melhor, professor di Sofia, pois, à época da morte, ele nem era padre. Foi a tragédia do acidente automobilístico que transformou o di Sofia como homem. Se não me engano, ele fora um homem muito rico, dono dos mais férteis parreirais da região. Sua fortuna vinha da exportação de uvas para viniculturas da Europa. O fato é que di Sofia abandonou tudo para entrar, já maduro, no seminário, onde se tornou quem você efetivamente viu no sonho, o "Padre di Sofia".
- Como pode? Alguém usar o nome da filha morta de um homem inocente?
- Como eu disse: para feri-lo, já que di Sofia sempre foi seu maior aliado. Se alguém quisesse te atingir, começaria machucando seu melhor amigo.
- Então... di Sofia ainda vive?
- Lógico, você não sabe? - Max lançou um olhar perplexo a Daniel. - Depois que você sumiu, em 2004, ele deixou o orfanato que dirigia, o colégio onde lecionava matemática e a paróquia para trás, pois prometera `a sua avó protegê-lo, e as circunstâncias do ocorrido contigo palpitavam de mistério. Escute... - Agora, Max tinha de se despedir, Parker chegara à mesa. - Você saberá de mim. - Pôs um ponto na conversa. As costas da camisa estavam empapadas de suor. Daniel precisava aliviar a tensão no ar, era evidente. Esforçou-se para que Parker não percebesse.

Caminhavam preguiçosamente, Daniel e Parker, lado a lado, ao longo das espaçadas calçadas guiadas pela mureta rebaixada, não muito recuada do quebra-mar. Daniel trazia o rosto voltando para cima, procurando enxergar na noite de magia o milagre que desenharia o rosto de Parker, ligando estrelas até comporem o lindo rosto dela. Parker, por sua vez, apoiava a cabeça no ombro do companheiro, e via-se bem segura pela forma como o braço forte de Legrand a trazia pela cintura. De alguma pequena lojinha artesanal da praça, recorria o tilintar de sininhos ao vento, alguma datada e charmosa armação artesanal. Ao alcance da vista, no contorno dos rochedos, um barco pesqueiro executava a curva para o regresso ao cais. Se havia problemas no mundo, então certamente Cape May não fazia parte do mesmo mundo. Só existiam boas novas, trazidas ao sabor da brisa a qual soprava em direção ao continente, por mais que a tensão e a voz de Max fizessem pressentir o contrário.

No hotel, Parker se aninhou sobre o peito de Daniel, as pernas entrelaçados, os dedos dos pés contra o tornozelo dele. Inicialmente, seu peso se fez sentir, mas logo Daniel se acostumou ao "encaixe". Não custou a ela se tornar uma pluma. Daniel cuidou de respirar com tranquilidade, a cabeça dela subindo e descendo imperceptivelmente, num movimento discreto correspondente ao enchimento e liberação de seus pulmões. O casal era como dois vaga-lumes, dois pontinho de luz imersos na escuridão. Havia algo de incrivelmente relaxante na comparação que, naturalmente, veio à mente de Daniel. Liberto das preocupações, acolhido pela escuridão, novas perguntas lhe ocorriam. Era Robyn quem o intrigava, a eletricidade de sua mera presença, o jeito com o qual o observara à distância, no restaurante. Não percebia nada de malicioso ou sensual; pelo contrário, fora cativado pelo esquisito desespero do olhar. Ele ficou metido nas suas impressões por algum tempo, até as pálpebras fecharem.


Daniel despertou para uma manhã cujo céu era de estupendo azul e forte sol. Ele acordou por causa do rumor modorrento do aspirador de pó, acionado no corredor. Sentou-se na beirada da cama, pensativo. Parker permaneceu adormecida de bruços. Ele trocou de blusa, cuidando para não despertá-la, e foi quitar a estadia. Foi atraído `a entrada do restaurante por força do agradável aroma de café e frios. Ao retornar, Parker mirava a porta, esperando que entrasse. Ela o achou ainda mais belo, com os cabelos molhados penteados para trás. Daniel se aproximou, e sentou-se ao lado dela, com o joelho primeiro. Abraçou-a por trás e beijou a nuca.


- Não me beije ainda, querido, preciso tomar banho! - Parker disse, entre risadinhas.

- Gosto do seu cheirinho assim. - Ele respondeu. Daniel a abraçou por trás, e agora estavam deitados, juntos, reflexivos. 
- Tem que partir, não? - Indagou, desanimada.
- Eu te deixarei na casa de seus pais, meu amor. Não se preocupe. Não custará a nos vermos. - Ele a apertou ainda mais, e Parker se derreteu como uma gata manhosa, alongando braços e pernas, movendo para baixo e para cima os dedos dos pés. - Obrigado pela festa de ontem. Você tem se esforçado tanto para tornar tudo mais fácil para mim!
- Eu só espero vê-lo melhor. - Assentiu. Daniel não enxergava o rosto dela, mas sabia que Parker falara com profunda tristeza. - Posso não acertar sempre, mas desejo o melhor para ti.
- Eu sei. A única coisa que me interessa é sua companhia, e para isso, basta que seja você mesma. 
- ... E deixar que você seja você mesmo. - Parker se virou para Daniel, e os dois ficaram cara a cara. - O passado foi bonito, mas me interesso pelo que faremos a partir de agora. Torci tanto pelo seu sucesso nas provas! - Anunciou, com uma voz repentinamente adorável em sua infantil melodia confessional. 
- Eu sei. - Riu, exprimindo convicção. - Eu tenho fé em Deus que dará certo. Se eu passar, ganharei mais. Poderei pôr em movimento alguns planos para o futuro.
- Há um papel para mim? - Perguntou, passando fugidiamente a língua sobre o lábio superior para secar uma lágrima. - No seu futuro?
- Sim. - Beijou-lhe a testa. - Você e mais duas crianças. O que acha? - Soluços muito baixinhos. Parker se emocionara. - Vamos, querida, dará certo. Vamos nos recordar das coisas bonitas que padre di Sofia procurou nos ensinar. Vamos pavimentar nossa estrada para o céu. Com uma família. Não quero vê-la triste.
- Nossa, não vejo a hora de casarmos, para finalmente fazermos amor! - Os dois riram. - Quando nos veremos novamente?
- Bem, você sabe que pode ficar conosco em Elizabeth, quando quiser. Pretendo voltar para Cape May, mas para isso, preciso escrever um memorando para os Recursos Humanos, para redefinir o período de férias. Poderíamos acomodar as nossas agendas, não acha? - Perguntou, olhando para baixo, para a face dela. - Nós teremos muito tempo para combinar férias juntos!

Daniel e Parker tiveram um aprazível começo de manhã. Parker fez o prato do namorado, na mesa de frios, e só preparou o seu depois. Ela assistia a Legrand comer ovos mexidos, queijo, presunto e torradas de alho com generosas colheradas, e brincava com os cabelos sobre as orelhas. Ele ocasionalmente respondia aos afagos com seu sorriso e uma forma de apertar os olhos que Parker adorou conhecer. Eram nove e meia da manhã quando subiram na caminhonete. O veículo fez o caminho ganhando velocidade pela variância com a qual Legrand mantinha o movimento através das vias mais largas das dunas costeiras, dentro das indicações de Parker. Pararam diante da ampla entrada para o terraço jardim de uma mansão praiana, onde existiam uma grande piscina, churrasqueira, e cadeiras albergadas do sol sob as sombras projetadas pelos coqueirais, os quais sacudiam as folhas ao toque do vento. Os coqueirais também representavam o único obstáculo natural para a entrada irrestrita de luz, afinal não havia cortinas nas janelas. A casa era servida por três espaçosas varandas, e mesmo do átrio principal, em razão das portas de correr desimpedidas, podia-se vislumbrar a elegante sala de estar, um piano de cauda em destaque. Para os habitantes, era possível permanente contato visual com o Atlântico. Daniel a ajudou com a mala. Ele teria preferido despedir-se logo de Parker, pois por algum motivo tolo sentia-se ligeiramente encabulado em conhecer os pais dela, mas soube que se procedesse desse modo, ele a magoaria. Sorridente, mascarando o nervosismo, encontrou os Cowan à mesa - Bill, Gail, Robyn e seu esposo Allen - tomando um farto café na comprida mesa de Astoria Grand, num instante o qual, se fotografado, encapsularia a ideia que comerciais de margarina procuravam vender, uma harmonia de sucesso, cumplicidade e bem-estar que, `a maioria, só resta passar uma vida inteira correndo atrás. Robyn mastigava uma torrada com requeijão quando o casal apontou na porta. Assim que o viu, foi como se alguém tivesse apertado a tecla de "pausa" do vídeocassete. Os demais pareciam gratamente surpresos, mas o sorriso desenhado no canto da boca de Robyn era especial.

Allen estendeu a mão e o congratulou pelo feito heroico no Liberty. Bill e Gail o receberam muito atenciosamente. Parte da natural cautela podia ser explicada pelo hiato de anos durante os quais não se viam, ou talvez pela sua traumática partida de Cape May, da qual não conseguia se recordar. De qualquer forma, os pais de Parker foram graciosos e gentis. Aos sessenta anos, Bill era um elegante, charmoso e assertivo cavalheiro da alta sociedade; devia estar no auge das realizações profissionais e pessoais. Gail era alta, loira e esbelta, seus traços muito finos haviam sido reescritos nas duas filhas. Quando jovem, devia ter atraído a atenção dos homens da cidade praiana. Hoje, a outrora esplendorosa beleza encontrava refinamento em seu outono. Daniel passeou no caminho do jardim, tecendo elogios às flores de Gail. Durante o breve encontro, sentia o olhar de Robyn sobre si, da varanda. Houve um momento divertido. Eles tinham voltado à cozinha, e então, num insight, uma doce recordação ganhou vida enquanto Daniel olhava para Robyn. Ela parecia pressentir, e arqueou a sobrancelha, enquanto ele foi abrindo os olhos, com um sorriso feliz. Estalou os dedos, apontou para Robyn e narrou, para a diversão dos demais:

- Lógico, lembro-me agora... De um sonho com o qual acordei no alpendre de casa, sorrindo. Eu era um menino de 13, 14 anos... Na Walmart do shopping center. Eu frequentava as seções de guloseimas para afanar barras de chocolate. - Agora, Robyn estava verdadeiramente sorrindo, meneando afirmativamente a cabeça. Ele nem começara a contar, ela já sabia do que se tratava. - Reunia coragem para enfiar a barra de chocolate sob a blusa, quando aparece essa menina muito bonita, cachinhos dourados, e fica parada nas minhas costas, fazendo um ruído de sucção com o canudo do milkshake. - Daniel apontou para Robyn, e ela fez que sim. - Eu digo a ela, contrariado: "Não chamei ninguém para me ajudar a escolher". E ela: "Lógico que não, mas vou ficar aqui, caso precise de mim". Eu me irrito, desisto do chocolate e grito, antes de deixar a loja: "Cara, vá se ferrar!". E ela, calmamente, fazendo aquele som de sucção com o canudo: "Não, obrigada". - As gargalhadas estrondaram na cozinha. Foi um grande momento, o qual os nivelou como seres humanos cujos passados entrelaçados os aproximavam, independente de por quantos anos tivessem ficado afastados.
- Trabalhei, na adolescência, na Walmart de Cape May, nas férias de 94, 95. E eu me lembro disso, sim. Estava de olho em você desde o início das férias do meio do ano, sabia que carregava os chocolates. - Robyn fechou os olhos, com doçura, emulando o momento descrito por Legrand.
- Adorei o detalhe, a parte na qual ele chamou a Robyn de "cara"! - Parker apontou, a que riram mais.
- Estava pensando exatamente nisso! - Gail fez coro.
- Sim, sim. - Robyn o encarou e continuou: - Para quem afirma não se lembrar de coisa alguma, Daniel se recorda dos detalhes, porque me lembro que foi mesmo assim.

Ao partir, já dentro da cabine, enquanto Bill, Gail, Allen e Parker acenavam em despedida do portão, Daniel viu Robyn observá-lo de braços cruzados na mesma varanda. Havia algo ímpar no olhar, difícil de se definir. "Analítico", Daniel disse para si em pensamento, satisfeito com a própria explicação, ao girar a direção para voltar à estrada principal a se afastar das mansões nas dunas.

Por parte do percurso - a maior parte, realmente - o sol o testou impiedosamente. Aquela terça-feira era um dos dias mais escaldantes de 2010, a ponto de Daniel precisar parar num bar de beira de estrada, na Interstate 95, para se refrescar. Era meio-dia quando telefonou para a avó. Gladys tirou o fone do gancho logo no primeiro toque. Daniel abriu um sorriso aliviado, certo de que a idosa estava repleta de preocupações infundadas, pois desligara o aparelho a manhã inteira, não atendera os telefonemas dela. Ele a maltratara o suficiente. Ao escutar a voz cautelosa e tensa da avó, foi atravessado por remorso e culpa.


- Não, vovó, eu estou bem! - Às risadas, tratou de se explicar, ainda que Gladys o atropelasse com perguntas e não se dispusesse a deter-se para escutar as respostas das questões com as quais ela mesma o canhoneava. Daniel falava ao celular, à beira da poeirenta estrada vazia, o asfalto em brasa. Lançou um olhar para o bar, e desejou sombra e um refrigerante gelado. - Não devo demorar, mas não quero que me espere para o almoço! Cadê o Cyrano?

- Com essa quentura toda? - Espiou pela janela e o viu se divertindo no quintal, refrescando-se com o irrigador que lançava jatos d'água concêntricos. - Tentando apanhar borboletas no meu jardim! Oh, droga, está cavando terra e arruinando as plantas novamente! - Ela exclamou, e Daniel deu uma risadinha. Era reconfortante escutá-la zangando-se com bobagens, sentia falta dos sermões. - Como foi em Cape May?
- Proveitoso, de todas as maneiras. Tive um sonho muito vívido, ou melhor, uma recordação muito clara. Acho que estou começando a me recordar.
- Oh, querido, que maravilhosa notícia! Temos muito a conversar! Não se demore!
- Não. - Respirou fundo, e reiterou a promessa. - Não me demorarei! - Quando estava para desligar, Gladys exclamou para que esperasse. - Diga, vovó!
- Dirija devagar! Não o quero correndo pela I-95!

"Não vou correr!", prometeu, antes de fechar o celular com uma gargalhada. Folheara muitas novas páginas de sua vida em Cape May; entretanto, existiam elementos imutáveis! O bar ofereceu a sombra e a bebida gelada pelas quais ansiava. Com os cotovelos apoiados sobre o balcão, desabotoou dois botões da camisa para aproveitar melhor o ar movido pelos golpes das pás do ventilador. Ali dentro, havia o raro conforto encontrado somente em tavernas velhas. No meio do nada, o tédio - interrompido unicamente pela passagem veloz de carros e carretas -  encontrava no bar de letreiros vermelhos de neon, acesos diligentemente às 18:00, o último vestígio de compromisso humano. Após a latinha de refrigerante, pediu uma xícara de café. Flertou com os recortes a ilustrarem o pequeno flanelógrafo, miscelâneas do inusitado, relacionadas a aquela região. Em 1971, na New Jersey Turnpike, um oficial da aeronáutica da Flórida, de férias em Nova York, fotografou um objeto voador não identificado, cujo diâmetro, garantia a notícia, estendia-se por cerca de vinte metros; o objeto pairara sobre a rodovia e assustara não apenas o oficial em questão, como também meia dúzia de testemunhas, corroborando o depoimento inicial. Em 1985, de um periódico de Robbinsville, município germinado às margens da Interstate, um cidadão da localidade, de vinte e nove anos, que no começo dos anos 80 fora trabalhar para uma multinacional no Japão, reportava ter recebido o telefonema de sua falecida mãe, avisando-o dois dias antes para não viajar no feriado do Obon para Osaka, pois algo horrível estava para acontecer. O rapaz rasgou o bilhete que lhe teria dado lugar no voo JAL 123. Após escapar da catástrofe, largou tudo para voltar a Robbinsville. Quando perguntado como sabia que a voz feminina que viera do futuro para avisar sobre o acidente era a de sua mãe, respondeu "Apenas sei". Em 1994, um cavalheiro misterioso causou grande celeuma em Staten Island, um dos cinco distritos de Nova York, mais especificamente nas quadras do entorno da ponte Verrazano, a qual ligava Staten Island ao Brooklin. Vestido com roupas da era vitoriana, aterrorizou prostitutas, ferindo gravemente uma delas com uma navalha. Os depoimentos das vítimas dos ataques convergiam, quase idênticos: as roupas vitorianas, o chapéu cartola que escondia muito bem o rosto inchado e barbado, o cheiro exagerado e extravagante de colônia para pós-barba, almiscarado com outro odor, animalesco por natureza, o corpanzil desproporcional aos passinhos curtos, desajeitados e apressados, e a dificuldade de articular sentenças completamente compreensíveis. Havia uma foto na extremidade do recorte, cinco homens armados de rifles, e uma besta, mais exatamente um gorila, pendurado de ponta cabeça, no meio dos caçadores. Vestia uma expressão de mártir, trágico na forma como fora rejeitado, que tocou Daniel de uma maneira muito incomum. Aparentemente, alguém obcecado pelo conto de Edgar Allan Poe procurara treinar o animal e torná-lo "gente", com consequências desastrosas. Todas as histórias macabras giravam em torno daquela região. O mundo podia ser muito estranho. Dentre curiosidades do passado, notícias sobre os feitos de pessoas ilustres da cidadezinha praiana. Os Cowan apareciam em três recortes; Parker, em uma resenha favorável a "Lady Chatterley" ("Boorman filma essa história de amor com a segurança e o capricho visual que lhe são peculiares, seu maior momento em uma produtiva carreira de meio século: Lady Chatterley é uma experiência eletrizante!", laureava a crítica que saíra na página 03 do San Francisco Chronicle); elogios a Bill Cowan pelo seu papel de coordenador da equipe de juristas responsáveis pelo projeto de lei de isenção de impostos a indústrias doadoras de alimentos a entidades assistenciais, em 1996; e, por fim, 1999, com o destaque na página de esportes do "Cape May Today": "Robyn Cowan vence Jogos Universitários e dá o primeiro título da NYU no caratê". Fazia muitos anos desde 1999, mas, tendo reencontrado Robyn em Cape May, via-se que sua beleza não se alterara. Na foto, ela aparecia de braços erguidos, as mãos vestidas com luvas brancas, o nariz com um pouco de sangue, estranho na sensualidade que proporcionava quando combinado ao sorriso de realização e jubilo. O árbitro metia-se entre Robyn e a adversária, de quatro, com os olhos palermas e o rosto muito ferido, olhando-a aturdida, `a sua frente com braços sobre a cabeça como para reforçar o controle da situação. Daniel contornou o balcão, com a xícara de café, e ficou estudando o recorte, distraído, até a garçonete, de prato de ovos, bacon e fritas em mãos, pedir licença para passar. Ele estava faminto, e uniu o útil ao agradável, pedindo a mesma coisa, e voltando às mesmas ilações, os olhos galvanizados em Robyn de braços levantados.


O restante do caminho foi um maravilhoso passeio movido pela expectativa do reencontro. A paisagem a se estender adiante compunha um contexto mais atualizado de sua jornada de vida. Quando observou a poeira deixada para trás, pelo retrovisor, acreditou que a momentânea incursão pelo passado estava momentaneamente em suspensão. Daniel pegava a saída 13 para a Interstate 278 em direção a Elizabeth, a poucas milhas de casa, e já eram 17:30. Respirou fundo, reduzindo a marcha ao contornar o parque Warinanco para observar os barcos de remo riscando perfeitamente a superfície platinada do lago, uma visão esplendorosa emblemática de meses mais quentes. Suas árvores pareciam cadenciadas pelo gramado sem fim onde crianças jogavam softball, as flores de cerejeira muito vermelhas arranjadas como rosários ao redor da fonte principal. Ele via, pela lateral, a aparição do loteamento, e imaginou que a figurinha no alpendre, uma sombra rechonchuda, seria a da avó. Quando viu que era a caminhonete do neto se aproximando, a aflição de Gladys deu lugar a um sorriso de desabafo.


Era sensacional estar de volta. Mesmo o entardecer mudara um pouco em Elizabeth. Tinha o "jeitão" de domingo, mas se tratava de uma terça-feira útil, quando deveria estar voltando do trabalho no Liberty, e não de uma "escapadinha". O fato de reencontrar o lar exatamente como o deixara podia parecer ordinário; todavia, ao mesmo tempo, devolvia o mundo ao eixo. Ao passo que Cape May significava recomeço, não tinha como dar um passo de tamanha importância sem a segurança de seu mundo "`a parte", o "limbo" o qual aprendera a habitar com a avó e o adorável gatinho preto com trissomia. Tão deliciosamente previsível reencontrara seu espaço, Cyrano metera-se na familiar melancolia, comportamento padrão quando o tutor se aventurava a deixar o lar por mais de um dia e, por conseguinte, despertava sua ira. Viu o instante da chegada de Daniel, sentadinho na cadeira de balanço do alpendre. Assim que Daniel desceu da caminhonete, Cyrano fez questão de marchar como um animalzinho adestrado para dentro de casa, sem prestar atenção no dono. Avó e neto riram do gênio complicado do anjinho.


Daniel contou entusiasmadamente as grandes surpresas em Cape May. Ao discorrer sobre as lembranças muito frescas de seu sonho, a avó confirmou as descrições. De fato, o neto parecia começar a se lembrar, infligindo em Gladys ansiedade e contentamento, em iguais medidas. A avó contou que, tendo estranhado a falta de Daniel no trabalho, Giro prestara uma visita na noite anterior. 


- Você sempre me escutou, querido, mas quanto a esses assuntos, prefiro que Giro o oriente. - Gladys confessou, enquanto besuntava o pão com manteiga para levá-lo ao forno e deixá-lo ao ponto. - Ele é homem, vocês dois se entenderão melhor. Sempre o respeitou como a um pai.

- Sim, vovó, não restam dúvidas de que eu e Giro temos muito a tratar! - Comentou, virando a xícara e terminando de consumir o café com leite. Conversava com a avó mas tinha os olhos no telejornal de Cape May. - Foi uma pena, passar tão pouco tempo! Eu deveria ter planejado melhor. Pretendo fazer minhas férias coincidirem com algum mês livre para a Parker. Tenho tantas perguntas!
- A passos vagarosos, querido, a passos vagarosos. - Ressaltou, com candura. - Então é definitivo. Você e Parker...
- Estamos juntos, sim. - Disse, como conclusão de premissas bem lógicas. - Eu temia me apegar, mas acho que agora é tarde. 
- Isso é natural, e, inconscientemente, pode ser rastreado a seu passado recente. - Gladys sugeriu, com os dedos no queixo, pensativa. - Tem medo de se apegar porque associa aproximação a dor.
- Eu passei por dor semelhante, antes de 2004? - Perguntou, mas o sorriso da avó já lhe indicava o caminho.
- Terá de se aventurar pelo seu passado sozinho, Danny. Cada vagaroso passo a seu tempo.
- Conheci a irmã de Parker. Robyn. Você deve estar familiarizada com esses nomes, não, vovó?
- Sim, querido. Lembro-me de quando você era bebê, que dizer de sua adolescência, mais próxima na linha do tempo. - Abriu momentaneamente o forno, apenas uma fresta, para examinar se os pães tinham assumido a crostdourada, ponto ideal para servir. - Lembro-me das duas. A irmã dela, Robyn, passou no mesmo concurso, em 2002. Mesmo hoje, posso nos ver sentados num banco da pracinha do prédio da sede, aguardando a abertura do auditório para a cerimônia de posse. Fomos os primeiros a chegar, tão ansiosos estávamos! Você ficou o resto do dia, eu fui para casa... Ao meio-dia, apareceu para almoçar...

Daniel descobriu que, depois de desligar as luzes à noite, seu quarto virava um lugar rico em magia. Só isso podia explicar por que se sentia bem, de um modo o qual não se recordava sentir parecido em nenhum outro espaço, a não ser, talvez, dentro dos braços de Parker. Não sabia pinçar o motivo, mas o instante mais rico acontecia no limiar, na folga entre estado de vigília e sono. Em seu estado onírico, imediatamente anterior ao sono, detalhes do dia deixado para trás tinham como ser reavaliados, e observações fascinantes tiradas durante a recapitulação. Naquela noite, Cyrano acabou fazendo as pazes com o tutor. Enquanto Daniel oscilava em balanços suaves da rede, o gatinho dormia entre travesseiros da cama. Pensava sobre o que Max dissera sobre Simone. Ele foi gradualmente entrando em estado de relaxamento. O rosto pendeu para o lado, e dormiu. Foi por pouco tempo: o celular começou a chamar, despertando-o com sobressalto. 

- Alô! - Atendeu, com urgência, como um homem a esperar pelo telefonema que talvez jamais viesse.

- Ei, Danny. - Era "Simone" quem lhe fazia as vezes de confidente da noite. - O que faremos a respeito desse meu hábito de te ligar sempre que acaba de pegar no sono?
- Fico feliz que tenha ligado. Nesse fim de semana, muita coisa aconteceu. - Ele deixou a rede, e abriu um vão na porta para verificar se Gladys ainda assistia `a novela mexicana na sala ou se já se recolhera. A avó dormia no sofá, diante da televisão, no escurinho. - Retornei para Cape May. Logo após o fim das provas. Acredite, tome minhas palavras pela literalidade: assim que a prova acabou, cismei de pegar a caminhonete e seguir dirigindo até alcançar Cape May!
- Oh, não acredito! - Ela comemorou. - Por que não me disse, Danny? Teríamos nos encontrado!
- Fiquei temeroso quanto à sua fala sobre o ringue como nosso destino. - Brincou, porém se arrepiava ao mencionar a fala.
- Você me contará, da próxima vez que vier para Cape May, não? - "Simone" nem esperou pela resposta. - Quando será a próxima?
- Eu não sei ainda. - Respondeu, respirando fundo. - Não pensei a respeito. Naturalmente, pretendo retornar para ficar com a Parker. Teríamos que combinar o mesmo período de férias.
- Meio difícil, vez que Parker é atriz. - Ela levantou um ponto importante. Existiam arestas em sua voz que soavam familiares a outros tempos. - Então, estão namorando mesmo?
- Você é a segunda pessoa que me pergunta, hoje. A primeira foi vovó. Se eu dissesse que sim, ficaria com ciúmes?
- Eu preferia quando tinha sua atenção reservada a mim. - Ela afirmou, explicando, em seguida: - Na época do meu estágio. De alguma maneira, acho que você estava interessado. 
- Bem, em qualquer relação de amizade entre homem e mulher, haverá tensão, eletricidade. E se não houver, então é porque não vale à pena.
- Não falei? Você estava interessado mesmo! - Risadas de ambas as partes. Uma pausa. Cyrano se remexeu na cama, por um segundo ou dois, curioso pelo que aqueles humanos estranhos confabulavam.
- Quando eu voltar para Cape May, eu devo procurá-la?- Daniel perguntou. "Uh-hum", foi a resposta. - Onde a encontrarei?
- Pergunte às pessoas pelo orfanato de crianças de Cape May.
- Acho que sei a razão. Você quer que eu vá atrás de Padre di Sofia. Você não se chama Simone. - Daniel foi incisivo e firme. Como resposta, escutou, baixinho, "Isso". - Existiu uma Simone, e ela era a filha de Padre di Sofia. E ela morreu. Você pode até ter sido minha amiga quando começamos na Guarda Costeira, mas não foi nenhuma estagiária. Eu me recordei de uma manhã em 1995, e estive na cobertura do antigo colégio de onde eu e di Sofia enxergávamos a praia. Lembra-se do colégio?
- Lógico. E o orfanato dirigido por di Sofia ainda fica a um pulo dali . Pergunte a qualquer cidadão local sobre o orfanato. Chegará ao Padre di Sofia e se assustará quando vir que ele esteve ao seu lado o tempo inteiro. - Prometeu, com um peso que aos ouvidos de Daniel soou como súbita e profunda confissão. 
- Orfanato de crianças. Eu chegarei ao Padre di Sofia, mas acho que por trás do mistério, você quer ser encontrada, não? Eu reencontrei um amigo em Cape May, o Max. Ele me prometeu que me procuraria, para conversarmos. - Sinalizou à interlocutora que sua farsa estava fadada a ruir, cedo ou tarde. - Nós nos conhecemos desde meados dos anos 90. Ele terá como preencher as lacunas mais misteriosas... E então, seu rosto, seu nome... ficarão nítidos.
- Você merece tudo de bom. - Pelo seu costumeiro jeitinho sagaz, ela não parecia o tipo de mulher dada a súbitas reflexões movidas por melancolia. Agora, suas palavras traziam o peso de pessoas exaustas pelos próprios fardos. - Eu farei as minhas preces para que você e seus amigos tenham passado no concurso. Eu só desejo que seja feliz.
- Obrigado. - Ele agradeceu, com um sorriso triste e cansado. Os últimos dias tinham sido uma montanha russa, e a ideia de rever os rostos e as fachadas no aeroporto internacional era atraente. 
- Não se esqueça. Orfanato de crianças. Na sua próxima aventura em Cape May. - Ela reiterou. Daniel novamente se comprometeu a procurá-la quando estivesse de volta.
- Suponho que seja um passo a mais na direção do ringue?
- Boa noite, Danny.

Ao refletir sobre a conversa com a voz, Daniel compreendeu melhor os motivos do tom mais sóbrio e triste dela. Agora que sabia de Max, aquela fora possivelmente a última conversa antes de ela se revelar. Sabia que Daniel chegaria a sua real identidade. Simplesmente, Daniel não conseguiu voltar a dormir. Foi preparar uma xícara de café com leite na cozinha, com perguntas em círculos sobre sua cabeça o tempo inteiro. Sua memória voltou-se à Robyn com o mesmo fascínio com o qual a foto no jornal onde aparecia com o nariz ensanguentado o cativara, naquele restaurante de beira de estrada. Considerando as mirradas informações, desvendar os mistérios não seria diferente de escrever um suspense. O que Daniel realmente tinha em mãos? Sabia que namorara com Parker, então havia um passado do qual Robyn fazia parte, afinal eram irmãs. Pelo que "Simone di Sofia" adiantara, pelos poucos anos nos quais trabalhara na Guarda Costeira, fora um agente público competente que mostrara sensibilidade para com os mais jovens do programa de estágio. Entendia que havia sido um rapaz muito estudioso, então fosse o que fosse o ocorrido em 2004, o futuro ficara prejudicado após o acidente. E com esses dados muito precisos, porém desconexos, tentava ganhar perspectiva para compreender o esquema maior, sem sucesso. Quando finalmente voltou ao quarto para dormir, deitou-se com a certeza de que precisava da ajuda de Max e Giro.

A quarta-feira começou movimentada. Daniel encontrou Giro e os colegas no refeitório, e o amigo passou a ordem do dia para as turmas que ficariam com diferentes atividades de manutenção. Um dos principais terminais da American Airlines não operaria por conta de obras de expansão, e Giro e Daniel precisariam organizar a remoção de passageiros e tripulantes para outro portão de desembarque, assim como evitar nervosismos e atritos durante as muitas conexões entre os voos previstos para a manhã. Daniel estava molhado de suor, indo e vindo ao longo do terminal. Quarta-feira amanhecera úmida e abafada, e a dupla convencia-se de que o sistema de refrigeração quebrara. Ele e Giro ainda não haviam tido tempo para conversar melhor. Logo chegaria o horário de almoço.


Quando faltavam dez minutos para meio-dia, ao trocar olhares com Giro, o qual prestava orientação a uma família em conexão para a Flórida, apontou para o relógio e então `a direção do mercado. Enquanto aguardava o amigo na passarela, a mente vasculhou os detalhes mais imediatos do problema. Precisava saber a origem do número de "Simone". Giro apareceu, e, em seu rosto, estampava-se a preocupação. Pelo tempo que permaneceram juntos, conversando, Giro conformou-se com o papel de escutar. Daniel contava com empolgação sobre o sonho, sobre como se vira aos quinze anos, sobre o tal padre di Sofia e sobre como, pelo que conseguira enxergar, o que havia por vir seria surpreendente.

- Então é isso. - Giro dedicou-lhe um olhar severo. - Você está disposto a saber, custe o que custar?

- Sobre o meu passado? Sim. Eu só espero que Max procure por mim o quanto antes. Eu permaneci `as cegas por tempo suficiente. Chega. - Cismado, Daniel cobrou. - Olhe, Giro, você e vovó falam sempre de um jeito tão estranho! É como se procurassem me poupar! Sinto que sou o último a saber!
- Quando seu amigo Max procurá-lo, gostaria que me levasse, se concordar. - Pediu, nervosamente. - Preciso voltar ao trabalho. - Deu as costas, mas antes de descer, apontou ao relógio de pulso, ordenando. - Tire a tarde para descansar. O concurso, a viagem... Tem passado por coisas, ultimamente. Vá cuidar de Gladys, e lembre-se de me avisar quando Max chegar.

Daniel permaneceu um pouquinho mais na passarela. Esfregou os olhos cansados, saboreando a quentura ao segurar os corrimões permanentemente expostos às intempéries. Só os soltou quando não conseguia mais ignorar o ardor. Escolheu afastar os pensamentos e, conforme Giro pedira, dedicar o resto da tarde para dormir. Gladys tomou um susto ao acordar da sesta com o tilintar dos sinos. Ficou feliz quando o neto explicou os motivos. Um demorado banho frio o livrou do mormaço, e ele desabou pesadamente na cama. Da posição que caiu sobre o colchão, de bruços, permaneceu, até perder a consciência. Não foi um sonho bom, tampouco ruim, apenas triste. Tão triste, quando despertou, próximo às 18:00, encontrou o rosto e o travesseiro molhados de lágrimas. Não fez muito sentido, o sonho. Fora um sonho no qual ele se resumia à testemunha invisível para o protagonismo de Robyn, pois o drama se desenrolava em torno da pessoa dela. Ela saia de um consultório após conversar com o médico, chorando alto. Acabava às margens do mar, provavelmente a parte antiga da praia de sua cidade natal, Cape May. Do modo como sentira a força do sol impressa na pele ao se recordar da conversa com o padre na cobertura do colégio, o mesmo ocorria ao ver Robyn desabar de encontro `a faixa onde as ondas deixavam um rastro de espuma, e então regrediam como um gentil tapete recolhido. O livramento para tanta dor, ela encontrava quando se via voltando para casa, abrindo a porta e encontrando, na sala, adormecidos após tanta espera, os pais e o Padre di Sofia. Gail acordava primeiro. Emocionada, abria os braços para recebê-la. Giro despertava, e Bill também. Robyn era consolada por abraços de pessoas que lhe queriam incondicional o bem.


Seus olhos foram se focando, sem pressa, nas cortinas, as quais bailavam quando a brisa as avivava insistentemente. O azul claro do tecido esfiapado era quase translúcido, um precário filtro para a paisagem que, nos fins de tarde, expandia-se, quando a grama movimentava-se em curvas sincrônicas perfeitas, organizadas pelo capricho com que era tratada pelas correntes de ar. Esfriara. Daniel abriu a gaveta, de onde separou uma blusa branca e bermuda. Alongando os braços num movimento aberto no peitoral, bocejou e abriu a porta do quarto, para receber o friozinho que já fazia dentro de casa. Gladys mexia a panela com uma colher de pau, distraída. Da sala, chegava uma discussão mais acalorada na novela anterior ao telejornal. O rapaz beijou a avó e se sentou, braços e queixo apoiados sobre as costas da cadeira. Era agradável observá-la cozinhar. Tentava se recordar de quando vira expressões tão serenas e introvertidas quanto as de Gladys, quando enxergara gente tão em paz consigo, poupadas, por um fugidio hiato, de seus problemas cotidianos. Claro: o aeroporto, o pátio da praça de alimentação, as madrugadas, gente empurrando carrinhos, observando vitrines de luzes coloridas e aquosas, a esperança renovada e a tranquilidade do reencontro a aproximar-se ao tiquetaquear dos ponteiros do mostrador no alto do salão. Então Padre di Sofia conhecia a família de Robyn. Claro, Legrand tivera um sonho no qual não se encontrara fisicamente presente à experiência, pois no sonho era onisciente e invisível; entretanto, sabia, no âmago de seu ser, que aqueles eventos tinham sido reais. Fazia sentido, já que Padre di Sofia fora uma figura tão importante na vida daqueles jovens a partir de 1995.


O celular chamou. Daniel ficou cheio de expectativas, porém não era "Simone". Suntee perguntou se ele tinha novidades. Não esperava a aventura que o amigo reservara para lhe contar. A mera sugestão soava mais interessante que tentar se aprofundar ao telefone. Combinaram de se encontrar no mirante do Liberty, para café e bate-papo. Em concórdia, os dois se despediram e foram tratar dos afazeres antes de partirem para o aeroporto. Ambos famintos, resolveram descer as escadas rolantes para a praça de alimentação e escolher um lugar onde pudessem comer bastante. Foram parar na Pizza Hut, estranhamente muito tranquila ao se levar em conta o horário, 20:00. Conversavam sobre as expectativas para o resultado do concurso, até que Daniel, mexendo descompromissado com o saleiro, introduziu a questão, contando o sonho. A opinião de Suntee não diferia do que a avó provavelmente teria lhe dito, caso tivesse lhe dito primeiramente. 


- Fico imaginando como diferenciar fantasias de recordações autênticas. Eu não sei como poderia saber, mas vi a Robyn deixar o consultório, e ela parecia desesperada.

- O sonho me fala mais sobre ti do que sobre ela. É óbvio que gosta muito dessa moça. Você a viu há alguns dias. A tensão emocional transbordou em sonho. - Suntee parecia convicto ao defender o ponto de vista neutro, o que foi reconfortante. - Não penso que se trate de uma doença. Parece-me mais um sonho simbólico sobre seus votos de vê-la bem.
- Fiquei apreensivo, imaginando uma porção de hipóteses... - Hesitou em adjetivar, mas finalmente, com uma risada nervosa, continuou. - Hipóteses macabras. Você não acredita que algo como HIV...
- Não, não. - Cortou-o, sempre convencido, com um sorriso respeitoso, mas condescendente. Ele olhou para os lados, encarou-o e foi adiante, com um suspiro. - Eu tive um primo que morreu de AIDS, então sei da doença. Sua amiga Robyn não teria AIDS, Daniel. Se descreve para mim um sonho ou recordação de um fato em 2004, ela não estaria hoje com essa saúde toda, e sim manifestando o resultado de anos de coquetéis antivirais. Ou coisas como doenças oportunistas, candidíase, toxoplasmose... - Discorria com firmeza, sempre o encarando. Parou um pouco quando a garçonete chegou com a pizza e as bebidas. Suntee a agradeceu, e depois que ela os deixou, retomou. - Por mais que ela tivesse iniciado um protocolo de tratamento em 2004, algum detalhe entregaria os efeitos dos antivirais. Vá por mim, a razão desse sonho se deve a uma soma de coisas, preocupantes, claro, envolvendo um grupo de gente que ainda vive e caminhou ao seu lado, à época, mas não AIDS. - Suntee foi o primeiro a fazer o corte na pizza de calabresa. As bordas recheadas salpicaram requeijão ao toque da lâmina denteada. Ele serviu o amigo primeiro, e tirou seu pedaço em seguida.
- Mas, sabe, Suntee, eu pensei nisso. - Franziu a testa, enquanto regia compasso nas batidas leves dos nós dos dedos na mesa. - É o oposto disso, compreende? Quando a vi, é como se o tempo não tivesse passado para ela; entretanto, temos quase a mesma idade! Como pode?
- Escute, Daniel, agora me refiro a "Simone di Sofia", a menina morta. - Suntee trouxe `a baila o segundo assunto da noite. Seus olhos deixaram o prato e voltaram a encará-lo. Gesticulando com o garfo, como se tivesse em mãos um pedaço de giz, o garoto prosseguiu, "rascunhando" suas considerações no ar. - Eu não posso ser o único a pensar que essa moça, Robyn, está por trás da farsa, certo? Ligando de um celular pré-pago e descartável, ligeira para não deixar pistas.
- Por que ela fingiria ser outra pessoa? - Daniel perguntou, num tom quase inaudível.
- Quando me falou sobre os e-mails, imaginei uma garota maluca qualquer que te viu na televisão e "se apaixonou". Depois, quando me contou que ela sabia coisas de sua história, quando as informações coincidiram com as de Gladys, vi que seu relacionamento com a pessoa reporta-se mesmo a Cape May, então o que temos são suposições a partir de pistas dos fragmentos com os quais sonha. Você precisa conversar com seu amigo Max. 
- Suntee abriu um pouco mais o sorriso tranquilizador e terminou com uma mensagem de esperança. - Não se preocupe, meu patrão. Se "di Sofia" for mesmo a Robyn, e se ela estiver no seu encalço por algum lance do passado, você é um homem agora. Estará à altura.

O restante da semana transcorreu menos eletrizante do que a noite do encontro com Suntee. Daniel conversou com Parker na sexta-feira, quando a atriz ligou à noite, de Londres, durante o jantar. Perguntou se Cyrano o perdoara, e Daniel brincou, respondendo que o gatinho também tinha um coração tão grande quanto o do tutor. Ele levou o prato com o misto quente e a caneca de café com leite para a rede, onde se deitou para conversar à vontade. Parker mencionou a ideia de passarem férias juntos em Cape May, e ele sugeriu algo melhor. Por que não viajarem para um lugar onde nunca haviam estado anteriormente? Construir novas recordações, das quais Daniel também tivesse como participar? Com a sugestão, ele realmente a surpreendeu positivamente. Claro que aquilo não era inteiramente espontâneo. Sim, Daniel queria fazer novas lembranças, mas existiam pontos de sua história que precisava compreender. Quanto a sua obstinação em saber, todavia, reservaria para si.


No sábado, as surpresas recomeçaram. Daniel ensaiava a retomada dos estudos. Acostumara-se tanto ao ritmo corrido que, uma semana após a separação dos DVDs e livros, sentia-se incomodado, quase culpado. Ele assistia a uma aula de matemática, quando Max entrou em contato por celular. Disse que viera de Cape May para conversar, e o aguardava no aeroporto, sentando num dos bancos próximos aos guichês da American Airlines. Depois de agradecê-lo pela consideração, Legrand insistiu em acompanhá-lo ao estacionamento. Arranjaria para que Max parasse o carro no espaço reservado a agentes portuários, para o lado dos hangares de carga, livre da cobrança de estadia pela concessionária do estacionamento. Max executou a manobra que o colocou na pista interna a caminho de um espaço mais reservado e distante dos terminais. A dupla improvisou uma carona para o terminal do Liberty num carrinho de cargas da American Airlines. Eram 18:00, quando Daniel e Max chegaram ao mirante para dialogar.


Max sabia os motivos de ter se apresentado, e foi direto ao ponto. Resumiu a história de Daniel, conforme se recordava, e a narração do amigo não diferia substancialmente do passado deduzido por Legrand pelas pistas. Simone di Sofia jamais fez parte da vida daquele grupo. Podia afirmar categoricamente: seu nome fora usado por um propósito, ferir Padre di Sofia, o anjo da guarda da vida de Daniel, anos após os fatos de Cape May e para além da capacidade de Daniel se recordar. Padre di Sofia fora escolhido como alvo justamente pelas suas especiais qualidades de inocente e verdadeira amizade, amor, e idealismo imaculado que só palpita nos jovens corações. Da parte de Simone, ela morrera com a mãe em 1977, desencadeando a transformação que sublinhou o arco da trajetória de Padre di Sofia, de um despreocupado e próspero vinicultor ao humilde e intelectualizado sacerdote que por toda aquela galera de Cape May dedicara tempo e amor incondicionais e desinteressados. "Mas onde está esse cara?!", Legrand suplicou para Max. Ele respondeu: "Disse anteriormente, e insisto: mais próximo do que pensa. Você entenderá". Daniel achou por bem levá-lo para casa; como um rosto do passado, Max brindaria a avó Gladys com uma feliz surpresa.

Assim que Gladys pousou os olhos no visitante, Daniel pôde ler o reconhecimento nas expressões dela. Ela enxugou as mãos no avental e o abraçou com a liberalidade de uma pessoa mais velha ao reconhecer no homem diante de si o adolescente amigo do neto. Max era uma pessoa que, mesmo há muito afastada, avivava lembranças de uma época feliz, para sublimar o distanciamento, como se não tivesse se passado um dia sequer desde a última vez. Quando Max viu as fotos salvas no computador, elementos do mistério começaram a ser esclarecidos.

- Você não apenas foi tragado para uma espiral de mentira, Daniel. - Após meio minuto alterando as fotos de "Simone", ele avisou: - A pessoa responsável serviu-se de duas meninas distintas para criar essa personagem a qual liga para ti, de tempo em tempo. Essas fotos, eu diria que datam de 2001, mas você só a conheceu em 2002. A menina da foto se chama Mildred.
- Como? Você não disse que era "Simone"?
- Não. Falei que a pessoa utilizou o nome de uma menina chamada Simone di Sofia. Ela realmente existiu e morreu, antes de nascermos. - Max ergueu o polegar, num movimento para cima, frisando sua fala. - De posse de um nome, a pessoa precisava de um rosto, algo para conferir verossimilhança à farsa. E ela foi crudelíssima, pois escolheu essa garota aqui. - Deu uma batida leve com as pontas dos dedos na tela. - "Mildred Weber". Ela foi sua namorada, em Cape May. Faleceu em 2003. Câncer. Amigo, como pode não se lembrar disso? - Naquele ínterim, Gladys apareceu na porta, tensa. Max voltou o rosto para ela e indagou. - Senhora Gladys, ele verdadeiramente não se lembra da namorada! A senhora não disse nada a Daniel?
- Quando ele veio me falar, entusiasmado, soube no ato que se tratava de outra pessoa. - A avó justificou, emocionada, sentando-se próxima aos dois, na beira da cama. - Eu poderia ter falado na história da menina, Max, mas por que causaria dor ao meu neto?
- Eu entendo, senhora, eu entendo. - Max se desculpou.
- Meu Deus, vovó. Essa garota, Mildred, foi minha namorada? - Uma pausa, silêncio. Ele perquiriu corajosamente: - Morreu de câncer?
- Leucemia. - Gladys revelou, baixando o rosto e deixando as lágrimas rolarem.
- Meu Deus. Suntee devia estar aqui. - Alcançou o celular e consultou o amigo. - Max, importa-se se eu convidá-lo a participar da reunião?
- Em absoluto. Fique a vontade. - Deu liberdade, e voltou a vasculhar as fotos, os arquivos passeando na tela como um antigo rolo corrido de fotos.

Suntee passeava com os amigos da sala. Ele deixou os amigos prosseguirem com o boliche, e se pôs a caminho. Os três foram trocar ideia no alpendre. Ao sabor da luz amarelada e anêmica, conversar por ali oferecia uma aprazível atmosfera de familiaridade e isolamento. Mesmo não imaginando completamente a natureza da pessoa com quem lidava, não se tinha como negar a eletricidade envolvida na reunião. Gladys trouxe uma garrafa térmica com café e um cestinho de pães de queijo, e eles agradeceram. Daniel gentilmente a tocou no ombro e pediu que permanecesse entre eles. Gladys fazia parte de seu passado, e podia ajudá-los, dando pontos de vista inéditos à situação. Evidentemente, suas reminiscências de Mildred permaneciam vicejantes. 

Daniel conhecera Mildred num momento de vulnerabilidade. Arrasado por causa do fim do relacionamento com Parker, ela reiniciara dentro de Daniel o tesouro que ele tentara entregar `a Parker. Mildred fora a primeira criança a qual originara o orfanato que se tornaria um dos maiores e melhores do país, obra de Padre di Sofia. Ela crescera sob os cuidados das freiras e recebera educação católica; virtuosa, sua vida em nada fora prejudicada pela deficiência visual. Dentro da instituição para as crianças, crescera e se desenvolvera como uma mulher de frágil compleição, mas grandiosas virtudes. O orfanato mantinha o projeto com os animais de rua; fora Mildred que, mesmo em face da cegueira, insistira na ação, e era ela a idealizadora. O abrigo promovia as feiras para adoção dos bichinhos uma vez a cada semestre. Na adolescência, Mildred tinha sobrevivido `a leucemia, e, dentre outras meninas, destacara-se pela pureza que conseguira sustentar durante a vida e até a morte. Gladys e Max explicaram que, por causa de Mildred, ele fora capaz de recuperar o foco, concluir o curso superior e ser aprovado no concurso para a Guarda Costeira. No fim de 2003, quando a leucemia retornou após anos de remissão, Daniel fracassou no intento de tentar manter-se firme e coeso após a morte dela. A tragédia que custara suas lembranças se dera na  curva da entrada de Cape May, de onde se atirara com o carro.


Então seria esse o mistério? O "acidente" fora uma tentativa desesperada de tirar a própria vida, e a avó procurara protegê-lo da culpa e vergonha. Emocionado, abraçou Gladys e perguntou por que ela não desabafara naqueles últimos anos. A obstinação da avó de poupá-lo não conhecia escalas
. Foi uma bela cena, e Suntee e Max afastaram-se para avó e neto experimentarem a reconciliação com privacidade e paz.

Quanto às fotos, Suntee os tirou da escuridão da dúvida. Daniel perguntou como a garota teria utilizados arquivos que não seriam seus, dado que não reapareciam em lugar algum da rede de onde teriam sido copiados previamente. Se as fotos haviam sido salvas, teriam de reaparecer em qualquer outro lugar - um perfil social, um blog, qualquer outro sítio da internet. A não ser, aventou Suntee, que as mesmas tivessem sido salvas antes de deletadas. Era muito possível que, no passado, tivessem existido rastros da existência de Mildred Weber online. Um perfil, um álbum de fotos... Fosse quem fosse a farsante, salvara os arquivos e os mantivera consigo para utilizá-los quando a oportunidade se apresentasse. Quando Mildred morreu, também o perfil online se foi, a não ser pelas fotos guardadas pela estranha, reutilizadas para dar credibilidade à performance de admiradora misteriosa. Tão lógica a tese, Daniel e Max sentiram-se estúpidos por não terem enxergado os fatos de maneira lógica e imparcial.


Mais tarde, Daniel e Suntee levaram Max ao aeroporto. Daniel o convidara a repousar em casa, porém Max insistira que as obrigações de pai o forçavam a regressar a Cape May o quanto antes. Era tarde da noite, quando a caminhonete o devolveu ao portão do hangar de carga. Ao longe, o rumor de turbinas sendo aquecidas, para os lados dos terminais de passageiros. À aquela distância, os terminais lembravam rabiscos borrados, de onde emanavam dumas de diferentes cores, a mais determinante a amarelada. Max se despediu, abriu a porta e, antes de descer para ir a seu carro, insistiu:


- A vida não pode ser tão simples assim. - Opinou, com o braço apoiado na janela aberta, ao lado de Daniel. - Eu não sei por que alguém faria algo semelhante, passar-se por outra pessoa, mas talvez esteja querendo ajudá-lo a se lembrar. 

- Concordo. - Apoiou Suntee, do banco de trás. - A garota praticamente o guiou de volta a Cape May. Ela queria ser descoberta.
- Lembre-se, Daniel, hoje você aprendeu coisas importantes sobre sua história, mesmo que desagradáveis. Esses eventos mais marcantes podem mascarar razões as quais você só encontrará nos pequenos detalhes, e não nos grandes eventos. Começou a arranhar a superfície há pouco. Seu quebra-cabeça somente se resolverá quando enxergar o conjunto.
- Ele precisa se recordar. - Suntee fez coro. - Nós, seus amigos, podemos ajudá-lo até certo ponto, mas a verdade é uma corredeira que precisa ser vencida por ti. Sozinho.
- Boa sorte, amigo. - Max repentinamente pareceu o mesmo rapaz de quem Daniel se lembrava. Mais de quinze anos tinham se passado, mas sentia que podia contar com o suporte dele, da mesma forma que aos quinze anos de idade. - Você sabe onde me encontrar.

Daniel executava o retorno para casa, na mesma altura da via onde, há algum tempo, lera o primeiro e-mail de "Simone", quando o celular chamou. Reflexivamente, acionou o pisca e procurou a segurança do acostamento, para conversar. Sentado ao lado, Suntee assistia ao desenrolar da cena com olhos alertas e tensos.

- Ei, Danny
- Olá, querida. - Lançou um olhar nervoso para Suntee, que fez sinal para que continuassem a conversar normalmente. - Estou me acostumando a suas ligações aos sábados.
- Frio em Jersey? - Perguntou, para logo concatenar. - Aqui em Nova York, o verão não prosperou. Nada como um temporal para arruinar o tráfego e o sábado juntos. - De fato, Daniel até conseguia escutar o rumor de água corrente descendo por caibros, do outro lado da linha.
- Você está em casa? - Indagou, cauteloso para não dar vazão às emoções prematuramente.
- Não. Em um coquetel no Metropolitan. Eu me vesti para matar. 
- Está tentando me seduzir? - Provocou. Seu olhar relanceado para Suntee o pegou fazendo o positivo, aprovando com o polegar. Podia fazer tempo que Daniel não flertava, mas a tirada soou inspirada.
- Você, sofisticado, Danny? - Uma discreta risada. - Mas o que gostaria de saber é quando me perguntará o que faço em Nova York. - Daniel vacilou. Antes da chance de responder qualquer coisa, "Simone" retomou. Subitamente, o tom mudou. Se até então não se evidenciara pura maldade na incomum relação entre admiradora e admirado, ainda que ele lhe tivesse mostrado que ela mentira sobre a identidade, e pairava sobre o jogo uma ingênua doçura de platônica amizade, agora era como se as chantagens entrassem em cena para a introdução do verdadeiro jogo. Não se tratava mais de um ensaio. - Bem, no Metropolitan, estamos prestigiando as telas de Goldman Roehmer, um pintor prematuramente falecido. O talento só foi reconhecido após a morte. 
- Como acontece aos grandes artistas. - Complementou o atento Daniel.
- Como ocorre aos grandes artistas. - Ela fez eco. - Se eles têm a infelicidade de viver muito, deixam de ser artistas e, Deus os livre, viram estrelas. Nada pior pode acontecer a um verdadeiro artista. O verdadeiro artista precisa morrer desconhecido após uma vida miserável e marginal. Morrer pelas mãos de seus excessos. - Ela ditou, persuasiva. - Roehmer explora a existência de um mundo de loucuras e fantasias coexistindo com nossa realidade. Tome por exemplo minha tela preferida, tela a óleo, um meio-dia ordinário e caótico de uma sexta-feira em Times Square. Há a confusão habitual, o tráfego, os transeuntes apressados, um cavalheiro entrando num delicatessen muito pequeno. Simultaneamente, esgueirando-se por trás dos paredões dos enormes edifícios do centro financeiro, nós vemos um gigante, maior, muito maior que o mais admirado arranha-céu nova-iorquino. - Ela limpou a garganta para continuar, sem perder a batida, sem perder o entusiasmo. - Um gigante imponente cuja cabeça toca nuvens, formado por pessoas, homens e mulheres, todos nus, atados uns aos outros pelas coxas e ombros, por tiras de borracha, numa coreografia ensaiada de detalhes que vão desde a sola dos pés, na verdade os indivíduos mais fortes, agora mortos por esmagamento, a olhos bem abertos, os mais jovens que gozam de melhor visão, destacados para a formação dos globos oculares.
- Uma descrição impressionante. - Legrand podia dar forma e imaginar a delirante descrição. Ele pigarreou, engoliu em seco, sentindo-se esquisito, e mordeu a isca: - O que está fazendo em Nova York?
- Eu moro aqui. - Ela respondeu, prontamente. 
- Bem, eu sabia que morava em algum lugar, qualquer lugar menos Cape May. No começo, não compreendia como alguém se passando por outra pessoa arriscaria me contatar, mas então entendi que seus celulares são descartáveis. - A testa de Daniel empapara-se de suor, a cabine uma prisão onde era difícil respirar o ar abafado. - Claro que você verificou se as fotos que utilizava apareciam em outros lugares da internet. E confeccionou uma persona, somando duas pobres meninas: uma, a filha de Padre di Sofia; a outra, uma garota chamada Mildred Weber. E sei que ela foi minha namorada. Como Mildred morreu há quase dez anos, você pôde usá-las à vontade. Por quê? Quem é você?
- Eu fico feliz que não tenha precisado confessar. - A voz acusou certo refrigério. - Imaginava quando finalmente me perguntaria. Eu não fiz por mal.
- Eu suponho que não. - De uma inexplicável maneira, tentou ver o que nela existia de bom, mesmo sem conhecer suas mórbidas motivações. - Mas precisa me dizer quem é.
- Eu acho que você sabe.
- Sim. - De fato, não precisava de novos dados redundantes para chegar ao resultado inevitável do mistério. Quando Robyn o chamara de Danny, parecera suficientemente claro que não apenas era "Simone di Sofia", como também tinha razões para se mover de volta ao tabuleiro. - Eu acho que não tivemos oportunidade de conversarmos melhor, Robyn. Uma voz dizia para mim que era você, desde que fomos apresentados formalmente na festa.
- Ainda assim... - Ela relutou. - Sabe que não o fiz para magoá-lo?
- Certo, mas se não foi para me ferir, foi por quê?. - Sentia-se perdido, e buscou por alguma orientação em Suntee, o qual, naquele instante, parecia-lhe ainda mais confuso. - Mas eu conversei com algumas pessoas e sei que Mildred existiu.
- Sim, claro. Ela foi importantíssima. Acho que foi pela envergadura dela na sua vida que me fiz passar por ela.
- E certamente soube que eu procuraria me informar, que de uma forma ou outra chegaria `a verdade, correto?
- Sim. Eu desejava ser pega, Danny. Não me peça explicações. Talvez, não tivesse coragem de me aproximar de cara limpa.
- Mas agora que nos aproximamos, e eu descobri a verdade, você consegue me explicar seus motivos? Eu compreendo os de Parker, mas não os seus.
- Não entende apenas porque não se lembra. - Ela diagnosticou, dando o xeque-mate. - A pergunta é: você gostaria? De se recordar?
- Até o momento, não sei muito. Pretendo voltar a Cape May para descobrir minha história. - Falava esfregando a testa, confuso. Não estava mais tenso ou zangado, apenas perdido.
- Mas eu não sou a sua inimiga, você sabe disso? Eu sei que a ama, e Parker te ama também, mas não há como tomar as mãos da minha irmã e cavalgar rumo ao pôr do sol, Danny. Vocês não têm mais quinze anos, então as implicações sempre virão mais tarde, e não só para ti. - Daniel cerrou os olhos como que apanhado por um soco no estômago. - Ou você segue a vida e deixa sua história definitivamente para trás, ou permanece e assume a Parker, desde que saiba de tudo, e não de partes. Não pode ficar com minha irmã sem a história completa. Não pode escolher apenas as partes agradáveis.
- Eu prefiro saber de tudo. Você pode me ajudar, Robyn? - Perguntou, sua respiração ofegante ao telefone. 
- Já estou ajudando, não vê? Quando te digo para esquecer essa história e olhar para a frente, eu o faço pois me preocupo com seu bem, com o bem de Gladys. Parker fez mal ao envolvê-lo. Ela quer sua felicidade, mas foi tola ao procurá-lo. O melhor seria tê-lo deixado tocar a vida sem se recordar. Agora, só lhe resta deixá-la; não é o que gostaria de ouvir, mas eu insisto, estou tentando ajudá-lo
. - Robyn respirou profunda e pesarosamente. - Você está apaixonado, certo?
- Foi tão grave assim? - Tentava jogar com suposições, mas realmente parecia fora de sua alçada. 
- O suficiente para que a sua avó te tirasse Cape May imediatamente. As pessoas envolvidas têm suas vidas. Para que mexer neste vespeiro?
- Eu vou chegar `a verdade, Robyn. - Daniel prometeu, fazendo soar como desafio.
- Eu não posso deixar. Eu não sou sua inimiga, mas não vou deixar. Eu não somente tenho minhas razões, também tenho os meios para detê-lo. Por favor, pense bem antes de começar uma briga comigo.
- Eu preciso saber. - Insistiu, como que se justificando. Sabia que a partir daquele instante, Robyn seria sua inimiga íntima. - Eu não entendo... Mas quando se fazia passar por Mildred, encorajava-me a buscar a...
- Sim, sim. - Ela o cortou, tensa. - Mas apenas porque queria que chegasse a mim! Eu sabia que assim que conversássemos, juntaria as peças e concluiria que vinha trocando e-mails comigo o tempo inteiro!
- Ainda assim. - Daniel queria poupá-la, mas precisava ser honesto. - Eu preciso ir até ao fim.
- Eu compreendo. - Suspirou, lamentosa. - Eu apenas não posso deixar.
- Eu entendo. - Sacudiu a cabeça lentamente em afirmativo. Olhou ao longo da pista, vazia e pincelada pelas luzes dos postes a escoltarem a rodovia. - Boa sorte.
- Pense bem antes de se envolver, Danny. Eu não vou deixar você ganhar. Se começarmos a brigar, eu só pararei depois de me convencer que não poderá mais falar.
- Robyn... Aconteceu algo à sua saúde lá atrás? O que mudou, Robyn? - Legrand suplicou, com a voz embargada. Clic. Robyn desligou.

Daniel fechou a dobra do celular e desceu calado. A passos vagos, foi ganhando distância da caminhonete, caminhando ao longo do meio-fio. Suntee lhe assistia, desgostoso, pelo retrovisor. Ele o viu parar ao lado do sinal de retorno. Esperou que voltasse, mas quando Daniel permaneceu por lá, de costas, foi atrás. A noite estava muito fria, e pela tonalidade prateada que começava a avançar pela duma de Nova York, uma forte precipitação se encaminhava.


- Você quer conversar? - Suntee ofereceu o ombro amigo. - Compreenderei se não quiser.

- Do que Robyn não quer que eu saiba? - Indagou, com o semblante perplexo. 
- Há um elemento de macabro na equação. - Suntee verificou, coçando o queixo e meneando com a cabeça no sentido da imensidão circundante. - Seja o que for, as implicações do segredo podem trazer sérias consequências `a vida dessa pessoa. E parece disposta a te deter, custe o que custar.
- Mas o que Robyn faria a mim? - Seus olhos encheram-se de emergência, marejados ao toque da luz aquosa e sem charme dos postes. 
- Olhe, escute... - Suntee ergueu uma mão de discernimento e resolveu deixar as suposições. - Dentro de algumas semanas, teremos o resultado do concurso. Se seu nome constar da lista de aprovados, estará disposto a deixar essa confusão?
- Eu não sei! - Respondeu. A pergunta lhe pareceu assustadora, de tão premente a possibilidade.
- Mas tem que saber! Você precisa pensar a respeito! - Suntee segurou os dois braços de Legrand pelos cotovelos. Encarando-o, insistiu. - Você tem muito a perder! Pode ser que tenha se sentido `a margem de sonhos, mas pense no que houve desde o começo do ano! Você salvou a gente do avião, e agora pode figurar entre aprovados de um concurso!
- Então, o que propõe? - Daniel deu a Suntee um gostinho das implicações do dilema. Mesmo o resoluto amigo vacilou quando confrontado com a pergunta à queima-roupa.
- Eu não sei. - Deu com os ombros e sugeriu: - Procure saber mais sobre Robyn. No menor sinal de problemas mais graves, pule fora sem misericórdia. Retome a vida no Liberty, espere o resultado do concurso. No fim, nos encontraremos, todos nós, para uma festa com churrasco, e o futuro será uma grande alegria! Venha, vamos embora. - Puxou-o pelo braço. Tendo começado a chuviscar, voltaram a passos apressados ao calor confortante da cabine.

Allen anunciou a abordagem traçando um riscado gélido e úmido com a taça de champanhe sobre as costas expostas nuas, vistas através da abertura do elegante vestido azul usado pela esposa, a começar pela nuca e descer pela espinha. Robyn estudava pensativa o modo como, sem agressividade, a chuva polvilhava a Fifth Avenue com a 82nd Street. A precipitação, em nenhum instante hostil, deixava-a louca para tirar os saltos e voltar para o apartamento andando de pés descalços, dançando carregada por chuviscos e ventania como num nostálgico, empoeirado filme romântico datado. Robyn se voltou ao cavalheiro e se esforçou para esboçar um sorriso resignado; contudo, o marido a conhecia melhor.


- O que posso fazer para vê-la feliz? - Perguntou, ao trazer a cabeça da esposa para o ombro, uma tentativa honesta de confortá-la. - Você está arrepiada. Sente frio? 

- Se eu dissesse que gostaria de voltar de mãos dadas a ti, caminhando pela rua de pés descalços, pareceria tão louca quanto a ideia soa aos ouvidos? - Sussurrou.
- Nem um pouco mais do que você já é. - Os dois riram. Robyn respirou fundo, e deixou o ar gelado escapar dos pulmões sofregamente. Allen afagou os cabelos da mulher. - Então, se for para voltarmos a pé, é melhor tratarmos de nos apressar, antes que o tempo piore. Vamos, querida.

Como dois trôpegos e inebriados enamorados, Robyn e Allen seguiram caminhando, felizes e descompromissados, vencendo a Fifth Avenue, a "linha dos milionários", uma das mais caras e elegantes vias de Manhattan, a qual nova-iorquinos chamavam "Fashion avenue". O ano era 2010, mas ao admirar o conglomerado de arranha-céus de arquitetura arrojada, Robyn procurava transportar-se aos romances de Edith Wharton. Certamente, seu sangue se tornara azul, afinal fazia parte do seleto grupo que ditava o rumo do mundo. De Robyn, partiria uma linhagem descendente dos "Legisladores". À medida que se afastavam do Metropolitan, caminhando no sentido de downtown Manhattan, multiplicava-se o número de ruas geradas do manancial, que era a avenida principal. Havia carros, pessoas felizes, luzes e uma cacofonia de sons da cidade grande.

Quando chegaram ao apartamento na Park Avenue, eram 22:00. Robyn foi se despindo na sala, a caminho do banheiro, onde se cobriu com um roupão branco. Ao sair para o terraço, já estava à vontade, em roupas de dormir. A piscina circundava a cobertura do imóvel, e agora que a chuva se fora para revelar um manto estrelado, deixando para trás somente o frio, a superfície da água refletia cada centelha acima. A suíte ficava no segundo nível. Robyn se encostou na sacada para experimentar o contato da brisa muito gelada daquela noite particularmente chuvosa em Nova York. O vento apanhou seus seios desnudos, seus cabelos chicotearam no rosto cuja beleza tempo e cansaço jamais teriam como obliterar. Ficou voltando mentalmente `a conversa com Legrand, tentando compreender a natureza de como se sentia em relação ao inimigo, o homem que conservara dentro de si a amizade genuína e desinteressada que, aos outros, perde-se após os 15 anos. Allen desatava o nó da gravata ao chegar ao terraço. Ficou feliz ao encontrá-la à vontade. Ela estava com uma das pernas dobradas, inclinada para examinar a sola do pé direito; pisara numa farpa. Colocara um som leve e agradável no som, Tevin Campbell, "Could you learn to love someone". Da mesma maneira que fizera no Metropolitan, abordou-a delicadamente. Ao toque das pontas dos dedos, ela estremeceu como se um pequeno circuito tivesse queimado.

- Noite agradável, não? - Comentou Allen, mas Robyn não respondeu. Tudo o que fez foi respirar profundamente e recolher-se aos braços do companheiro, como uma garotinha embaraçada. - Qual o problema, meu amor? Vamos, converse comigo.

- Os meninos estão dormindo? - Robyn perguntou. O casal tinha dois filhos, um garotinho e uma menina, seis e cinco anos de idade, respectivamente. 
- Como anjinhos. Acabei de vê-los. - Respondeu, ocorrendo-lhe a ideia perfeita para concluir a noite.
- A garota já... - Robyn referia-se `a baby sitter, uma adolescente filha de uma família do prédio. "Novos ricos", como os Corliss gostavam de se referir a recém-chegados ao exclusivo endereço em Park Avenue.
- Sim, eu a paguei. Deixou os cumprimentos. - Allen começou a desabotoar a camisa. 
- Ela que os pegue e os enfie. - Veio a resposta ácida. Allen deu uma gargalhada, mas se repreendeu levando os dedos para a frente dos lábios para não acordar as crianças.
- Você realmente não gosta dela, hein? - Sentou-se na beirada da cama para tirar sapatos e meias. Da sacada do terraço, Robyn entrou pela varanda, alongando os braços e bocejando.
- Não leve tudo tão ao pé da letra, Allen. Mulheres chamam as melhores amigas de "putinha" e as inimigas de "querida". - Ela abriu um sorriso sensual, faminto, o de uma mulher que ansiava pelo trem de carne na boca. Não havia mais traços de cansaço. Allen aguardava para possuí-la, penetrá-la com firmeza e gulodice. Robyn deixou o robe escorregar aos tornozelos com um mero movimento de quadril. - Deixe-me tomar um banho antes.
- Tenho uma ideia melhor. - Livrou-se das calças. Pousando o indicador na frente dos lábios, pediu que não protestasse quando a arrebatasse nos braços como a uma princesa. O suor lhes conferia o cheiro do sexo, já impresso à cueca e à calcinha, agora infestando suas axilas almiscaradas, suas coxas, suas virilhas e genitálias.

Allen desceu as escadas de degraus de madeira muito espaçosos, as quais serpenteavam entre os dois pisos do elegantíssimo interior da cobertura. Com a mulher no colo, saiu pelo terraço inferior para a área da piscina, e entrou, Robyn primeiro, de costas `a água. Por sobre a esposa, saiu deslizando da beirada à parte mais profunda. O rumor da superfície submetida à turbulência dos corpos não bastou para vencer as portas de correr, e Allen e Robyn sentiram-se assegurados de contarem com privacidade. Primeiramente gélida, logo seus corpos se aclimataram à piscina. Quando menos esperavam, a água lhes conferia o calor que a noite de Nova York lhes negara. Talvez não fosse da piscina o mérito, mas dos membros, enroscados como perfeitas peças complementares, o pênis duro e irrigado do marido roçando nas coxas de Robyn, as unhas dela machucando as veias grossas do pau ereto. Ela se posicionou melhor na escadinha para receber as metidas. Um pouco depois, após o sexo, eles se prepararam para dormir. Robyn saiu do banheiro num robe preto de cetim com faixa, meio aberto a ponto de revelar os seios duros e saudáveis. Ficaram um tempo se olhando, com cumplicidade. Allen acariciou a cabeça do pênis. Ela o levou `a boca, as narinas pinicando ardidas com o fedor do líquido que antecedia o endurecimento do membro, e trabalhou um pouco nele, lambendo a base, o saco escrotal, o talo, e abocanhando a glande, até devolvê-lo ao tamanho com o qual serviria a Allen em seu intento. Nos lábios, ela salvou o gosto salgado, como se tivesse bebido água de um copo anteriormente usado para se tomar sal de frutas para acidez estomacal. Masturbando-se com a mão direita, Allen levou a esquerda aos cabelos de Robyn. Ela lhe sorria meigamente, e assistia ao ato, sua atenção modulando do rosto angustiado do marido à fricção gradualmente frenética da mão em torno do pau. A maneira como a luz aquosa das luzes externas do terraço invadiam através das cortinas e pincelavam a face de Robyn em multicores de neon a deixava uma fac-símile das vilãs apavorantes dos filmes de horror psicológicos de David Cronenberg; Geneviéve Bujold, de "Gêmeos Mórbida Semelhança", Deborah Unger, de "Estranhos Prazeres"; Genna Davis, de "A Mosca". O produto da ejaculação saiu em duas golfadas, para cima e lados, a primeira mais produtiva, apanhando o queixo e a pontinha do nariz de Robyn, a segunda obra dos espasmos sem força, deixando o restante do sêmen nos cabelos encaracolados da púbis. Ela arqueou as sobrancelhas, sorrindo, e lhe disse que ficaria bem, limpando-o com um lenço do criado-mudo. Era um momento carregado de erotismo; porém, mais significantemente, de cumplicidade e amor entre dois parceiros pela vida. Enquanto Allen dormia de bruços, Robyn deslizou a janela, voltou ao terraço e partiu ao meio o celular descartável usado previamente para conversar com Daniel. O jogo do fingimento acabara, e agora os dois reconheciam um a outro como oponentes no campo, ou melhor, no ringue, na área da competição. Ela se apanhou pensando no rapaz, no quanto já sabia e a que ponto estava disposto a chegar pela verdade. Com as costas da mão, limpou a boca e o nariz da porra seca, fungando e aprumando o rosto com um olhar de cruel jactância.

Em Elizabeth, Gladys fechava as janelas para que não respingasse dentro de casa; poças já tinham se formado no alpendre. Daniel se encontrava na cozinha, aguardando que a avó preparasse a garrafa de café. Imaginava como se explicaria a Giro, já que Max estivera de passagem e ele não avisara o amigo a tempo, conforme prometido. Nada era mais importante, todavia, que os questionamentos deixados pela conversa com Robyn. "Se eu apenas me recordasse", murmurou consigo, enquanto observava Cyrano se aninhar no vão de passagem entre cozinha e sala. Dos armários sob a pia, veio o clangor de metais, Gladys apanhando a panela para esquentar água. Daniel não queria compartilhar a insônia com a avó, mas quando Gladys notara que o neto ia e vinha sozinho na cozinha, às claras, soube que não conseguiria dormir enquanto o rapaz sofresse calado.

- A felicidade é que amanhã é domingo. - Gladys constatou. - Não se preocupe, até porque se nos recolhermos mais tarde, não há nada melhor do que despertar tarde, lembrando-se que o fim de semana não acabou.

- Isso. - Daniel não teve como discordar, e riu. - Quer uma ajuda aí, vovó?
- Fique sentado, querido. - Ela acendeu a boca do fogão, produzindo um rumor tranquilizador em constância, assim que a chama se manteve. - Conte-me, o que aconteceu?
- A moça que se dizia "Simone", usando fotos de Mildred... - Ele ia explicar, mas a avó meneava a cabeça como se conhecesse onde desejava chegar.
- Sim, claro que jamais poderia ser verdade. - Gladys puxou uma cadeira, momentaneamente incomodando Cyrano, que levantou o rostinho para repreendê-los com um olhar severo, e logo voltar a aninhar a cabeça entre as perninhas esticadas. - Mildred morreu pouco antes de deixarmos Cape May. Max explicou para você, não?
- Pois foi Robyn quem se fez passar por Mildred. - Revelou, num só fôlego. A avó parecia surpresa, e Daniel desnecessariamente nominou melhor sua admiradora. - Robyn Cowan. Ou melhor, Corliss agora. É uma mulher casada.
- Sim, claro. - Ela respondeu, as palavras ditas com pressa, como se monossilábica fossem. Ficou por um par de minutos estática, olhos na boca do fogão; entretanto, na verdade, era em algum outro lugar distante onde se refugiavam seus pensamentos e considerações. - O engraçado, Danny, é que para uma mulher se dar o trabalho de se passar por outra pessoa, tudo só pareceria sensato se houvesse uma história entre vocês dois, e eu realmente não me recordo muito da Robyn. Claro que me lembro de Parker sempre em casa, pois vocês eram muito unidos e, pelo menos por um tempo, namorados. O rosto de Robyn aparece numa ou noutra lembrança, mas no apanhado geral, eu...
- Espere, vovó. - Daniel apertou os olhos e balançou a cabeça, confuso. - Você disse, "por um tempo". Então, Parker e eu namoramos, porém apenas por um...
- Sim, sim. - Gladys limpou a garganta, condicionando-se a encarar a empreitada. Precisava de disposição para acessar coisas até meses atrás esquecidas e devidamente perdoadas. - Quando se conheceram, eram adolescentes ainda. Ela entrou na sua vida quando tinha 14 anos. E mais tarde, engataram um namoro; o namoro durou até 2002. - Ela franziu, para reafirmar, desta vez com segurança: - Isso mesmo, 2002. Foi o ano no qual se formou. Eu me lembro muito bem quão arrasado ficou quando ela terminou, praticamente a dois semestres do término do...
- Ela me deixou, então. - Repetiu, para não deixar dúvidas.
- Sim, foi a Parker quem... - Gladys sacudiu a cabeça, pensativa. - Escute, não quero fazer com que se sinta mal a respeito, mas são os fatos, querido. Foi Parker quem te deixou. Não me pergunte sobre motivos, só Parker poderia te explicar melhor. Ela deixou sua vida pouco antes da formatura, quando entrou a outra menina... - Gladys encarou o neto, que complementou.
Mildred Weber. - Ele murmurou.
Mildred Weber. - Confirmou. - Uma menina doce, cheia de gosto pela vida. Tão grata pelas coisinhas mais simples, por mais que sua história lhe desse oportunidade para odiar a vida. Mas ela sabia que revoltar-se era uma cilada demoníaca. Ela nunca se queixava, nunca se rebelava. Sempre com o terço em mãos, pedindo para que lhe lessem sobre os caminhos do Senhor, pois ela mesma não conseguia, pela cegueira. - Gladys chorava? Seus olhos cheios d'água deixaram as lágrimas finalmente rolarem ao fechá-los enfaticamente. - É muito difícil revisitar aqueles anos, mas suponho que deva isso a ti, querido. 
- Então, essa foi a maior razão que a levou a se distanciar de Cape May?
- Sim. - Ela deixou a cadeira. Sem pressa, pensativa, voltou ao pé do fogão. Suspirando, ilustrou: - Foi uma singela história de amor pela pureza envolvida. O que existiu de especial foi a inocência de tudo, pois ela gostava de você por aquilo que é invisível aos olhos; ela era cega. Você quis o bem dela pelas suas virtudes, também. É uma faca de dois gumes, não? - Lançou o olhar ao neto e explicou-se. - Uma história de amor, tão linda assim... Faz-me pensar que talvez tenha sido melhor esquecê-la após o acidente em 2004. De certa forma, quando perdeu as recordações, teve como sublimar um deserto de luto, e de uma maneira mais esquisita ainda, recomeçar do zero. Compreende meu dilema, certo, querido? Pela primeira vez em anos, você fala sobre ambições e planos, com os ombros livres de pesos, de implicações, de rancores. No entanto, agora quer voltar a apanhar essa bagagem de...
- Certo, mas a senhora reagiu tão bem à Parker! Se fosse assim, eu...
- Sim, eu reagi positivamente, mas apenas porque, melhor do que qualquer outra pessoa, ela não está mais focada no passado, por mais que, diferente de ti, consiga se recordar. Ela é uma mulher com mais de 30 anos, a sua idade. - Gladys deixou transbordar um pouco do excesso d'água e começou a coar o café. - É compreensível que não tenha dado certo, na época. Nesses quase dez anos, imagino que a vida tenha ensinado muito a Parker. É evidente que seu esquecimento veio a calhar. Ela não quer que se lembre de como as coisas terminaram em 2002, porque foi a própria quem causou os problemas que acabaram por afastá-los.
- Então, vovó... A senhora acha que eu faria melhor me mantendo distante de...
Danny, você queria respostas. - Gladys trouxe a garrafa e as xícaras. - Agora, sabe de Mildred e a razão de termos deixado Cape May. Procurei protegê-lo de lembranças desagradáveis. Acho que sabe o bastante para olhar para frente e deixar o resto de lado. Se está tão obstinado a preencher lacunas..."Por que Parker te deixou" ou "Onde foi que as coisas deram errado"... De que importa? Aconteceu há dez anos. - Gladys abriu os braços, encenando a impotência diante de teses tão mirabolantes. - Não importa mais. O mundo continuou a girar, e aqui estamos nesta cozinha. Quando Parker ressurgiu, eu não me preocupei muito, porque sei que não é mais o garoto da época de Cape May. Está mais maduro e sofrido, saberá lidar com uma ex-namorada. Se Parker seguir doce e gentil, se deixar claro que quer seu bem, por que não? Por outro lado, se Parker "virar a casaca", tem idade para não se apegar e cuidar da vida. Não posso tomar decisões por você, mas posso aconselhá-lo. Você tem me surpreendido com o quanto amadureceu. - Ela serviu a xícara ao neto. - Da confusão com o avião para cá. Foi como se tivesse deixado a cabeceira da pista como um novo homem. A determinação com que estudou para o concurso reforça minha crença. Temia morrer e deixá-lo sozinho no mundo, porque mesmo aos trinta, você não vinha se conduzindo com o discernimento necessário para sobreviver lá fora. Agora, você se sairá bem em qualquer contingência. Mais vaidoso, ambicioso, maduro, assertivo... Há aspectos de seu passado que parecem negativos, mas concorreram para um bem maior.
- Bem, mas com o avião da American Airlines, vieram esses rostos de um passado que...
- É natural, Danny. - Gladys se serviu do café. Ela cortou quatro rodelas de salame para enriquecer o sanduíche do neto. - Parker tem o quê? Trinta e pouco? Estava solitária e infeliz, e te viu na televisão. Lembrou-se dos bons tempos, pois não encontrou uma pessoa legal nesses últimos dez anos. Você a respeitava e cuidava. Mais do que um namorado, era o melhor amigo, e foi esse o problema: tornou-se mais um amigo do que namorado. Pergunte a qualquer homem, Giro diria a mesma coisa! - Daniel riu, meio sem jeito. Não esperava tamanha perspicácia vinda de uma senhora idosa. Gladys sorriu e continuou. - Dez anos mais tarde, como mulher madura para além do auge, Parker procura por valores que, aos vinte, não a atraiam tanto assim, e quando te viu na televisão, apareceu por aqui. Você precisa compreender, querido. - Ela apertou o pulso do neto, robustecendo o momento. - Você não tem ex-mulheres ou filhos ou pensões a quitar. É um sujeito cristalino, acima de quaisquer suspeitas, livre de recalques e ressentimentos, com um futuro pela frente, e já começou a pavimentá-lo com o concurso. Mais importante, todavia, é o fato de ter um bom coração. É lógico que hoje Parker te valorize. Eu só espero que tenha em mente seu valor, e não se deixe usar. Pessoas antenadas com sentimentos e apegadas à moral sofrem muito, Danny. As pessoas tiram vantagem de gente assim, que jamais recebe respeito porque põe as necessidades dos outros à frente das próprias, e a tragédia é que por não reconhecerem o próprio valor, permitem-se serem pisadas, pensando que a vida é assim mesmo. Eu sou idosa e não sei quanto tempo há para mim, querido, portanto acorde e sinta o cheiro do café. Você vale muito, sim, e precisa despertar para as malícias do coração humano.
- Então, eu suponho que as lacunas da minha história não valem o esforço?
- Você deve entender que se acha que as lacunas valem o esforço, você estará certo; se acha que não, então estará certo também. Em suma...
- Depende do que quero. - Daniel concluiu a linha de raciocínio, precisamente.
- Sim. Eu posso te oferecer algumas observações, mas não posso escolher no seu lugar. Sabe como eu me sinto quanto a Parker. Ela não é a mulher intocável que você venerou num passado recente, mas um ser humano comum, passível de erros e acertos. Se você se sente seguro, e Parker não te der provas ao contrário, não serei eu quem aconselharei contra o envolvimento. Apenas peço que não tire os pés do chão. Baseie suas decisões no que enxerga claramente.

Quando foi se recolher para descansar, levou Cyrano consigo. O felino protestou, respondendo com inofensivas patadas e bufadas contra o tutor, mas ao se ver depositado com cuidado e carinho sobre a cama, procurou o cantinho costumeiro, o vão entre travesseiros, para tentar "retornar ao sonho". Imerso na escuridão do quarto, Legrand abriu o MacAir e viu que Parker enviara três cartões virtuais. Abriu o primeiro, uma singela animação onde dois gatinhos namoravam na sacada de um prédio tipicamente parisiense em estilo haussmanniano, a algumas quadras da Torre Eiffel, embalados por uma doce melodia. Daniel sorriu, lendo e relendo várias vezes o parágrafo sob a animação: "Tenho pensado sobre Paris. Consegue nos ver no lugar dos gatinhos? Te amo. Parker C.". Ao deitar-se na rede, não conseguiu relaxar facilmente. Percebeu que, noutros tempos, o fascínio provocado por Parker o teria deixado cativo. Naquela noite, entretanto, após a conversa com a avó, dava pela existência de uma zona misteriosa, cinzenta, onde as respostas verdadeiramente importantes dependiam das perguntas certas. Parker apreciava a companhia dele e vinha exibindo seus traços mais encantadores; contudo, agora que estava prestes a dar o passo para o futuro de mãos dadas à atriz, Daniel hesitava. Adormeceu repentinamente, um salto na inconsciência, o lugar onde o passado vez ou outra entrava em cartaz na tela de cinema que era sua mente.


Quando o passado "voltava", Legrand não apenas se recordava, ele os revivia. Os sentimentos insondáveis dentro de um ponto inacessível do espírito atingiam-no como descargas elétricas, ao vê-los pela "primeira vez". Efetivamente, era como se  após tantos anos se encontrasse ali na curva de entrada elevada de Cape May. O céu estava prateado, indicando a aproximação da frente fria, a migrar do Atlântico para a costa, tornando o mar revolto, ondas quebrando enlouquecidas contra rochedos, o vento cortante desestabilizando a enseada e agitando os barcos no cais. Ali onde estava era o começo da descida, um ponto inclinado da pista que traçava a primeira curva, a mais fechada e alta, para a entrada definitiva em Cape May. Antes de colocá-lo na rota direta para downtown, a curva proporcionava a vista de uma breve, impressionante discrepância desnivelada daquele ponto com o mar, altitude suavizada `a medida que se avançava para a cidade praiana. Uma vez que a animadíssima via da orla fosse alcançada, a linha do mar coincidiria com a da cidade, e se você lançasse o olhar para trás, para a entrada de Cape May quilômetros de distância, ficaria surpreso com o tamanho da encosta de onde se enxergaria só um pedacinho da pista na altura da curva, e o faroleiro abandonado.


Era sobre aquela primeira curva onde Daniel caminhava de um lado para o outro, no acostamento, cabelos, calças e paletó amassados pela rebeldia da ventania, braços cruzados na frente do peito. Aos pés, preso `a coleirinha, um meigo gato, ainda filhotinho, uma bolinha de pelo gorducha e atrapalhada que reconheceu como Cyrano, quando bebê. Pelos elementos do sonho, parecia evidente que fora uma noite importante de janeiro de 2002, um ano antes da conclusão do curso, conforme Gladys explicara. Cyrano havia sido preparado com uma encantadora gravatinha vermelha. Pela caminhada em círculos e o aperreio, Daniel também entendeu que aguardava a chegada de uma pessoa. Subitamente, a parte insondável de sua alma abriu-se facilmente aos olhos para esmiuçar o evento.


Sim, Daniel se recordava melhor agora: Parker rompera com o namoro há dois ou três meses, levando consigo o ânimo e o deslumbramento com o qual enxergara o mundo ao longo dos anos entre 1995 a 2001, quando tinham sido tão felizes juntos. Agora, a curva cuja borda dava para ao perfil do Atlântico, aquele lugar que num passado recente parecera especial, principalmente após as aulas quando por ali passavam em direção a downtown Cape May, ou nos finais de tarde nos quais se encontravam para se sentar numa das rochas mais próximas ao desfiladeiro para assistir ao pôr do sol, era um ponto gélido e misterioso, banhado por luzes de postes que, corrompidas pelo néon da diner, subtraia a aura de inocência de dias gloriosos, substituindo-a por uma de mistérios e inconstâncias. De fato, Daniel esperava uma convidada. Conversara com Parker, e tinha prometido que não a atrapalharia mais. Daniel sofria por causa do distanciamento, mas era sensato o suficiente para saber que se ela não aparecesse naquela noite, faria melhor a Parker com sua ausência ao invés de presença imposta.


Ao se dar pelos chuviscos contra a fronte, ajoelhou-se para pegar Cyrano no colo. Tão pequenininho, conseguia segurá-lo com uma mão somente, enquanto com a outra esforçava-se para não deixar que a chuva e a ventania forte arruinassem o buquê de flores, esperançoso no surgimento de Parker quando o bondinho parasse em frente a diner. Ele se sentou no banco de madeira da parada. Quando o bonde deixou os passageiros saltarem, desceram apenas meia dúzia de garotos que, pelas jaquetas, seriam calouros da NYU, na praia para aproveitar o fim de semana. Eram 20:00, o horário combinado para a  chegada; entretanto, ao deixar desolado o lugar, a diner estava fechada, e os ponteiros apontavam pouco mais de meia-noite, a última volta do bondinho, que retornava `a estação e só reassumia a linha `as 06:20 da manhã. Era janeiro de 2002, ele tinha vinte e dois anos de idade, e não sabia da primeira coisa do mundo. Até aquele ponto, Parker na sua vida fora privilégio a que acreditava não caber à sua pessoa. Não imaginava o quão errado estava, o quão pouco sabia da vida, e que em suas mãos guardava um bem que mesmo os mais ricos e tradicionais de Cape May não tinham como assomar do nadapureza de coração. Suas escolhas haviam girado em torno do bem-estar de Parker; esquecera-se do próprio mas, desconsiderando os desapontamentos passageiros, fizera unicamente o bem. Aos 22, no auge da juventude e com um mundo de oportunidades à frente, ainda não percebia os detalhes que, mais tarde, aos 30, procuraria passar `a turma de amigos salvos do avião em chamas na cabeceira do aeroporto de Jersey. Pelos próximos dez anos, porém, Daniel estaria entregue à frustração gerada pela descontinuidade entre a força de seu caráter e aquilo que esperava como resposta à sua postura, quando, conforme aprenderia, agir por amor a Deus e ao próximo não significava esperar amor em troca, mas seguir Cristo à cruz, ali havendo a sublime felicidade: em outras palavras, o mistério da redenção que, no seu caso, viria no ringue ao se levantar contra Robyn.


Ele despertou algumas horas antes do amanhecer, sentindo-se diferente e emotivo, e buscou imediatamente pelo seu anjinho, o gatinho rabugento com trissomia. Ao vê-lo, sorriu, mergulhando sob os lençóis para abraçá-lo. Cyrano lhe dirigiu um olhar irritado e virou o rostinho achatado, provavelmente pensando em como o seu "humano" era um cara esquisito! Daniel riu mais. Afagava as costas do gato, distraído com a forma como o céu variava em gradiente, o sol ainda abaixo da linha do horizonte, porém perto de irromper. Foi um domingo agradável. Na hora do almoço, Daniel saiu para buscar pizza, e absolver a avó dos afazeres da cozinha. No decorrer da tarde, amigos telefonaram, o mesmo tema: a ansiedade pelo resultado com a lista de aprovados. Após o concurso, tão fascinado ficara pelo mistério de Cape May e Mildred Weber, distraíra-se das maravilhosas consequências de uma possível aprovação. Agora, trazido de volta `a realidade, também experimentava o aperto no coração pelo resultado. Durante o resto do dia, nas vezes nas quais o assunto era mencionado, desejava que as semanas se passassem rapidamente, apenas para saber o quanto antes. Gladys requentava as sobras de pizza para consumirem as últimas fatias com goles do maravilhoso café, como jantar. O neto aguardava sentado no alpendre, distraído com brincadeiras com o animado Cyrano, improvisadas com um pano de prato velho.


Foi somente quando a noite se deitou sobre Elizabeth, após o jantar, quando Gladys assistia ao programa de variedades de domingo enquanto conversava ao telefone com uma comadre, que Daniel parou para se aperceber de uma intrigante, quase imperceptível transformação. Não pensava mais tanto em Cape May. No início da jornada, sentira-se movido por uma súbita, inflamável paixão; entretanto, o fato de Parker tê-lo deixado esperando naquela noite gelada na curva de entrada traçara a necessária linha divisória entre fantasia e realidade. Uma pessoa era a Parker idealizada pelo seu imaginário quando a atriz retornou `a sua vida; outra, uma mulher de carne e osso a qual o ajudava a se sentir melhor, porém exatamente isso: um ser humano, com direito a suas falibilidades. Daniel não havia respondido aos cartões. Ao se preparar para dormir mais cedo, Parker telefonou.


- Ei, estranho, tudo bem? - A voz soava triste e acusatória. Sentindo-se péssimo, Legrand viu que jamais conseguiria ser rude com a atriz. - Não me escreveu ou ligou...

- Olá, querida. - Procurou simular alguma empolgação, mas soube que não conseguiria ocultar a grande confusão. - Eu pensava em ti.
- Mentiroso. - Silêncio. Ela continuou: - Sabia da chegada desse dia. - Parker lamentou, suspirando cansada. - O dia no qual se cansaria de mim. A verdade começou a aparecer...
- Fala de como nosso namoro terminou lá atrás? - Daniel quis elucidar. - Sim, querida, eu fiquei sabendo a respeito, e ontem tive um sonho muito real. Eu me vi te aguardando na estação do bondinho, na curva da entrada da cidade. Foi assim?
- Foi, foi assim. - Subitamente, Parker soava comovida. - Por favor, quero estar contigo para explicar melhor! Não quero que continuemos à deriva e, com o seu afastamento, eu realmente...
- Não, querida, não. - Daniel riu de modo caloroso e aconchegante, ajudando-a a se tranquilizar. - Não estou chateado, não procurei me afastar. Eu sinto sua falta. Apenas procuro compreender a dinâmica de como aconteceu! Sinto-me dividido, sabe?
- Quero estar contigo, Daniel. - Parker reiterou para já
. - Não posso ficar parada deixando que até nossos momentos recentes se percam como as recordações daqueles que vieram antes!
- Então como vamos fazer? Você gostaria que eu a visitasse no próximo fim de semana?
- Eu já estou no aeroporto, seu tolo. - Ela revelou, e Daniel nem soube como responder, chocado. - Estou ligando para você do Liberty.
- Oh, querida, uma ótima surpresa! - Disse, já sinalizando para a avó, ao passar pela sala de estar em direção ao alpendre, que gostaria de conversar, em seguida. - Muito bem, eu vou pegá-la então. 
- Você gostou da surpresa? - Parker jamais parecera tão insegura, a voz insistentemente vacilante, carente e chorosa. 
- Claro que sim! Vai ser ótimo, fez bem em vir. Escute, é melhor eu ir apanhá-la antes que fique tarde. Vovó ficará muito satisfeita!
- Esperarei nos bancos da rodoviária do aeroporto. - Parker anunciou, antes de desligar. 

Daniel enfiou o celular no bolso da calça. Antes de se explicar `a avó, encontrou-a na soleira, estudando sua reação ao telefonema compassivamente. Daniel deu com os ombros, visivelmente surpreso, e Gladys sorriu.

- Lembre-se do que eu disse, Danny. Ela é uma boa menina. Ela deseja seu bem. Não tire jamais os pés do chão.
- Não tirarei, vovó. - Daniel sentou-se na soleira, com as mãos na testa, atônito. - Prepararei um quarto para ela.
- Giro ficaria orgulhoso se pudesse ouvi-lo agora. - Gladys acarinhou os ombros do neto, empaticamente. - Ele sempre foi seu fiel escudeiro, uma ferramenta que o Senhor usou para que não se perdesse completamente.
- Claro, claro. - Daniel apreciou as palavras sobre Giro, e ia pensando num insight a lhe ocorrer, quando se lembrou da exiguidade do tempo. - Na volta, passarei no supermercado para comprar algumas coisas para a geladeira. 
- Faça isso. Não se esqueça de ovos, café. As cápsulas, sabe? Aquelas de café com leite e canela, que amo.. - Do mesmo jeito que a avó fazia desde que conseguia se recordar das vezes quando deixava a casa apressado, Gladys beijou a cabeça do neto e reiterou que tudo ficaria bem.

Daniel identificou Parker numa batida de olhos. Vestida com uma mochila, estava de costas, metida em roupas de frio, em frente a um quiosque do McDonalds, da rodoviária, saboreando uma casquinha. Ele estacionou a caminhonete ao lado do meio-fio e antes que a atriz o visse, abriu uma expressão receptiva e suave. Daniel depositou uma mão sobre o ombro dela. Parker reagiu se virando devagarinho e o abraçando carinhosamente, antes de tentar dizer algo. Ele a recebeu com perguntas denotadoras de doce preocupação. - "Como você está", "Você tem fome" - mas a atriz não respondia. Certo de que ela precisava de seu suporte, Daniel deixou as questões para mais tarde, e a apertou contra o peito. Depois de bons minutos bem juntinhos, Parker colocou as mãos contra o peito de Daniel para ganhar uma brecha pela qual tivesse como encará-lo enquanto falava.

- Se preferir que eu volte para casa, eu entenderei.

- "Preferir que eu volte"? - Ele repetiu, zombeteiro e brincalhão. - Você é minha prisioneira agora! - Parker ensaiou um sorriso dolorido. De qualquer forma, era um progresso. - Chegando a casa, a senhorita se refrescará sob uma ducha quente, comerá e terá uma boa noite de sono pela frente!
- "Boa noite de sono"? - Daniel quebrara o gelo, e agora Parker arriscava um flerte bem humorado. - Pensei que transaríamos feito loucos.
- Ei, não estamos em Cape May, e sim na casa da vovó Gladys! - Os dois riram, a caminho da caminhonete. - Ademais, Padre di Sofia sempre esperou tanto de nós Temos de nos comportar! Principalmente por causa do Cyrano, com quem dividirá a cama! - Mais risadas. Parker apegou-se ao namorado, e apoiou-se ao braço forte para amenizar o fardo físico e mental das últimas semanas.

No caminho para casa, o humor de Parker foi restaurado. O sorriso parecia mais fácil, menos imediatista e angustiado. Ela desceu com o namorado no Walmart de Elizabeth, onde passearam entre corredores atirando coisas gostosas dentro do carrinho. Daniel avisou que lhe prepararia um café da manhã especial. Mesmo diante de uma prova de carinho tão banal, os olhos dela marejaram. Gladys esperava no alpendre. Quando a caminhonete parou, desceu para recebê-la na entrada. Parker entregou os pacotes a Daniel, e recebeu o caloroso, familiar abraço de Gladys. Daniel assistiu ao reencontro com uma sensação de alívio. Era verdade que quando ela ligara para contar que viera a Elizabeth, Daniel assustara-se, mas agora o choque inicial havia sido absorvido pela excitante novidade.


A avó a convidou a acompanhá-la à cozinha. Pedindo que sentasse, Gladys abriu a caixa de ovos e tirou o bacon do congelador. O pão, Daniel o besuntou com manteiga e o empurrou na assadeira para o forno. Quando viu que demoraria um bocadinho para pães e tiras de bacon ficarem no ponto, Gladys pediu que o neto a levasse ao quarto, para que tomasse banho, refrescasse-se e vestisse roupas mais suaves. Ela ressurgiu meia hora depois, enxugando os cabelos com uma toalha felpuda laranja, vestindo uma blusa branca, saia folgada e pés descalços. `A mesa, bem-servida com itens gostosos, Parker sentiu-se fantástica por jamais precisar forçar assunto ou se sentir constrangida. A leveza e a fluidez com que Gladys falava sobre a novela ou fofocas de comadres deixaram-na com um fácil sorriso no lindo rostinho. Cyrano acordara e agora brincava com Parker, colocando as patinhas para ver se ganhava chamego. Vencida pela fofura do gatinho, apanhou-o e o aninhou no colo.


Ao se recolherem para dormir, fazia um clima fresco e aprazível, uma noite realmente encantadora. Cyrano abandonou o tutor e foi se deitar com Parker, bem na cabeça dela, entre travesseiros. Daniel adormeceu balançando-se na rede, matutando sobre a distribuição dos fatos na cronologia da sua história pessoal. Cyrano dormia com Parker, mas no sonho que tivera a outra noite, ainda era um filhotinho, em 2002, quando o tutor esperara pela atriz. Quase dez anos haviam se passado. Os sinos da porta que separava alpendre de cozinha tilintaram muito discretamente: Gladys fechava as luzes para se recolher. Ali, os dois mundos de Daniel se encontravam, seu tão recôndito passado e o presente ao qual vinha se acostumando no decorrer dos últimos anos. Daniel não sabia quão próximo estava da verdade.

Daniel chegara a Mildred por força da obstinação em reconquistar Parker. Ele não sabia, porém, alguns meses antes do término, ela vinha se encontrando com outra pessoa. Alguém mais vivido teria reconhecido a situação no ato, mas não o pobre Daniel. Inspirado a fazer algo especial e diferente por Parker, estendeu a mão à ex-namorada numa tentativa final de reatamento. Fora numa das tardes nas quais aparecera na sacristia, em busca de Padre di Sofia para a confissão, que Mildred chamou sua atenção, pela primeira vez. Visitá-lo sempre o deixava com o coração menos pesado; até o simples ato de caminhar pelos jardins em direção à igreja era prazeroso, pois crianças indo e vindo ao redor era uma lembrança da bondade e inocência ainda existentes no mundo. Dentre crianças, ele a notara pela forma como se esquecia do mundo, sentada ao pé de um jacarandá púrpuro, mexendo com um gatinho. Desde o início, Mildred enxergara através da própria deficiência, e vira em Daniel as qualidades que, aos olhos saudáveis de Parker, não valeram muito, na época. Meio apressado para cumprir as tarefas, a confissão acabou ficando para depois, ao sentar-se ao lado de Mildred para conversar e descrever, da melhor forma possível, a bolinha de pelo cuidada incondicionalmente por ela. As horas voaram; foi quando o sorridente Padre di Sofia chegou, oferecendo um abraço aos seus filhos de coração. E, noutra oportunidade, depois que Daniel passou a vir frequentemente ao orfanato para ver Mildred e os gatos, Padre di Sofia lhe contou a triste história da menina. Ela destoava dos demais, e, à primeira vista, poderia ser tomada como uma professora do lugar. De fato, ela os ajudava a cuidar das crianças, mas não era somente uma servidora da instituição. "Sem a Mildred, não existiria o orfanato", disse-lhe Padre di Sofia, afinal fora a primeira criança chegada a suas mãos, antes da existência do lugar. Aparecera pequenininha, à noite, na escadaria principal, quando di Sofia trancava a porta após a última missa e se preparava para descansar. Chegara às mãos de di Sofia como se anjo fosse: não se soube de onde veio ou quem eram os pais. "Amei-a assim que a vi", di Sofia dizia, com os olhos cheios de lágrima: "Lembrava-me de minha filha morta". Agora como padre, pôde ensiná-la quão infinito era o amor do Senhor. "Maior do que seu amor por mim?", Mildred perguntaria ao padre, ainda menininha, emendando "Como poderia ser maior, se o senhor me explicou que seu amor por mim é infinito?". O bem-humorado di Sofia recorria à amada matemática, a disciplina que lecionava no colégio, trazendo à baila os conjuntos dos números naturais e inteiros, ambos infinitos, porém os inteiros como um conjunto ainda "maior" por enquadrar os números negativos. "Você sabe, minha filha, ambos são infinitos, mas há infinitos maiores que outros". Ao longo da vida como professor, dizia exatamente a mesma coisa a seus meninos, e eles sempre sorriam docemente, intrigados. Foi nesse contexto no qual Mildred entrou na vida de Legrand, durante a crise no namoro.

- Parker, nós temos um namoro muito precioso, não deixe que alguém fique no meio. - Daniel ressaltou, visivelmente comovido, naquela uma semana antes do começo do primeiro semestre de 2002, o ano da conclusão do curso. Conversavam à mesa de um café de desenho parisiense, um dos cantinhos mágicos alheios à indiferença maciça de Nova York, à margem de seu mais famoso largo, Times Square. 
- Eu não quero perder sua amizade. A ideia de lhe causar dor é inimaginável. Lembre-se disso quando for tentado a me odiar. - Ela respondeu, com os olhos marejados. Apesar de ter sido Parker quem terminara, também era a própria quem mais lamentava. - Eu sei que estou dando um passo rumo à escuridão, mas não terei as mesmas oportunidades de explorar o mundo e as experiências mais tarde.
- Jamais devemos nos basear nas emoções para decidir. Elas são enganosas. - Daniel afagou os cabelos molhados dela. Seus olhos tristes refletiam o apurado das luzes em movimento vindas das ruas 42 & 47 Oeste. - Nós começamos a construir nosso caminho para o céu. Caminhar em direção ao céu é a vocação do ser humano, Parker. Não deixe que as palavras de cautela de Padre di Sofia se dissolvam e desapareçam, mesmo depois da separação.
- E talvez seja por isso que eu esteja partindo. - Parker fez menção de se levantar. As pontas dos dedos deslizaram pelo rosto do agora ex-namorado. - Mesmo partindo, seguirei dentro de ti, não conseguirá se livrar de mim. E quando eu quiser, estará de braços abertos para me receber, certo? - Ela esboçou um sorriso triste, não inteiramente melancólico. Existia um elemento a mais. Havia um resquício de crueldade na covinha que Daniel aprendera a apreciar tanto. - Há um pouco de veneno em mim. Pessoas psicologicamente danificadas eventualmente precisam destruir aquelas que as amam. É a natureza.
- Não, Parker, isso é uma mentira, ou das suas fantasias, ou do mundo, que encoraja esse tipo de conversa narcisista. Eu estarei em Cape May no aniversário de sete anos de nosso namoro. Você sabe onde me encontrar. - Destacou, com um olhar esperançoso. - Nós nos veremos na curva.
- Eu não vou aparecer.

"Nós nos veremos na curva", dissera Daniel, e era verdade, só que somente se tomada a sentença em seu sentido simbólico; de fato, ver-se-iam na curva da vida, dez anos no futuro. Daniel a viu atravessando com um empurrão a elegante porta giratória de madeira do café, e sendo engolida tão rápida quanto casualmente pela massa de transeuntes apressados, vidas em constante transformação como sangue a correr por malhas entrançadas de esquinas e cruzamentos, esses sim imutáveis, como insetos presos a âmbar, na forma dos atraentes e charmosos contornos da NASDAQ, da Virgin Records, da Times Square... As memórias daquele fim de tarde chuvoso em Nova York foram descritas com riqueza de detalhes por Legrand a Mildred, quando a visitou para contar o fim do namoro.

Enquanto conversavam num banco de madeira sob o jacarandá, Daniel confidenciava a Mildred o quanto desejava que, tendo se avizinhado a data do aniversário do namoro, Parker mudasse de ideia. Um dos gatos chamou a atenção. Era o filhotinho preto tristonho metido entre as floreiras. Ao passo que os outros pareciam não se conter de alegria, por causa da danação, a imagem daquele gatinho com trissomia tocou a Daniel de uma forma ímpar. A mãe havia sido atropelada e morta, Mildred explicou, e Daniel se sentiu um bobão ao só perceber que a narração lhe arrancara lágrimas ao sentir o gosto salgado no canto da boca. Não imaginara quão vulnerável e fragilizado permitira-se ficar, mas via no animal semelhanças que os tornavam companheiros em dor.

Daniel despertou ao fim da madrugada. Movimentando-se com muita habilidade, atento a não causar turbulências `a placidez a qual embalava a casa e as duas mulheres que dormiam, conseguiu deixar a rede para se sentar na cadeira de balanço do alpendre. Encantou-se quando ao leste apontou triunfante a alvorada, o sol comparecendo na linha do horizonte, pintando o que havia de nuvens com rajadas baunilha. O gato
 anunciou a chegada com o barulho das patinhas sobre as tábuas. O coração de Daniel encheu-se de ternura, e agachou-se para receber o "Bom Dia" do amigo.

-  Então, um dia, você foi um lindo filhotinho, hein? - Disse para o amigo num suspiro, e Cyrano o estudou com um olhar interessado. - Por que não permaneceu daquele tamanho? - Ele apanhou Cyrano como a um pacotinho e o trouxe para descansar sobre o travesseiro nas pernas. - Mas não. Você teve que crescer! E o pior, desenvolver um temperamento difícil!

O dia logo amanheceria completamente. Gladys levou um modesto susto ao deixar o quarto muito cedo, como sempre fazia, e dar com as costas de um homem – o neto – na cadeira de balanço do alpendre. Ela deu duas leves batidas no vidro, fazendo um movimento com a mão para que entrasse. "Vai apanhar um resfriado, querido", alertou, pedindo que encerrasse a passagem para dentro por causa da corrente de ar. A avó começaria a preparar a mesa, e Daniel disse que preferiria chegar mais cedo ao aeroporto. Comeria uma bobagem. Um pãozinho com manteiga salgada preparado no forno e uma boa xícara de café com leite lhe pareciam de bom tamanho. A avó insistiu para que se juntasse às duas, mas Daniel sentia-se ansioso, e não sabia explicar por quê, para chegar ao aeroporto e sair caminhando pelo canteiro de onde, há um tempo, testemunhara o acidente o qual alterara sua rota de vida. Às seis horas da manhã, era o primeiro agente aeroportuário do turno a se apresentar, e não levou mais que meia hora para estacionar a caminhonete e partir pelo canteiro das pistas rumo ao exato ponto onde o passado encontrara a janela de oportunidade perfeita para revisitá-lo.

- Giro, procure compreender... - Daniel tratou de reparar seus erros antes mesmo de contar a verdade, durante a preleção da manhã, antes do começo do turno. - Max passou por aqui tão rapidamente que mal houve oportunidade para conversar melhor, quanto mais contar a ti sobre a presença dele. Compreende-me?
- Oh, Daniel. - Pareceu decepcionado, mas felizmente resignado, como se já viesse esperando pela confissão. - Bem, eu não posso culpá-lo, posso? - Os dois se afastaram da porta da sala de operações que dava para o corredor principal, e foram conversar melhor num dos hangares da American Airlines.
- Pegou o caminho na mesma noite e regressou para Cape May. Eu voltava para casa com o Suntee, depois de deixá-lo no aeroporto, quando "Simone" me procurou. - Daniel contava, e o olhar de antecipação do amigo indicava que conseguia prever a maior surpresa de todas. Legrand a salvara para o fim: - Nisso, eu sabia que poderia ser qualquer pessoa do outro lado, menos Simone di Sofia, que havia morrido. E a intuição compensou, pois de fato se tratava da pessoa que eu imaginara: a irmã de Parker.
- Robyn?

Daniel fez que sim. Alguém os chamou do pátio de operações. Para Giro, foi uma trégua, não que não soubesse o que devia falar, sabia, apenas não desejava fazê-lo ainda. Legrand concordou que melhor oportunidade se apresentaria no intervalo de almoço. Eles foram cuidar dos afazeres. Mais tarde, enquanto os colegas resolveram aproveitar o intervalo assistindo a um jogo de futebol transmitido ao vivo, Daniel e Giro encontraram-se na passarela do mercado. Dada a exuberância do calor, Giro tomou o amigo pelo braço e o convidou a continuar o papo sob as treliças do grande pavilhão dos quiosques de carnes.


- Não sei bem o que pensar. - Daniel sumarizou a confusão. - Logo depois, Parker me ligou, dizendo que viera nos visitar. Parece que o fato de Parker vir gradualmente estendendo a mão para mim encorajou Robyn a interpretar uma farsa.
- Isso se chama sondagem, meu amigo. E se ela o sonda, é porque você é detentor de informações comprometedoras. 
- E das quais não me lembro. - Suspirou, desencorajado. - Como a figura desse padre, o Padre di Sofia, a quem descrevem como meu anjo da guarda. Só se for um anjo mesmo, pois me é invisível! Não sei do que falam ao insistir que esse cara está por perto!
- "Não se lembra", mas pode ir dormir e ter "um de seus sonhos", motivo para tirar a tranquilidade dessa garota.
- E eu não sei muito sobre a Robyn. - Constatou, tentando empregar veracidade ao tom - Ela foi campeã de caratê, sei disso pois vi um recorte. Eu sei que hoje ela é uma psiquiatra em Nova York, então é verdadeiramente inteligente e culta. É uma mulher bonita e... - Franziu o cenho, como se tivesse acabado de recordar. - Giro, é estranho... Quando a vejo nas lembranças, e a comparo `a Robyn de hoje... não parece ter envelhecido um só dia! Como pode?
- Conversarei com os Recursos Humanos. Hoje à noite, em casa, redija um memorando e peça a alteração do período de férias já para a próxima semana... - Giro orientou, e Daniel respondeu com um olhar assustado.
- Não há tempo para processar a folha de pagamento tão em cima da hora... - Foi a desculpa de Daniel, logo afastada por Giro.
- Sim, dará tempo, ninguém negaria uma mãozinha ao herói do ano. Não se preocupe, apenas escreva o memorando solicitando a alteração das férias para a semana que vem. Depois que der entrada e receber a resposta, explicarei o restante.

Giro se despediu. A movimentação da tarde não deu tempo a Daniel para pensar detalhadamente a respeito das coisas; entretanto, acreditava que manifestar-se pelo início das férias parecia precipitado. Não obstante, por motivos os quais somente Giro conhecia, ele parecia encontrar-se adiantado no tabuleiro, o que, para Daniel, representava razão suficientemente sólida para seguir as instruções à risca. Legrand voltou para casa após um dia cansativo, e a recepção foi um consolo e tanto! Parker parecia que tinha sido ligada à tomada: elétrica, sorridente, andando de lá para cá com o celular, falando com amigas e repassando as boas novas. Gladys servia o jantar especial preparado pelas duas a Daniel, e assistia a tudo com um sorriso aberto e genuíno. Ela desligou o celular e, num saltinho, abraçou-o de frente, esfuziante.


- Recebi uma ligação de meu agente no começo da tarde! O papel é meu! - Anunciou, e Daniel nem esperou para parabenizá-la. Pelo olhar ainda um pouquinho confuso do namorado, ela pôde ler a dúvida, e explicou melhor: -  A cinebiografia de Pasteur!

- Oh, querida! - A risada alegre e espontânea percorreu-o como uma descarga de energia. Daniel ficou com ela nos braços, sacudindo-o de um lado a outro. - Lembro-me de quando me falou sobre o quanto queria o papel, você ficará fantástica! Será um filme de John Boorman, certo?
- Não, não Boorman. O outro britânico, querido, Ken Loach! - Pegou-o pela mão e o levou corredor adentro, para o quarto.

Parker trancou-se com Daniel. Agora, o entusiasmo não se devia somente `a novidade do filme. Mirava-o com olhos tão abertos que, por um instante, ponderou se Robyn teria conversado com a irmã e revelado a intrigante ligação dela com Daniel, antes que o próprio honrasse seu dever de conhecer a verdade, uma obrigação individual e intransferível. Não era o caso. Seus dedos muito delicados passearam por entre os botões da camisa, mas antes que os desabotoasse, Legrand sugeriu:

- Teremos tempo para isso, querida. - Falou, e ela respondeu com uma risadinha. Daniel teve  certeza de que corara - Uma pitada de espera, e o gostinho se sofisticará.

- Então entre logo no box para tomar banho! - Foi empurrando o namorado, até Daniel bater com as costas contra a porta do box. - Depois, mais tarde, provarei da sofisticação que promete me mostrar!
- Nossa, agora falou como os cenobitas de "Hellraiser". "Eu tenho a eternidade para conhecer a sua carne"! - Brincou, reproduzindo a voz gutural de Pinhead.
- Vai tomar seu banho logo, tolinho, antes que eu o encoraje a marteladas!

`A mesa, Daniel e Gladys escutavam fascinados `as impressões de Parker sobre o projeto. Evidentemente, conheciam os feitos de Pasteur, mas foi pela intimidade da atriz com a história que viram o incomum potencial para um filme extraordinário. Segundo Parker, o projeto se focaria no período mais eletrizante da carreira de Pasteur, a busca pela vacina da raiva numa época na qual a mordida de um animal doente significava um horroroso processo de morte. Foi quando uma mãe desesperada procurou por Pasteur implorando para que cuidasse do filho, mordido por um cachorro louco, que as circunstâncias perfeitas se assomaram para o cientista testar a vacina num ser humano, sob o risco de penalização, caso a criança viesse a morrer, afinal de contas, ele era cientista, e não médico. O tratamento foi um sucesso, detendo o vírus e impedindo a infecção. Logo, o laboratório virou ponto de peregrinação para pessoas vindas dos mais díspares lugares. Novos centros de vacinação contra a raiva foram abertos ao redor do mundo. O triunfo serviu de base para a fundação do Instituto Pasteur, em Paris. O roteiro fechava o profícuo período com o reconhecimento do monumental feito pelos seus pares, homenageando-o com o prêmio na Academia Francesa. Parker ia narrando os principais atos do projeto, e Daniel conseguia enxergar a mágica que um grande diretor faria com o material. Apesar de a produção focar-se na corrida de Pasteur contra a hidrofobia, o roteiro encontrava espaço para explorar a bonita história de amor do cientista com a bela filha do reitor da Universidade de StrasbourgMarie Laurent, que viria a se tornar sua melhor amiga e esposa. Era o papel da Parker! Ela tinha em mãos a oportunidade profissional de uma vida, e Daniel estava certo que não seria nada menos do que brilhante. Quando a entusiasmada Parker o deixava falar, Daniel brincava, e dizia que logo mais seria trocado pelo "adversário", o ator que daria vida a Pasteur


- É um cara novo, mas excelente, chamado Barclay Harrison. - Parker o nominou, entre garfadas nos pedacinhos de bife `a parmegiana. - Está rodando um filme de ação com Renny Harlin na Europa, e deixará as filmagens para entrar direto no projeto. 

- Diga para esse cara não mexer contigo. Ele é bonito? Já o odeio! - O trio começou a rir. - Eu estou brincando, querida. Vocês serão dinamite, amor. - Estendeu a mão para tocá-la no antebraço, ganhando o olhar marejado e a covinha tanto amados. - Eu e vovó estamos muito orgulhosos. Verdadeiro sucesso é a concretização dos sonhos da juventude, na idade madura Você com o seu filme, eu com o concurso. Espero igual sucesso, quando sair o resultado.
- Eu e sua avó queremos comemorar sua vitória nesta cozinha, quando os resultados forem disponibilizados e seu nome constar da lista. Minha felicidade não se completará até ter conquistado seu objetivo também.
- Obrigado, minha linda. - Apertou delicadamente os dedos dela e os beijou por sobre a mesa e os pratos. A avó prestava atenção `a troca de juras com um olhar preocupado, mas admirador. Daniel sugeriu: - Hoje, devemos celebrar, a senhora também, vovó! - Antes de Gladys se socorrer com alguma desculpa esfarrapada, Daniel sentenciou: - Isso mesmo, hoje vamos comemorar na cidade! - Limpou o canto da boca com o guardanapo, jogou o papel amarrotado sobre o prato vazio e tratou de se levantar apressado. - Vamos patinar no rinque, em Jersey!

Foi o tempo de as garotas se vestirem, Daniel regressou a New Jersey Turnpike. O destino do trio seria o Jersey Garden Malls, o maior outlet de Jersey, a apenas cinco minutos do aeroporto de Newark, e trinta minutos de Manhattan. O modo mais rápido de se chegar ao shopping era através do serviço de shuttle, que deixava o aeroporto internacional a partir da estação P4, em intervalos de meia hora cada, britânicos em pontualidade. Foi por isso que preferiram estacionar no aeroporto e seguir para o shopping de shuttle
`A parte de se encontrarem ali numa aprazível, sossegada noite de segunda-feira, com o tecido esticado do entardecer revelando, aqui e acolá, algumas centelhas a prenunciar a constelação a qual logo tomaria conta do céu após a triunfante entrada da noite, o trio não ficou parado. Gladys, Parker e Daniel vestiram patins, e a avó foi `a frente, apoiada pela dupla. Com duas voltas próxima `a grade de proteção, Gladys ganhou coragem, e o neto a deixou para correr sobre o gelo de mãos dadas `a namorada. Enquanto Gladys seguia bem devagar, mas determinada, o casal dava voltas em torno do rinque e, em intervalos cada vez menores, passavam ao lado da avó para fazerem brincadeiras, arrancando-lhe risadas nervosas.

- Vamos, confie em mim! - Daniel exclamou, deslizando a mão para os lados dos quadris de Parker. - Mova os quadris, mova os quadris, acompanhe a música! - Daniel revezava-se, pareando com Parker, e a deixando ultrapassá-lo apenas um pouquinho para que pudesse chegar por trás e segurá-la pelos ombros.

- Tenho a sensação... - Parker ia falando, alegre e ligeiramente assustada com a própria velocidade. - ... De já ter feito algo parecido...
- No nosso passado em Cape May? - Daniel perguntou, os dois dando um rasante ao lado das cadeiras onde as pessoas vestiam os patins. 
- Não! Em uma comédia romântica bobinha que eu estrelei, chamada "Construindo uma Carreira"!

Foi uma noite maravilhosa. Quem os visse, tomá-los-ia por irmãos a cuidarem de sua avozinha. Daniel e Parker seriam os últimos a se recolherem. Exausta pelos esforços demandados na pista de gelo, Gladys se despediu com um beijo nas testas de seus queridos, e foi se deitar mais cedo. Ela tentou chamar Cyrano consigo, mas o gato seguiria como a "patrulha" de casa, e provavelmente insistiria em dormir com a visitante. Parker vestira um dos pijamas xadrez do namorado, e Daniel os embalava na cadeira de balanço, no alpendre, quando luzes de faróis mais poeira suspensa anteciparam a aproximação de um carro.


- Oh, droga. Esqueci-me do memorando! - Daniel se recriminou, com a mão no alto da cabeça. Parker bocejou, a atenção despertada pela queixa do namorado.

- Do que está falando, meu amor?
- Temos visita. - Avisou, contente pela surpresa. - Acho que já se conhecem. Olá, Giro!

Giro desceu preguiçosamente do carro de patrulha, a dor nas costas visível na expressão compungida quando tentou alcançar o dorso com uma das mãos. Parker e Giro se cumprimentaram com acenos de cabeça. Daniel os apresentara noutra ocasião; novamente, vinha-lhe a impressão que ambos se conheciam há muitos anos. O amigo se juntou ao casal no alpendre, e Daniel teve vontade de adiantar que não encontrara tempo para escrever o memorando. Fez bem ao escutar a voz dentro de si que o aconselhava à discrição. Numa troca de olhares, parecia que Giro pressagiara o lapso e cuidara dos arranjos.

- Mais recordações na tarde de hoje? - Giro indagou, as mãos juntas, os dedos entrelaçados, na frente da barriga. 
- Gostaria de voltar a me lembrar. E se possível recomeçar a partir daquela tarde em 1995. - Disse, dirigindo-se a Parker, que o olhava com admiração, o mais cúmplice dos sorrisos.
- Ficará em Elizabeth por muito tempo? - Ele perguntou a Parker. Parecia esperar uma resposta negativa, como um amigo a torcer pela privacidade para tratar de questões importantes com Legrand.
- Embarco para filmagens em Londres na semana que vem. Não devo me demorar, e sempre posso visitar Jersey nos finais de semana.
- Oh, rodará um filme em Londres? Será uma experiência e tanto, não? - Giro comentou, esperando mais informações. Seu charme não cessava de surpreender a Daniel.
- Um filme sobre a vida de Louis Pasteur. - Ela adiantou, com orgulho, e Giro pareceu impressionado. - Tomará conta dele certinho, não?
- De quem? De Cyrano? - O visitante brincou, e os três riram. De uma maneira que usualmente acontece em comédias românticas, assim que o nome foi mencionado, o felino pôs o rostinho preto achatado na porta. - Não se preocupe. Tenho cuidado bem de Daniel pelos últimos anos. - Ele fez uma pausa revisionista, sacudiu a cabeça e deu uma importante pista: - Pelas últimas décadas, eu diria. - E, tendo terminado, encarou Legrand.

Daniel gelou, mas ninguém notou. Naquele ínterim, caia a ficha e compreendia por que aquela gente - Max, Robyn - falava sobre como Padre di Sofia jamais o deixara. De alguma forma que não conseguia precisar, Giro era Padre di Sofia. Dava conta de que jamais escutara o sobrenome de Giro; do amigo, sabia que seu primeiro nome era Girolamo, e que o amava como a um pai. A eletricidade correu pela espinha, o choque o tinha aturdido perfeitamente. A revelação não fora obra das recordações, mas do resultado lógico como sequência a premissas. Eventualmente, ele se lembraria, porém, agora, era a maneira de os dados darem pleno sentido um ao outro que lhe escancarava a gratíssima surpresa. Por um tempo, quando a mente revisitava o mistério, Legrand se recordava do cavalheiro que, um dia antes do concurso, erguera em cumprimento uma xícara de café, no supermercado, enquanto a avó fazia as compras, e entendia que, inconscientemente, ao se prender à figura do homem na mesa da cafeteria, deixara de enxergar a verdade de pé ao lado, Giro todos os dias como seu escudeiro, exatamente como Max preconizara.

Conversaram até tarde. Ao introduzir o tema do filme a ser rodado na Inglaterra, Parker acabou criando ao namorado a oportunidade de se recuperar emocionalmente. Ela discorria sobre a história de Pasteur, sobre a corrida envolvida em se chegar à vacina antirrábica, sobre o modo como o suporte da esposa sustentara o valente cientista no desenlace daquela aventura aterrorizante. Giro e Parker pareciam compenetrados no diálogo resumido aos dois, Daniel como espectador. Inexplicavelmente, vendo-os ali, era como se tivesse quinze anos novamente, assistindo-lhes como adultos, enquanto ele permanecia um confuso jovenzinho, emocionalmente ferido pela loucura das figuras de autoridade de sua vida, salvo exclusivamente pela dignidade e retidão da avó Gladys e de Padre di Sofia. Legrand pensava em Robyn e em Parker, e sorria candidamente, inflamado pela súbita impressão de que as amava muito. Mas como amar as duas simultaneamenteFoi essa a pergunta de Daniel feita a Giro, quando os dois se despediram, Giro abrindo a porta do carro patrulha. Era comecinho de madrugada. As únicas luzes vinham das lamparinas penduradas do alpendre. Daniel entendeu a premência de dar um salto de fé e simplesmente eliminar o mistério. Encontraria em Giro as palavras de equilíbrio e sabedoria que haviam salvado sua vida ao longo dos anos.

- E então, Giro? - Indicou com o polegar por sobre os ombros, no sentido da casa. - Parker é uma pessoa e tanto, não?
- Sim. E não só Parker. A irmã Robyn, também. Porque começou a ver que, lá atrás, amou-as muito. Uma, declaradamente; a outra, sofrendo nas sombras, secretamente.
- Achei que meu amor por Parker fosse infinito. - Daniel procurou a glória da lua em seu zênite, cheia, prateada, clara como um farol. - Mas então há o amor por Robyn.
- Você sabe a resposta, não é, meu filho? - Eles se encararam, agora ambos emocionados, a um sopro do reencontro. Eles repetiram, baixinho e em uníssono, Daniel fazendo a conexão entre passado e presente no que tangia a Giro. - Existem infinitos maiores do que outros.
- Oh, Giro. Padre Girolamo di Sofia.  - Eles se uniram num abraço adiado de pai e filho. - Obrigado por tudo, Giro. Não imagino as coisas das quais abdicou para cuidar de mim e vovó. Eu te amo.
- Eu te amo também, meu filho.
- Não entendo como não vi antes!
- É assim mesmo. A aproximação não lhe dava a melhor perspectiva para ver, mas agora sabe. - Giro levou o braço por sobre os ombros de Daniel e os dois foram caminhando para a cabine do carro. - Eu quis contar a verdade, porém quando as coisas começaram a ficar mais claras na sua cabeça, preferi dar espaço e tempo. Você consegue entender os motivos de eu ter ficado preocupado quando te escreveram.
- Usando o nome de sua filha. - Eles se olhavam, ambos perplexos.
- Foi para me atingir, Daniel. - Giro ajeitou os óculos no rosto e massageou as têmporas, cheio de tensão e dor. - Robyn se sente ameaçada por você, mas sabe que sua ponte ao passado reside na minha pessoa.
- O que aconteceu, Giro, pelo amor de Deus! - Abriu os braços, exaurido. - Eu não aguento mais esperar!
- Se eu soubesse, não acha que te diria? Nem eu sei, filho. - Ele deu um tempo, refletindo seriamente se deveria continuar. Falou: - Meu palpite é que vocês estão conectados pelo acidente de carro de 2004.
- Como assim, se ela não se encontrava no carro?!
- Refiro-me a antes, filho. Você seria detentor de informações a respeito de Robyn. Quer a verdade? Não foi um acidente, de jeito nenhum. De alguma maneira, armaram aquele lance no carro, mas você sobreviveu! Por que acha que eu os venho protegendo desde que deixaram Cape May? Tem se sentido seguido? - Giro indagou, à queima-roupa. Daniel gaguejou qualquer coisa. Ele prosseguiu: - Não sei se já o notou. Há um cavalheiro no seu encalço. - Em pensamento, Daniel foi remetido ao homem brindando com a xícara de café, na tarde do dia anterior ao concurso.
- Acho que sim! Eu o vi, uma vez… Deixou uma forte impressão em mim!
- Chama-se Etienne Dieudonné. Não se preocupe, ele é um aliado. - Giro apontou para dentro. - Vá dormir. Eu o procurarei amanhã cedo.
- Entendo a razão de ter movido pela antecipação das férias, Giro.
- Claro. A hora de agir chegou. - Deu-lhe um tapinha no queixo, como a um filho. - Amanhã cedo. Trate de dormir.

Parker e Cyrano dormiam sossegadamente, alheios `a chuva muito suave a polvilhar sobre Elizabeth, enquanto Daniel navegava de página em página, sem conseguir dormir conforme Giro pedira ou se concentrar em alguma leitura em especial. Por acaso, ocorreu-lhe a última conversa com Robyn, ela mencionando o artista cuja obra ficaria exposta por uma temporada no Metropolitan. "Goldman Roehmer", era o nome. Daniel o pôs no Google, e o que encontrou foi de embrulhar o estômago. Meia dúzia de páginas restringiam-se à sua arte chocante, porém a maioria tratava das circunstâncias revoltantes de seu brutal assassinato, sendo que o Daily Mail de julho de 2001 dava o mais aprofundado e menos sensacionalista tratamento ao crime.

No decorrer do extenso texto, exaustivo em razão do tamanho das letras, a história era dissecada, guarnecida por reminiscências de companheiros de Oxford. Eram as fotos, todavia, várias fotos, que provocavam uma sensação impressionante de desesperança e claustrofobia. O corpo de Roehmer aparecia fotografado em pedaços, o maior deles o tronco, a que ficara preso um segmento da perna direita. Enquanto passeava de arquivo a arquivo, lançava olhares para a namorada e o gato adormecidos, sentindo-se péssimo por estar examinando tanta sordidez. Na mais chocante imagem, o machado de cabo médio e lâmina de duas faces jazia ao lado do que parecia ser o pênis e os testículos, e no mesmo quadro, uma máscara de Mickey Mouse, salpicada de sangue.

A paixão envolvida em se fraturar tantos ossos da estrutura corpórea apontava que o autor cometera o crime por motivos pessoais. Somente fortes emoções teriam gerado a força para a brutalidade impingida à vítima. O corpo humano é mais resistente do que se pensa. Para se desmembrar um homem daquela forma, precisava-se atravessar camadas de pele, músculos e a parte mais difícil: os ossos. Não fora um trabalho metódico, pois o cadáver se transformara num caos. A maneira como o assassino não deixara sobrar coisa alguma a lembrar que aquele saco de carne fora um homem entregava a proximidade entre autor e vítima. Daniel não teve como afugentar o trabalho da própria imaginação, onde via a lâmina no sobe-e-desce, deixando o tronco de Goldman `a parte. Daniel fechou as fotos, e leu o texto com mais atenção. Goldman Roehmer era célebre no círculo boêmio de West End, epicentro do teatro londrino, distrito onde se respirava e vivia arte. Filho de uma família tradicional com ligações com a Coroa britânica, estudara Artes Cênicas em Oxford, e a única foto na qual aparecia fora da condição de vítima, assinada pelo Daily Mirror, mostrava-o sob o manto de enfant terrible, os cabelos muito loiros e compridos, a calça jeans justíssima e a denim shirt aberta ao meio do peito, de modo a revelar pelos crespos. Goldman fazia lembrar um jovem, incontrolável Val Kilmer. Dado a polêmicas, seus quadros retratavam agressividade sem limites, as tintas fortes, as imagens uma orgia de sangue e carne, um caos a esconder motivos que só o próprio artista conhecia e que, ironicamente, pressagiaram seu fim sob a lâmina do machado. Daniel pensou na descrição de Robyn para o "quadro do gigante", e acreditou que somente de uma mente muito fértil e atormentada ideias semelhantes brotariam.

Não se compreendia como o assassino executara o artista sem que os gritos tivessem despertado a atenção dos vizinhos. Roehmer fora morto em seu "studio", uma espécie de "loft" localizado a cinco minutos da estação Victória. Consoante a matéria, ao abordar o feito do assassino ao cometer semelhante homicídio e escapar despercebido, aventava-se a hipótese de que já no primeiro golpe, o ferimento teria incapacitado a vítima, ou ao menos o arremessado ao choque do qual não conseguira sair a tempo de evitar as descidas seguintes da lâmina. Depois de explorar suficientemente a matéria, Daniel se deu conta de que passava de duas horas da madrugada. Fechou a página do Daily Mirror com a convicção de que o mistério escondia um crime passional. Ainda houve tempo para explorar um segundo link, datado do começo do mês de agosto de 2001. A notícia não tratava a morte de Roehmer como manchete, mas o nome aparecia vinculado ao acontecimento principal.

"Casal de turistas mutilado a machadadas, próximo à estação de Old Street", o texto sublinhava a grotesca foto de restos espalhados entre sacos pretos de lixo num beco secundário. Seguia contando como o homicídio ocorrera por volta das 23:00, e que os turistas haviam sido provavelmente ameaçados e levados ao lugar, onde os restos acabaram encontrados. Novamente, a máscara de Mickey Mouse, idêntica à encontrada na cena do crime de Goldman Roehmer jazia ao lado do machado, a lâmina enterrada na parede após o trabalho de desmembramento. A forma como o The Sun contava a história jogava um balde de água gelada na até então firme crença de que Goldman morrera por obra de uma ex-namorada ciumenta. Agora, os cenários descreviam a atuação de um serial killer. Curiosamente, ao procurar por novos assassinatos onde vítimas tivessem sido esquartejadas a machadadas, não encontrou uma única linha. O serial killer cometera três crimes, e fora o fim do frisson. Para a imprensa, à época, não havia dúvidas de que o algoz do machado do caso Roehmer & turistas era o mesmo maníaco.

Parker se mexeu um pouquinho na cama, e Daniel prudentemente abaixou a tela do MacAir, mas então ela se virou e voltou a dormir. Ele ainda leu duas outras matérias sobre os três assassinatos, aos quais a imprensa marrom atribuiu ao serial killer batizado "Mickey lenhador", antes de fechar o computador para tentar descansar. Cuidando para não fazer barulho, deixou o quarto, e antes de fechar a porta se alegrou ao ver o jeitinho com o qual Cyrano se aninhara nas costas de Parker. O anjinho ergueu o rostinho e olhou para o mestre que, sorrindo, murmurou, antes de cerrar a porta. "Afanando minha namorada bem debaixo do meu nariz, hein, ferinha? Olhe lá!". Daniel juraria por Deus que Cyrano respondeu com um sorrisinho antes de enfiar a cara entre o colchão e as costas da atriz, e voltar ao sono.

Ao deslizar para a escuridão, Daniel voltou à curva que o levava a manhãs felizes e quentes da adolescência. Quando desceu do bondinho elétrico na estação da diner, Daniel soube que se encontrava em 1994, e sorriu ao pensar no que o passado guardara para lhe mostrar naquela noite, seus olhos investidos da inocência e idealismo palpitante tão imperativos para se entender perfeitamente o que se passara.

03. "Dê-me seu melhor!".

Tinha os olhos fechados, e antes de abri-los para a glória de uma linda manhã de sol na praia, foram as gotículas das ondas quebrando espumosas contra a face que o colocaram na faixa de frequência da recordação. Faixas espalhadas entre colunas e redes dos campos das barracas comemoravam a 3ª edição dos Jogos Escolares. A praia fervilhava frequentada por turistas, porém era um pouco mais acima, recuado do leito do mar, onde a grande concentração se agregara. As arquibancadas haviam sido ocupadas por estudantes e cartazes, e quando Daniel chegou, ficou um tempo à margem das fileiras, tentando identificar a turma da sala. "Ei!", exclamou a voz feminina, ao tempo que braços o agarraram por trás, na linha da cintura. Ele se virou, surpreso, e sorriu com espontaneidade e leveza ao dar de cara com Parker. Ele compreendeu que Padre di Sofia estivera certo ao insistir pela sua ida aos jogos, dissera-lhe que teria um fantástico dia, uma manhã a recordar! Ia levar a mão ao rostinho da namorada, mas ela foi bem mais rápida e ousada, puxando-o para o beijo. A rapaziada próxima começou a assoviar e aplaudir, fazendo gracejos. Ninguém fez mais graça, contudo, que Padre di Sofia: ele surgiu completamente diferente de como os meninos haviam se acostumado a encontrá-lo nos corredores e salas do colégio, ou na missa, ou no orfanato. De camisa florida, bermuda e chinelos, Padre di Sofia cabia naturalmente ao meio, e os jovens o amavam por isso.

- Padre! - Daniel exclamou, animando-se antes que alguém notasse o quanto ficara corado. - Você também veio!
- Lógico, eu vim sim! - Deu uma risada e, ao abraçá-lo, explicou. - Fazendo parte da festa, afinal o coração do Senhor reflete a alegria de Seus filhos. - O professor passou com candura as mãos nos braços de Parker e a cumprimentou. Havia cumplicidade na troca de olhares. Padre di Sofia sabia o quanto Daniel a amava, e Parker também sabia que o belo sentimento caíra no conhecimento geral. - Ei, mocinha, como vai? Cadê o Aramis para fazer brincadeiras com o confessionário, hein?
- Cuidado com o que diz que deseja, pode acontecer! O filho da puta aparecerá como um João Pulo, daqui a pouco! - Daniel fez piada, e eles acharam graça.
- Robyn vai lutar, querida? - di Sofia indagou, tirando os óculos escuros e levando alguns segundos aos olhos para se acostumarem `a esfuziante claridade da manhã.
- Contra recomendações do fisioterapeuta. - Disse, com um muxoxo de censura. - A Robyn torceu o pé direito num ângulo impressionante; o médico recomendou que se afastasse do caratê por causa disso, mas está determinada a competir.
- Ela faz parte do time do vôlei, agora do time de caratê, tem alguma coisa que sua irmã não faça? - Daniel tagarelou.
- O time do colégio vai entrar em dez minutos, não? - di Sofia apontou para o marcador eletrônico. A partida corrente estava chegando ao fim, e parecia que as meninas do Newark Arts iam derrotar as da Barringer, aquela última luta apenas selando a ampla vantagem daquela sobre esta. Ao lado das mesas dos juízes, os dois próximos times esquentavam para entrar. As meninas da equipe do caratê da casa enfrentariam as visitantes da East Side, o mesmo colégio cujos estudantes Legrand salvaria do avião quinze anos mais tarde.

Parker esticou o pescoço. Ela enxergou o técnico e as meninas da Lower Township, a equipe da casa, mas não viu a irmã. Sussurrou no ouvido do namorado para que a esperasse, pois encontraria a irmã para levá-la à área da competição a tempo. Parker venceu a manada de pessoas e andou pelas arquibancadas. Só depois, foi ao estacionamento, onde finalmente a encontrou sentada no banco traseiro do Porsche Sttutgart amarelo de Aaron Lang. Ajoelhado diante de Robyn, ele a ajudava a enfaixar o pé machucado. Ao dar pela presença de Aaron, Parker baixou o rosto e fechou os olhos, desapontada. A irmã prometera repetidamente aos pais que se afastaria de Aaron. Bill e Gail conheciam a filha, reclamavam que desde que se envolvera com o rapaz mais velho, seu comportamento outrora exemplar dera uma guinada para o péssimo. Isso os deixava avesso ao namorado. Para os pais, mais preocupante que o desvio de personalidade, era a obsessão da filha. Robyn não conseguia existir sem Aaron, tampouco funcionar saudavelmente ao lado dele. Até então uma menina educada, estudiosa e gentil, foi com Aaron com quem teve acesso a um novo mundo, um mundo de jogos psicológicos onde as cartas eram o desejo, e o apego o mais arriscado blefe, quando ou tudo poderia ser ganho ou perdido. Aaron a inteirara desse poder.

- Ei, maninha, que cara é essa? - Robyn a puxou de lado para sacudi-la - Como espera que eu me saia bem, se te vejo tão triste? Não vai torcer por mim na arquibancada?
- Sua luta vai começar, Robyn. - Avisou, sem esconder a frustração. - Lembra-se do que prometeu a papai, não é?
- Oh, não. - Balançou lenta e lamentosa a cabeça, os olhos subitamente se enchendo de lágrima. - Eu preciso de seu suporte agora, maninha. Não faça isso comigo!
- Desculpe-me. Oh, por favor, desculpe-me. Não sei o que pensava. - Parker acomodou a cabeça sobre o ombro da irmã. Chateada, mas fazendo um honesto esforço para alegrá-la, reiterou. - Vamos, Robyn, não há tempo a perder! Vão chamar o Lower Township!

Parker foi na frente. Antes de descer à área das competições, três quadriláteros ao todo, voltou-se para estimulá-la com seu melhor sorriso. Robyn fechou os olhos, grata, e acenou com a cabeça, definitivamente menos desconfortável agora que a irmã deixara de lado as cobranças com as quais já a atormentavam em casa, sempre que Bill e Gail desconfiavam que Aaron vinha se inserindo no círculo de relacionamentos da filha. Parker voltava `a arquibancada, mas Daniel não sabia, e deixara seu lugar para procurá-la. Ele subia para a barraca, praticamente vazia agora que haviam migrado em peso a arena maior, quando deu um esbarrão em Robyn. Ele a segurou, não a deixando cair, e Robyn respondeu com um sorriso constrangido e abobado. Reconhecimento passou pela sua cara ao ver que se tratava de Legrand. Ele sabia quem Robyn era, mas parecia irreal: não obstante se conhecessem de nome, até aquele momento, não se recordavam de uma ocasião onde tivessem sido formalmente apresentados.

- Olá. - Robyn estendeu a mão, aceita por Daniel. Ambos vestiam expressões meio encabuladas: Daniel temia que Robyn ainda se lembrasse de sua ridícula tentativa de furtar uma barra de chocolate; Robyn receava que Daniel estivesse pensando exatamente nisso!
- Desculpe, espero não ter… - Daniel começou, mas Robyn fez que não, com a cabeça, tranquilizando-o. - Procurava por Parker. A sua competição vai começar! A moça da Newark Arts ganhou da outra menina do Berringer, ficou com o segundo lugar!
- Hum, que chato. - Robyn torceu o narizinho. - Tenho um ex-namorado que estuda na Newark Arts. Toda miséria para ele é pouco, pela dor que me causou. - Com a risada, Robyn mostrou que só brincava, com o fito de mitigar a tensão. Daniel riu também.
- Você se sente melhor? - Ele indicou o o pé enfaixado de Robyn. - A Parker disse que o machucou lutando.
- Eu acho que não me atrapalhará tanto. - Robyn torceu.
- Faço votos de que se saia muito bem! - Daniel novamente apertou as mãos dela, e Robyn balançou afirmativamente a cabeça, enlevada. - Acho que é a primeira vez que conversamos, mas sempre ouvi coisas boas sobre você. - E Daniel não teve como deixar de pensar na brincadeirinha de Aramis, dizendo: não falem o nome dela perto de mim! Coisa de criança, assim como afanar barras de chocolate. Aos quinze, ele e os amigos não passavam de crianças a explorarem as etiquetas e modos de conduta do mundo real, para além das paredes do Lower Township de Cape May.
- Sim, coisas boas tipo "chata, arrogante, prepotente". - Mais risos. Robyn o tocou no ombro de uma maneira tão delicada que Daniel soube que ela provavelmente o vinha observando há tempo, não só desde aquela tarde, às suas costas, com o canudo no milkshake. - Bem, é melhor corrermos para a arena, eu preciso vencer a luta! Você pode ir na frente para avisá-las de que já chego? Tenho que combinar algo com o Aaron antes de descer.
- Tudo bem. Boa sorte, novamente. - Trocaram discretos acenos de cabeça, eletrizados após a primeira conversa oficial. Daniel começava a correr para as arquibancadas, quando Robyn chamou pelo seu nome, detendo-o no caminho.
- Danny? Eu gosto muito de você. - Robyn fez soar como um desabafo engasgado. O rapaz respondeu com um sorriso triste, e falou, tão espontaneamente quanto a garota.
- Eu também de você, Robyn!

Robyn apareceu na cor branca, a menina do outro colégio veio de preto. Daniel sentiu o aperto da mão de Parker no seu punho; ela apenas não sabia que ele se sentia igualmente tenso, os ombros retesados. Robyn recebia encorajamento do professor quando o árbitro as chamou para a área de competição. Aplausos das duas torcidas, e Robyn levantou o punho confiantemente, para o reforço dos aplausos de sua turma. A luta começou e, talvez por medo, a adversária de Robyn foi agressivamente para cima. Ela só se protegeu muito bem. No primeiro minuto, a oponente apostou em socos, por causa da facilidade e rapidez com os quais poderiam lhe valer pontos; entretanto, seus ataques ou acertaram o ar, quando Robyn se abaixava para se livrar de um ataque com a palma da mão, ou foram belamente bloqueados, quando com uma defesa dupla a tentativa de soco invertido no estômago nada fez. Após a frustração do assalto, que não lhe valeu um único acerto, a adversária passou à cautela. Nos próximos dois minutos, limitaram-se a medir distância e ameaçar um assalto frontal, sem que de fato o fizessem. Desesperada por uma pontuação, a adversária avançou perigosamente e lançou um soco contorno, mas no mesmo segundo levou o cotovelo de Robyn na boca do estômago. A torcida do Lower Township aplaudiu entusiasmada. Agora, a irmã de Parker, na frente, crescia na competição. Parecia que, após o primeiro golpe acertado, o que se limitara a um cauteloso estudo entre as duas se transformou num combate de contato total, a seguir um padrão: o desespero da outra menina a levava a tolamente atacar com força, sem qualquer estratégia. Robyn se movia lateralmente e atacava frontalmente, pontuando com cotoveladas de cima para baixo, cotoveladas na clavícula, socos no queixo e no estômago, e ataques com a palma da mão no pescoço. Uma entrada mais agressiva da menina as deixou atracadas por alguns segundos; emoções se inflamaram num volátil desentendimento, e a garota agarrou Robyn pela lapela e a atirou para fora da área de competição. O árbitro protestou e ergueu a mão com os dedos levantados, descontando-lhe pontos. Caída, Robyn procurou avistar a irmã e Daniel. Os dois estavam inclinados, apoiados um ao outro, assustados. Ela procurou sorrir, como se dissesse que tinha a situação sob controle. Levantou-se e voltou para a área. Com o combate reiniciado, Robyn foi ao ataque. Ela precisava impor a agressividade, afinal era ela quem vencia com folga e, ao passo que anteriormente seus pontos haviam sido perpetrados ao golpear após as defesas, agora, ela pontuava ao assaltá-la com ações que partiam de sua iniciativa, socos rápidos, precisos, eficientes. Furiosa, a oponente se abria ao assalto, e o equilíbrio emocional definitivamente esgotara. Ela gritava "Dê-me seu melhor! Dê-me seu melhor!", e tomava os socos no rosto, com Robyn lhe dando exatamente o que a pobre garota pedia, dizendo, baixinho, porém audível para ela: "Bom o suficiente? Bom o suficiente?". Ao avaliar a improbabilidade de uma resistência tão dura quanto no começo da luta, Robyn foi para os chutes, para ganhar os maiores pontos e terminar logo a competição. Com um discreto salto para trás, ela fez a necessária distância para preparar o devastador chute giratório, de fora para dentro. Robyn levantou a perna com o joelho articulado e girou a cintura, finalizando com o deslocamento perfeito do pé ao maxilar da oponente. Ela caiu e ficou de bruços, a área manchada de sangue do seu nariz quebrado. Tendo usado o pé machucado, o pé com a atadura, para executar o chute, Robyn também caiu por causa da dor, e ficou de joelhos, com uma expressão de exultação e agonia momentânea. A arquibancada tremulou com aplausos e gritos. A luta estava encerrada, Lower Township ganhara. Parker deu um pulinho, feliz pela irmã, e beijou o namorado. Daniel ria e batia palmas. O calor das emoções passara, Robyn avançou para a oponente caída e se ajoelhou ao lado. Com a mão nas costas dela, insistia perguntar se ela estava bem. Não pôde, entretanto, fazer muita coisa, pois foi literalmente tirada dali quando a turma invadiu a área e a carregou, jubilosos.

A comemoração tomou conta da praia, até mesmo juntando-se ao sarau os alunos dos colégios derrotados. Não custou a rodinhas de amigos se formarem ao redor de fogueiras, onde havia espaço para violão, música e carne. Partindo-se da premissa da energia eletrizante ao alcance dos pelos eriçados dos braços, a brincadeira se estenderia até `a noite, e seria uma noite romântica! Robyn, a vitoriosa, tinha outros planos para mais tarde. Parker insistia que permanecesse com os amigos; Robyn tinha uma ideia melhor. Depois de se livrar da roupa branca salpicada de sangue usada na competição, revelou o body preto usado por baixo. Amarrou uma canga na cintura, e saltou, ainda descalça e toda suja de areia, sem se importar, no banco traseiro do Porsche de Aaron. Parker e Daniel aproximaram-se do carro para se despedirem, e Aaron se comprometeu a levá-la para casa antes das 21:00. Enquanto Aaron e Parker iam "tesourando" alguma diplomacia e tornando-se mais abertos a seus papéis conflitantes na vida de "Goldilocks", Daniel limitou-se a prestar atenção aos  detalhes exuberantes que se revelavam em cada polegada do rosto de Robyn. Tão encantado ficou, desejou ser espectador de todas as vitórias por vir na vida dela. Robyn e Daniel se encararam, e ela levantou bem discretamente o rosto, quase se preparando para falar; então, deteve-se antes de continuar. Por alguma razão, talvez por um preciso insight, Legrand lhe disse que a outra garota ia ficar bem e se sentiria melhor com o tempo, afinal ela teria outras lutas e as venceria também. Robyn sussurrou "Obrigada". Daniel não precisou de mais do que o sorriso arrependido e melancólico de Robyn para compreender de onde ela vinha: assim como Daniel, também lamentava a falta da iniciativa que, noutros tempos, os teria tornado melhores amigos. Ambos se gostavam antes mesmo que tivessem se trombado por acaso, porém tinham precisado daquela manhã dos Jogos Escolares para perceberem.

Daniel e Parker permaneceram na praia pelo restante da tarde. Ligeiramente chateada, Parker ocasionalmente vocalizava o aborrecimento ao falar mal de Aaron Lang. Daniel imediatamente minimizava os temores dela, comentando que vira o cuidado com que ele atava o pé de Robyn e que ela detinha bom senso para fazer suas próprias escolhas. Claro que Daniel conseguia compreender os temores de Bill & Gail. Pela sensação de invisibilidade dos jovens, Robyn estaria dando um passo maior que as pernas, todavia, por ora, a melhor coisa a se fazer era deixá-la cuidar de seus interesses. Padre di Sofia dedilhava uma bonita melodia no violão, os alunos fazendo um movimento rítmico com os ombros, acompanhando a música. Ao fundo, o sol marchava para depois da linha do horizonte, e o manto da noite prometia encantos. Parker ligou para casa, e a primeira coisa que a mãe perguntou foi mesmo sobre Robyn.

- Ela merece, mamãe. - Daniel a escutou defender a irmã. - Não, não foi com o Aaron. Eu nem o vi por aqui hoje. - O rapaz do carrinho de picolés e sorvetes vinha subindo para a barraca, e Daniel uniu o útil ao agradável, dando à namorada a privacidade para que tratasse o que quisesse com a mãe, refrescando-se após uma tarde escaldante cheia de emoções.


Daniel a recebeu com um picolé de chocolate, e Parker deu um gritinho de alegria. Os dois deixaram a festa de mansinho, sem levantar suspeitas. Subiram a baia para apanhar o bondinho. Sendo comecinho de noite, uma parte importante dos frequentadores já havia ido para casa, então a carona do bondinho, com os bancos só para o casal, foi uma bem-vinda novidade! Parker acomodou a cabeça no ombro do namorado, e Daniel, uma das pernas no braço da poltrona à frente. "Vocês jovens não deviam estar comemorando na praia?", perguntou o condutor, um simpático senhor cujos sulcos no rosto amaciado entregavam a idade avançada, mas também cujo sorriso indicava apreço ao ofício.

Daniel voltou à consciência, ao presente, tantos anos após a aventura dos Jogos Escolares. Não soube diferenciar imediatamente recordação de realidade e, com os olhos no manto da noite, tampouco soube se ainda enxergava as estrelas em 1995 ou se já alcançara 2010. Com o gosto salgado no canto da boca, esfregou os olhos com o polegar, e constatou que chorara. Foi ao banheiro se aliviar e, ao passar na cozinha para tomar um copo d'água gelado, acabou permanecendo certo tempo sozinho, a luz da lâmpada deitando um cone iluminado sobre sua cabeça e uma porção da mesa. "Danny, eu gosto muito de você", conseguia até mesmo evocar o tom utilizado por Robyn ao se dirigir à sua pessoa. “Meu Deus, por que estou tão emotivo?”, perguntou-se, baixinho, passando as costas da mão sobre o rosto banhado.

Na manhã seguinte, Parker foi deixada no aeroporto por Daniel e Gladys. Antes de se arrumar e preparar as malas para subir no voo a Londres, tomou um saboroso café da manhã, um momento genial, em família, com Cyrano ganhando fatias avulsas de bacon do benevolente tutor. Na hora da despedida, no portão de entrada, ela lhes prometeu ligar quando fizesse a escala no aeroporto de Lisboa, mais tarde. No caminho para casa, recebeu duas ligações. A primeira foi de Giro, aconselhando-o a chegar logo a casa e ficar à sua espera – Recursos Humanos mandara um e-mail, o entrave fora resolvido, Daniel poderia começar a gozar os trinta dias de férias a partir daquela mesma data. Na segunda, Suntee falava sobre quase a mesma coisa pois, no seu caso, fora o colégio, o East Side, que dera um “refresco” aos meninos com o recesso do meio do ano.

- Vovó, eu sei. - Ele se limitou a dizer, sem tirar os olhos da pista, a caminhonete seguindo para casa. Gladys virou o rosto para ele, ressabiada, porém então lhe ocorreu do que o neto falava. Ele foi adiante: - Eu sei do Giro. Ou melhor, Padre Girolamo di Sofia.
- Oh, meu bem. - Seus lábios tremularam, comovidos. - Graças a Deus. Graças a Deus você se lembrou.
- Pude ver claramente. Ontem. E lembrarei de outras coisas. Agora, preste atenção. - Tirou uma das mãos do volante para pousá-la sobre o ombro da avó. - Giro virá nos visitar. Agora, não há mais retrocessos, avançaremos, todas as apostas na mesa. Se eu precisar ir para Cape May, precisa se desapegar de mim e deixar que eu cumpra meu destino.
- Mas, querido… - Gladys sentia medo, tomando-o momentaneamente como um menino, ainda, um menino perdido, um príncipe sem reino.
- Por favor, vovó! - Reiterou, com firmeza na voz, alguns nós a mais elevada. - Não posso recuar, porém não conseguirei sem o seu amor, sem o seu suporte. Combinado? - Gladys não pôde vocalizar a afirmativa, contudo fez que sim, com a cabeça, lágrimas correndo pelo rosto.

Assumindo o eixo principal do loteamento, Daniel foi guiando a caminhonete até enxergar o topo da casa e, logo em seguida, a patrulha do aeroporto: Giro já tinha chegado! Evidentemente, Gladys foi logo abraçando o padre. Ao trocar olhares com Daniel, Giro compreendeu que ele falara sobre o fato de Legrand tê-lo reconhecido, na noite anterior. "Por Deus, Gladys, eu não via a hora desse dia chegar", ele disse, baixinho. Gladys exprimiu a concordância com dois murros leves reafirmadores nas costas de Giro. “Muito bem, precisamos conversar, cara!”, foi ao ponto, indicando para Legrand o alpendre com o polegar. Gladys concluiu o abraço, segurou o padre nos dois braços e se voluntariou a coar o café para os dois.

- O cara com o nome complicado… - Daniel começou.
- Etienne Dieudonné. - Giro o nominou. - Ele é um inspetor, um agente federal do MI6.
- Como?! - Embasbacado, Daniel não podia acreditar. - Meu Deus, do que tentam me proteger, Giro?
- Calma, filho. - O padre assegurou que ficaria tudo bem, e apertou suas mãos por sobre a mesa. Gladys chegava com a garrafa de café. - Dieudonné o manteve sob o radar desde 2004.
- Saímos de Cape May sob proteção, Danny. - A avó se sentou ao lado de Padre di Sofia. - Você pode ter sido testemunha de, no mínimo, o homicídio de um menino local, o suicídio de outro, e o elo que une esses dois eventos em Cape May com os assassinatos do machado, em Londres.
- Daí a participação de Dieudonné, um agente britânico, no caso. - Giro bebericou a xícara, estalou os beiços e continuou: - Eu sei, parece-lhe um emaranhado de informações. Sua avó, eu e Dieudonné vínhamos conversando.
- Mantive-me reticente por um tempo. - A avó confessou. - Mas Giro tem razão. - Encararam-se, ela e Giro, e o padre sacudiu a cabeça em consonância, com um olhar severo.
- Eu expliquei à Gladys. Precisamos cair para dentro, porque, senão, o outro lado virá para cima antes. Isso, se já não tiver vindo. Etienne te encontrará em Cape May. Não precisa se preocupar como acontecerá. Ele é um agente secreto, saberá seus passos e te encontrará.
- Você virá comigo, Giro? - Indagou, quase como um pedido cheio de dor.
- Num primeiro momento, não. Eu aparecerei, porém você entrará lá sem alguém que possa ajudá-lo a se recordar, pois, agora, especialmente em razão de envolver algo tão grave quanto homicídio, a certeza precisará vir genuinamente da parte de seu ser que jamais esqueceu.
- Suntee poderia acompanhá-lo, não acha, padre? - Gladys teve a ideia. - Seria uma companhia; entretanto, não o atrapalharia na jornada da recordação, pois não é um dos nossos, não é uma pessoa com raízes em Cape May.
- Excelente, excelente ideia, Gladys! - Apontou para Daniel, com o cenho franzido, e instruiu: - Procure-o, hoje. A depender da resposta, se ele puder fazer a incursão inicial contigo, o tempo urge para prepararmos uma linha de ação.

Na sexta-feira da mesma semana, conforme combinado, Suntee se apresentou bem cedinho à casa do amigo. Eles tomaram o café reforçado de Gladys, e escutaram pacientemente às instruções de cautela reservadas por ela e Padre di Sofia `a dupla. "Mantenham contato, uma ligação por dia, no mínimo", a avó exigia, com olhos preocupados, enquanto Daniel besuntava o pão com requeijão, e Suntee saboreava o prato de tirinhas de bacon com ovos fritos. Houve uma cena muitíssimo engraçada que os fez gargalharem alto: Gladys entoava a ladainha de avó desesperada e super protetora, quando, às costas da senhora, Giro fingiu lançar a mão ao pescoço de Gladys para estrangulá-la. Quando ela viu a gozação bem a tempo, Giro corou, e os quatro riram tanto que suas barrigas doeram! Vez ou outra, Daniel consultava o relógio de pulso. Giro recomendara que pegassem a estrada antes das 09:00, pois chegariam a Cape May a tempo para um bom almoço, e a ideia era levar Suntee para comer no restaurante onde os amigos haviam preparado a festa surpresa um tempo atrás. No momento da despedida, Giro desejou sorte e fez duas recomendações inéditas: Daniel deveria procurar o orfanato que di Sofia dirigida quase a vida inteira, pois lembranças de Mildred viriam mais facilmente; também faria bem buscando o prédio da sede da Guarda Costeira, o lugar por onde a vida de Daniel passara antes da perda da memória. Quando os rapazes efetivamente subiam pela estrada secundária em direção a Interstate, o sol se deitara sobre Elizabeth como um lençol dourado e luminante cujo mormaço fazia ascenderem a poeira e o gostoso cheirinho de terra.

Passava de meio-dia quando alcançavam a familiar curva cuja vista emulava o friozinho na barriga, o Atlântico infinito ao leste; Cape May ali embaixo, à beira mar. Daniel sorriu ante a admiração explicitada no olhar de Suntee, que apoiara os braços na janela e praticamente colocara a cabeça para fora para não perder um único segundo. Daniel retornou ao albergue onde se hospedara na primeira vez. Ao vê-los entrando pelo hall, os mesmos funcionários da staff anunciaram, antes de abraçá-lo: "O filho preferido de Cape May à casa volta!". Depois de se acomodarem num quarto com duas camas, partiram para uma caminhada. Daniel foi tentado a apanhar o bondinho, mas o deixaria para outra hora. Era importante que Suntee extraísse sua primeira impressão da cidade por meio de uma sossegada, desimpedida caminhada ao longo da orla.

Suntee e Daniel almoçaram fartamente no píer, um momento de descontração antes de começarem a se aprofundar no mistério. Daniel pediu bife acebolado, um prato que servia a quatro pessoas, mas que não deixou uma só sobra quando posto à mesa para os dois, os quais o consumiram com voraz apetite. "Cabia mais um nessa mesa, pena que Giro não veio conosco", Daniel lamentou, bebericando a xícara de café que segurava elegantemente com dois dedos sob a asa. "Tudo a seu tempo, meu patrão, Padre di Sofia sabe o que faz", Suntee contemporizou, e Daniel não conseguiu segurar as risadas ao se recordar do brincalhão Giro fazendo sinal de levar as mãos ao pescoço da avó. Daniel pagou a conta, e Suntee apreciou a sugestão de caminhar pelo píer para desopilar. O rumor de ondas contra as colunas era de uma relaxante constância. Quando se sentiam mais leves, subiram pela orla para apanhar o bondinho.

Eles voltaram ao albergue e concordaram em cochilar antes da procura pela sede da Guarda Costeira. Suntee ligou para os pais e adiantou que o primeiro dia de férias começava promissor. Seduzido pelo frio proporcionado pelo ar condicionado, as pálpebras de Daniel foram pesando, a conversa de Suntee com os pais ao telefone distanciando-se, até ele eventualmente apagar. Ainda conseguiu escutá-lo falando sobre a excelente comida do restaurante onde almoçara, antes de ser abraçado pela inconsciência quando, por um breve momento, desejou se recordar de algo mais. Não aconteceu assim, porém. As lembranças não tinham hora para vir, e quando despertou, passava das 18:00. Daniel não acreditou que Suntee o tivesse deixado dormir a tarde inteira, mas o lapso viera a calhar, pois agora a visita à Guarda Costeira ficaria para a manhã de sábado.

- Qual o plano para esta noite? - Suntee indagou, amarrando os cadarços.
- Vamos apanhar o bondinho. Quero retornar para o lugar onde tudo começou. - Forneceu a programação, com um sorriso enigmático.

Daniel referia-se, claro, à diner anterior à curva de entrada de Cape May, à parada onde esperara por Parker na infeliz noite na qual ela não aparecera. Sendo uma noite de sexta-feira, ao saltarem do bonde, encontraram a diner muito bem frequentada. Mesmo do lado de fora, reverberava a festa feita pelos jovens, entre rodadas de cerveja e partidas à beira das mesas de sinuca. A jukebox avivara com uma maravilhosa seleção de músicas românticas de duas décadas atrás, dando o tom certo à noite na primeira curva de Cape May. Daniel e Suntee ficaram um tempo observando a casa à distância, do canteiro. Incerto, o garoto perguntou se havia algum problema.

- Recordei-me de estar indo e vindo nesta estrada, em frente `a diner, na noite na qual Parker deveria ter aparecido. - Deu com os ombros, suspirando, e lembrou. - Não aconteceu como eu pretendia. - Murmurou, desatento e pensativo, dando alguns passos para trás, voltando à pista, atrás da perspectiva certa para observar o bar.

Suntee não desvendava o objetivo da visita. Será que Daniel buscava uma de suas súbitas, reveladoras recordações? O amigo não lhe adiantara explicações. Limitou-se a estudar o entorno, e a se posicionar no caminho que fizera, na lembrança daquele dia. Daniel caminhou até ao outro lado da pista. Às suas costas, o rumor das marés acertava-o em cheio, as ondas quebrando mais distante e ritmicamente. "Vamos, vamos, raciocine", estimulava-se. Respeitando o momento do amigo, Suntee fez uma prudente escolha ao lhe dar espaço para se sentir à vontade. E então, aconteceu: Daniel abriu os olhos, e deu pela mocinha loira chorando inconsolável no banco de madeira da parada. Ela levantou o rosto apenas um pouco, o bastante para enxugar os olhos com o lenço. Daniel viu que se tratava de Robyn em 2004. Suntee nada enxergava, claro, mas compreendeu que o amigo estava definitivamente em transe, recordando-se. Vacilante, sem compreender o que se sucedia, Daniel se aproximou com muita cautela da Robyn de 2004. Mesmo sentado ao lado, ela não dava pela presença de Daniel. Ele teria levado a mão ao ombro, numa tentativa de consolá-la, quando Robyn subitamente levantou a cabeça e se pôs a falar.

- Sabia que gostava de mim desde aquele dia na praia, Danny. Respondeu-me tão naturalmente que não precisaria ter dito mais nada para que eu soubesse! - Quando Daniel segurou as mãos de Robyn, estavam tão gélidas quanto um pedaço de mármore. - Se nós tivéssemos nos conhecido melhor, se tivesse sido meu namorado, nada disso teria acontecido!
- Oh... Eu não compreendo. - Respondeu, intrigado, abraçando o fantasma, qualquer coisa para deixá-la descansar.

Então, o segundo fantasma da noite fez uma entrada triunfal. Quando avistou o rapaz bem aparentado e ricamente vestido chegando à diner apressadamente, empurrando a porta com força, entendeu que via Aaron Lang. O fantasma de Robyn desintegrou-se nos seus braços, e Daniel avançou para dentro, para não perder Aaron de vista. Custou a distingui-lo; entretanto, a jaqueta da NYU entregou-o cabisbaixo, encostado ao bar, próximo à cabine telefônica, para depois das máquinas de jogos. Havia um banco vago ao lado. Daniel se sentou nele, porém, antes de cumprimentá-lo, o fantasma o encarou, cheio de horror.

- Eu apenas não quero que continue achando que eu sou um canalha. - Lamentava, com tocante sinceridade. - Enxergo as coisas melhor agora, e sinto muito tê-lo magoado.
- Aaron, o que aconteceu? - Daniel tinha razões para não acreditar no que via, mas tinha Aaron diante de si, exatamente como parecera, há seis anos. Ponderou se as outras pessoas viam a mesma assombração.
- Oh, Deus, eu não sei como contar a meus pais! - O rapaz surpreendentemente o puxou para um abraço. Aaron seguiu lamentando, chorando. - Não posso viver com esse segredo. Sinto que estou pagando pelos males que causei! Você me perdoa, Daniel? Você me perdoa?!

Aaron se foi consoante a dinâmica com a qual surgiu: como num passe de mágica. Atônito, Daniel olhou para os lados, perturbado. As pessoas nem pareciam percebê-los, distraídas que estavam, interessadas nos próprios assuntos. Suntee estava de pé ao lado da cabine de telefone, e parecia igualmente pasmo. Daniel deixou o assento. A passos muito lentos, juntou-se ao amigo na porta da cabine.

- O que está acontecendo aqui, Suntee? - Não soou como pergunta; tratava-se de um pedido de socorro.
- Não parece suficientemente claro? Você começou a se recordar! - Segurou-o por sob um dos braços e o foi tirando dali. - Venha, vamos embora.

"Falava sobre segredo, sobre...". Os amigos haviam passado a última hora dentro do quarto tentando desvendar o significado da cena vista. Daniel andava em círculos, desnecessariamente enervando Suntee. Robyn e Aaron foram namorados, e o rapaz fizera mal à garota. Daniel concluiu que vira fantasmas do passado, certo de que as conversas tinham realmente acontecido há anos. Robyn parecia arrependida de algum malfeito; Aaron, mortificado pelas consequências de seu inconsequente proceder. Os amigos especulavam possibilidades e as confrontavam. Quando Daniel ligou para casa, sentia-se menos inquieto. Falou sobre o almoço na orla e explicou que a visita ao prédio da Guarda Costeira ficaria para o dia seguinte. Durante a conversa, ocorreu-lhe uma ousada ideia, não toda antes: se conseguira enxergar tão bem a avó à janela de casa numa manhã de 1995, quando pedalara para o colégio, por que não revisitar a casa em 2010?

- Oh, Danny. - Gladys sentou-se pesadamente nos degraus do alpendre. - Você... Tem certeza?
- Talvez seja a última vez, vovó. Depois que eu e Suntee voltarmos para Elizabeth, não sei se verei Cape May tão cedo. - Foi sua vez de se sentar, no vão do banheiro.
- Que bobagem, querido, claro que voltará! Sua namorada também nasceu em Cape May! Por que não retornaria?
- Hum... - Murmurou, cansado. - Mas vamos, vovó. Ajude-me, sim?
- Tem papel e caneta?

Gladys forneceu o endereço meio a contragosto. Daniel não fazia a menor ideia de onde o lugar ficava, mas o taxista desenrolaria o destino em minutos. A história contada pela avó era que a casa havia sido posta no mercado imobiliário no ano seguinte à partida da avó e do neto, e comprada um ano mais tarde. O investidor que a levara também adquirira outros terrenos da quadra, com planos de vender a área para uma grande rede de shopping. Daniel e Suntee ainda conversaram por boa parte da noite, e foi ótimo tirar a mente dos mistérios, substituindo-os pela expectativa do resultado do concurso. Daniel foi o último a dormir, os fantasmas ainda bem frescos nos pensamentos.

No sábado, ao se sentar à mesa do restaurante para o café da manhã, a dupla acertou os objetivos do dia. Pela manhã, apanhariam um táxi que os levaria à antiga residência. Após o almoço, no começo da tarde, seguiriam de bondinho ao Training Center Cape May, o quinto maior centro de formação de base da Guarda Costeira nos Estados Unidos, o lugar onde Daniel estivera antes de perder a memória e estagnar no tempo. Ele ainda desejava fazer investigações a respeito de Aaron Lang, quem sabe encontrar a casa da família dele, para que desamarrasse os nós dessa trama. Ao caminhar pela cidade, à procura do ponto de táxi mais próximo, percebeu que vinha prestando mais atenção ao meio. Apesar de manter os nervos em xeque, e vir se portando com muita paciência, o instinto de sobrevivência lapidara seus sentidos. Mesmo assim, não podia dizer ao certo se Dieudonné o seguia ou esperava o momento para se apresentar.

Tendo sido deixados pelo taxista na calçada da casa da avó, a dupla notou que, em concordância à fala de Gladys, a quadra se tornara um espaço no limbo, um tanto quanto abandonado. Era um lugar charmoso, até nostálgico; entretanto, de uma melancólica nostalgia. Sabe o friozinho na barriga, aquele que Daniel sentira ao descer a entrada de Cape May quinze anos antes? A mesma eletricidade o perpassou ao empurrar o portão de ferro, que "reclamou", rangendo à interferência de um ser humano, uma novidade após mais de uma década. Daniel e Suntee foram entrando, Legrand `a frente. Dando com o ombro na porta do alpendre para a sala de estar, Daniel a encontrou com os móveis cobertos por lençóis poeirentos, folhas secas amareladas sobre o porcelanato, e a vidraça da janela que dava para o jardim estilhaçada. De partir o coração, porém, foi quando subiram ao piso acima e encontraram o quarto onde sua vida coubera por vinte e quatro anos até o acidente. Nas paredes, os pôsteres de filmes pessoalmente importantes haviam sido parcialmente emborralhados pelo avanço dos anos e o implacável trabalho dos fungos trazidos pela umidade. Daniel deixou as costas escorregarem contra a parede até se sentar no chão. Suntee não soube o que fazer, e eventualmente se sentou sobre uma carcomida mesinha que, noutros tempos, fora usada como criado-mudo.

- Finalmente em casa. - Daniel suspirou.
- A casa bate com o sonho? - Perguntou, desnecessariamente; entretanto, tinha de sustentar os ânimos, manter o amigo interessado e falante.
- Certamente. - Daniel esticou as pernas e pareceu um pugilista levado inesperadamente `a lona, recostado ao corner. - Um quarto conta muito sobre a personalidade de alguém. Olhe todos esses pôsteres!
- Não conheço nenhum desses filmes! - Comentou, fascinado, sem tirar os olhos dos mesmos.
- Bem, é normal! - Daniel deu uma risada, uma réstia de luz a destoar da tensão. - Somos de gerações diferentes, e a sua infelizmente não conheceu os filmes de horror mais interessantes!
- "Hellraiser", hein? - Suntee pareceu intrigado, o que surpreendeu a Daniel.
- Conhece o filme? - Interessou-se, abraçando os joelhos, acomodando-se melhor.
- Sim, assisti ao último. Meu primo alugou o DVD! - Contou, com orgulho.
- Oh, não, não… - Daniel sacudiu negativamente a cabeça, e se levantou. Não me diga que alugou as continuações ruins! - Os dois estudaram um dos quadros, uma still do primeiro "Hellraiser". - Os únicos fiéis `a visão de Clive Barker foram os dois primeiros, os filmes rodados na Inglaterra. Os americanos compraram os direitos sobre a obra e realizaram continuações horrorosas que nada têm a ver com as ideias do autor. Os dois primeiros giravam em torno de desejo, fetiches, amores não correspondidos. Você seria levado a pensar que os cenobitas mereceriam o foco, mas fazem uma "participação especial". O núcleo permanece no triângulo amoroso, Julia, Frank e Larry. - Legrand deu duas batidinhas com os dedos na still emoldurada, Clare Higgins como Julia e Frank, o monstro, às suas costas, antes de recuperar a forma. - Linda, não? Clare Higgins. Vovó disse que, quando eu era pequeno, eu a achava a mulher mais bela do mundo, mas hoje sei que atrizes britânicas são todas belas, à sua maneira. Há um refinamento que minha inteligência não tem como analisar. Elas apenas existem, só nos restando admirar as nuances de cada diferente performance, como matizes que vimos no céu, ao entardecer, o sol se pondo, a glória diluída num tom canela, deixando para trás um breve sopro de puro encantamento, leia-se, a brisa vinda da beira-mar. Assim são elas, não? Clare, ou Glenda Jackson em "Women in Love" e "Sunday, Bloody Sunday", por exemplo. Passaram há muito do auge, do primor; contudo, há matizes próprias `a beleza cansada ainda mais interessantes e raras do que aquelas que, nas jovens, ficam tão repetitivas e banais.
- Calma, meu patrão. Não conheço nenhum desses filmes, nenhuma dessas vadias! - Suntee devolveu, e ambos deram gargalhadas. - Você está inspirado, hein? Falando como um galanteador sofisticado à caça de bocetas em algum coquetel de intelectuais, hein? Warren Beatty em pessoa. - Novas gargalhadas.

Investigando os outros cômodos, eles conheceram o quarto que teria sido de Gladys, pois era decorado com imagens de Jesus Cristo e Maria Santíssima. Ainda existia um pequeno oratório de carvalho e, na parede, alinhado ao oratório, uma imagem de Cristo crucificado. A cera das velas endurecera sobre a mesa, um resquício insignificante de parafina resistente ao avanço dos anos. Após a sala de estar do nível superior, seguiram pelo corredor que confluía num quarto para serviços. Ali existia a mesa para computador e um PC Pentium praticamente reduzido a carcaças.

Daniel e Suntee conversavam amenidades, o garoto discorrendo sobre as diferentes gerações de Pentium, quando Daniel ergueu uma mão silenciadora. Um olhar cismado fechou seu semblante. O rumor parecia vir do quarto de Gladys, mas somente Daniel parecia escutar o barulho. Mal chegou à porta, soube tratar-se de Gladys. A voz da avó não diferia de hoje, mas a de Daniel soava um pouco mais inocente, jovial. Claro, Legrand se via aos vinte e dois anos, quando ainda não inteiramente deixara de ser garoto. A avó colocava os brincos, de frente ao espelho da penteadeira. "Penteadeira", riu ao som do termo incomum, uma das muitas miscelâneas de mitologia particular, assim como o eram os filmes de horror, a atriz preferida, a paixão pelo ato de escrever, tudo o que o tornava, em síntese, um amigo incomum, muito mais espiritualmente envelhecido e deslocado do que a tenra idade levava a crer. "Droga, não consigo amarrar essa maldita gravata!", exclamou, atirando-a `a cama, a que a avó deixou os brincos e a penteadeira para acudi-lo. Daniel vislumbrou o contexto da movimentação. Virou para Suntee, o qual não enxergaria mesmo os fantasmas de Legrand, e sussurrou: "A manhã da posse acontecendo perante meus olhos".

Os prédios da Guarda Costeira ficavam recuados, ocupando um mundo a parte, uma ilha insulada dentro de outra. Suntee e Daniel teriam se perdido, não tivessem sido informados de antemão que o auditório localizava-se no prédio principal, o bloco administrativo, composto de duas torres de nove andares ligadas por asas onduladas, vastos corredores, na verdade, onde operava a inteligência do órgão. Daniel continuava na sua viagem nostálgica, imagens pululando vividamente: assistiu a Gladys e sua versão mais jovem sentando-se num banco de mármore da pracinha onde existia uma fonte, à espera do início da cerimônia da posse. Daniel comentava espirituosamente a Suntee sobre o excesso de zelo que os levara a chegar ao compromisso com uma hora de antecedência, no mínimo. No entanto, logo surgiu uma moça, uma das aprovadas, acompanhada dos pais. Munida de máquina, ela a entregou ao pai para o registro do grande momento, a posse, de braços dados à mãe. Não custou a novos rostos jovens chegarem. Acomodaram-se – concursados, servidores de carreira, familiares e os diretores – no auditório, onde os aprovados receberam boas-vindas. No primeiro mês, tão atônito ficara com a mudança de rota de vida, mover-se e pensar claramente assemelhava-se a executar uma coreografia em câmera lenta, em meio à neblina. Sim, Daniel sentia-se ótimo, sobretudo com a notícia da remissão da leucemia de Mildred Weber, mas a ficha não caíra. Aconteceria somente um mês depois. Por conta do horário de almoço, o andar inteiro da corregedoria federal esvaziava às 13:00, e Daniel, o único a permanecer, seguia num vai e vem, pensativo. Foi quando o pânico o acertou com força total.

Procurou conforto ao racionalizar. Sua mãe saíra de cena; depois, afundaram Parker e a promessa de amor; agora, Mildred agonizava. Para um jovem de vinte e dois anos, a pressão tinha de encontrar escape - um infarto, um colapso nervoso, - mas, para Daniel, foi na forma do pânico com o qual seu peito ia encolhendo. Era uma sexta-feira chuvosa e cansativa, quando Robyn ganhou novo acesso à sua vida. Os corregedores haviam voltado mais cedo para casa, pois a chuva discreta do começo de manhã consolidara uma montanha de nuvens eletrizadas por relâmpagos, e o céu prometia precipitação pesada para a tarde. Ao longe, raios riscavam as camadas platinadas no céu, seguidos pelo ruflar muito discreto dos trovões. Estudar o fenômeno com olhos curiosos amenizava o fardo de tantas emoções, e Daniel passara a última meia hora saboreando a vista. Tão distraído, custou a tomar ciência da figura a observá-lo do corredor contíguo do hall de elevadores para o 6º andar.

- Robyn? - Daniel disse, naquele dia em 2003, quando tinha 23 anos, e o fazia em simultâneo agora, aos trinta, revivendo o encontro, chamando-a baixinho, como se o fizesse a uma lembrança secreta muito sofrida.
- Desculpe por não ter vindo vê-lo antes. - Ela parecia muito relaxada e à vontade, feições leves, mas cansadas, ombros soltos. - Eu fui lotada no gabinete da diretoria. - Robyn sentou-se sobre a mesa de Daniel num salto. O rapaz gostou da intimidade da aproximação. - Como estão as coisas por aqui? Falam que a corregedoria é o pior lugar para se ficar, ninguém quis vir para cá, todos protestaram, menos você!
- Fico feliz em revê-la! - Apertou-lhe as mãos. - Aqui? Sim, muito movimento; entretanto, fora isso, esses caras me deixam em paz! Mudando de assunto, sabe quem fui ver, antes da posse? Padre di Sofia!
- Nossa, faz muito tempo desde 1995! Sinto-me velha!
- Não, não "velha". - E, corrigindo-a, brincou. - Apenas "mais velha". - Ambos deram risadas, risadas leves, benignas.
- Você foi só se confessar?
- Não. - Baixou o rosto, subitamente melancólico. - Fui conversar, sabe? A leucemia de Mildred voltou. Quero dizer, tenho vovó para conversar, mas prefiro conversar com outro homem, sabe?
- Mildred Weber? - Robyn acrescentou o sobrenome, para ter certeza. Daniel fez que sim. - Oh, eu… Eu sinto muito. Então, você e Parker terminaram mesmo, hein? Já a esqueceu?
- Não sei quanto a "esquecer". - Apoiou o queixo sobre a palma da mão, contemplativo. - Encontro paz nas palavras de Padre di Sofia. Eu o procurei justamente para falar sobre isso.
- Sobre a Parker?
- Não sobre ela, especificamente, mas sobre amores não correspondidos. - Daniel explicou. Interessadíssima, Robyn puxou uma cadeira para escutá-lo falar. - Eu perguntei a Padre di Sofia o que fazer ao não ter meu amor correspondido. Suas palavras permanecerão para sempre comigo. Ele tem um jeito, o Padre di Sofia, de salvar minha vida sempre estou à beira do abismo.
- Você as compartilharia comigo?
- Lógico, sim. - Daniel limpou a garganta, esperou um pouco, em busca das palavras certas, e começou: - Padre di Sofia levantava uma questão fundamental. A primeira coisa é de se perguntar se o amor é sentimento. A maior parte das pessoas detém uma noção equivocada de amor, Robyn. Veja, às vezes você está apaixonado pela pessoa, porém paixão e sentimento não são a melhor maneira de escolher uma pessoa, tampouco a forma correta de amá-la. Então, entenda-me, não é que precisemos de uma artimanha para mudar o coração dessa outra pessoa: quem precisa primeiro mudar é a gente. Padre di Sofia me contou que foi São Tomás de Aquino quem primeiro diferenciou amor de concupiscência do amor de benevolência. O amor de concupiscência acontece quando nos aproximamos da pessoa como a um objeto: é agradável, você quer aquilo para si, você quer aquilo que a pessoa pode proporcionar para você, "ah, o corpo dele é bonito, ele é simpático, ele é rico, é alguma coisa que me dá prazer". O verdadeiro amor, contudo, é o amor de benevolência. É o amor que quer o bem da outra pessoa. - Daniel ia discorrendo. Robyn escutava com os olhos cheios de lágrimas. - O que você quer para essa outra pessoa? Você quer o céu? Então você quer o verdadeiro bem, porque amar uma pessoa é querer que ela vá para o céu. Padre di Sofia me disse, "Filho, procure diminuir um pouco seus sentimentos, distancie-se de Parker". Padre di Sofia pediu-me para fazer o exercício de me perguntar diante de Deus se eu, ao lado dela, estaria escolhendo alguém que me ajudaria a ir para o céu, e eu poderia a ajudá-la a ir para o céu. Diante dessa prova, desse teste de fogo, ali muita gente termina vendo que sua paixão não é um projeto vocacional, não é desejada por Deus, porque sua paixão é uma pedra de tropeço e uma ocasião de idolatria. - Ao notar que Robyn tinha se emocionado, Daniel se assustou. Ela fechou forte os olhos, fazendo as lágrimas rolarem dos cantos, e pediu que continuasse. - Ele disse para mim: "não escolha os corpos, eles envelhecem; não escolha os sentimentos, eles passam. Escolha as virtudes. Escolha a alma correta com a qual você realizará uma aliança, para juntos caminharem para o céu".

Algo na maneira como ela desviou o rosto e no sorrisinho triste desenhado apenas num dos lados da boca expressaram enraizada tristeza. "Se apenas tivéssemos sido amigos mais cedo", Daniel pensou, certo de que ela gostaria de desabafar, e ele adoraria escutá-la; não obstante, antes que estivessem batalhando em momentos tão complicados de suas respectivas vidas, lá atrás, tinham existido inúmeras oportunidades quando poderia tê-la convidado a assistir a filmes em casa, trazendo-a ao seu círculo, ao círculo de Gladys. A tragédia de tudo era que Robyn teria aceito o convite, se apenas Daniel tivesse pedido. A distância que os separava era ínfima, e intimamente sabiam o quanto se gostavam, mas a insegurança, a incerteza quanto ao chão minado onde pisavam, prendia-os a seus próprios dilemas silenciosos e inconfessáveis, como se ele ainda fosse o garoto tentando furtar chocolates, e ela, a moça do supermercado, puxando milkshake pelo canudo para intimidá-lo com sua presença.

- É estranho. - Ela sacudiu a cabeça, mordeu o lábio inferior, pensativa, e disse: - As coisas que Padre di Sofia fala para você cabem tão bem a mim! Não sei se darei um passo em falso, mas tentarei a transferência para o escritório de representação da Guarda Costeira em Washington. - Robyn contou. - Gostaria de ficar próxima a Aaron.
- Ele está morando lá?
- Hoje, ele é um restarauteur em Georgetown. - Contou, agora com olhos tão tristes quanto a voz. - Claro, papai ficou furioso. Quer que eu faça residência em psiquiatria.
- Vai dar tudo certo. Conseguirá a transferência e ficará perto dele. - Daniel disse de uma maneira tocante em simplicidade. Robyn imediatamente levantou os olhos dolorosos e tentou sorrir.
- Engraçado, não é? - Ela comentou, e Daniel esperou que prosseguisse. Como não o fez, ele indagou, curioso.
- O quê? - Perguntou com candura, também sorrindo.
- Posso contar nos dedos as vezes em que nos encontramos; entretanto, foram coisas marcantes. Da nossa briguinha quando adolescentes à conversa de hoje. O que você acha, Danny? Eu sou contraditória, não? Eu sinto nos meus ossos a verdade das palavras do Padre di Sofia; no entanto, vou no sentido contrário. Escolhi baseada nas emoções, quando tinha diante de mim a chance de preferir as virtudes. - Ela finalizou, e uma lágrima rolou pela face.

E, com isso, Robyn se despediu. Ela ainda se deteve, pouco antes de dobrar no átrio para o hall de elevadores, para olhar para Legrand. Ele levantou a cabeça, com os olhos bem atenciosos, cheio de expectativa, e ela falou, baixinho: "Danny? Eu gosto muito de você".

Daniel voltou-se para Suntee, com um sorriso cansado e comovido, talvez o mesmo com o qual vira Robyn sair, em 2004. O garoto se aproximou como o faria a um irmão mais velho e cansado e, sem movimentos intrusivos ou grosseiros, trouxe-o, com muito jeito e reverência, a um banco, onde pôde se sentar. Daniel vinha experimentando flashbacks tão reais que se sentia nos mesmos lugares, passado e presente influenciando-se numa dança de vai e vem, indefinidos como a faixa de leito onde a maré quebra antes de recuar. Daniel vocalizou, baixinho, o desejo por uma xícara de café. "Há um mercadinho na esquina, lembro-me de ter visto. Vamos!", Suntee lhe deu um soco camarada no braço e o animou a sair dali.

Legrand e Suntee chegaram ao complexo da Guarda Costeira no meio da tarde, Legrand mais centrado, preparado. Sua chegada à portaria imediatamente chamou a atenção, e foi muito bem recebido pelos colegas com os quais trabalhara por praticamente dois anos antes da tragédia que o tirara de cena. Suntee assistia à interação entre colegas, fascinado. Não sabia em que terreno pisava e, nisso, não diferia muito de Daniel. O sol se punha, quando a dupla se dirigia ao portão de saída, próximo ao cais onde se localizavam os botes de guarda. Sobre o píer, Daniel identificou as figuras de duas pessoas, Giro e o homem "do brinde", o qual seria Etienne Dieudonné, de acordo com as instruções de di Sofia.

- Finalmente você veio, Giro. - Agradeceu, entrando de peito no abraço. Suntee chegou em seguida, também cumprimentando o padre energeticamente.
- Filho, chegou a hora de eu levá-los a um passeio pelas alamedas da recordação. - Giro trouxe pelo cotovelo o agente federal e o apresentou. - Este senhor é Etienne Dieudonné. Ele o tem acompanhado há um tempo.
- Desde que você apareceu na televisão no começo deste ano, Daniel, para ser preciso. - O homem com sotaque europeu explicitou, tirando os óculos de sol e apertando a mão de Legrand.
- Iremos de passo em passo. Você compreenderá! - Giro apontou para o outro lado do portão. - Vamos para um lugar sossegado.

Giro estava de carro, então o quarteto saiu intencionando encontrar um melhor lugar para conversarem calmamente; no entanto, antes de escolherem o lugar, o padre quis levá-lo aos principais pontos geográficos do passado recente de Daniel. Ele reviu o colégio Lower Township; foi de partir o coração quando, após correrem pela pista que avançava entre as dunas, Giro chegou ao hoje abandonado estacionamento, decadente colosso que um dia recebera sol, gargalhadas e esperança no futuro. Ao se esforçar para enxergar a cobertura, sentiu o nó na garganta ao pensar sobre quando conversara com di Sofia sobre Parker. Terminaram o passeio na diner, onde Daniel esperara por ela com o buquê num braço e Cyrano no outro. Eles se sentaram à mesa próxima `a cabine de telefone, e Daniel pensou na visão de Aaron Lang `a beira do suicídio, em sua confusa cronologia dos fatos. Era uma noite de movimento, mas também discreta; o interior os apeteceu no instante no qual entraram, uma música romântica cadenciada, Tamia com "This time it's love", apaziguando os ânimos. Uma turminha mais jovem disputava partidas na mesa de sinuca de feltro verde gasto, canecas de cerveja, cheias ou `a espera de reabastecimento, acomodadas sobre as beiradas. Ocasionalmente, sobrevinham gargalhadas e aplausos, alguma tacada de sorte. Daniel, di Sofia, Suntee e Dieudonné olhavam para os jovens e sorriam. `A mesa, Daniel teve um interessante insight sobre sua história. Conforme di Sofia dissera, se parte da responsabilidade pela perda de memória era rastreável ao trauma na estrada, a outra o seria a um mecanismo de defesa do inconsciente, uma estratégia de autopreservação para fugir do horror, que ainda lhe era invisível. Até pouco tempo atrás, atribuía as lembranças paulatinas `as imprevisíveis consequências da volta de Parker, mas agora compreendia que a verdade vinha de dentro de si, a partir do momento no qual resolvera aceitar que sua vida fora tocada pelo horror na juventude, de alguma forma.

A reunião ofereceu a Giro a chance de se aprofundar nas razões de ter deixado Cape May para trás, tudo para seguir o rapaz e a avó Gladys de perto. Após a "tentativa de suicídio" de Legrand, durante o processo de reabilitação, Padre Girolamo di Sofia, querido professor de matemática do colégio Lower Township e pároco local, diretor do maior orfanato daquela porção dos Estados Unidos, fora procurado pelo Agente Dieudonné. Naqueles dias durante os quais Legrand não dava sinais de que sairia do coma, di Sofia praticamente dormia na sala de espera com Gladys, e era a imagem da desolação. Ele e a avó oravam todas as manhãs, e Giro conduzia missas no oratório do hospital em nome de Daniel e dos outros pacientes e familiares. Algum tempo depois, Giro foi abordado por aquele cavalheiro em questão, Agente Dieudonné. Se Giro fora abalado pela possibilidade de que Daniel tivesse tentado o suicídio, a revelação de Dieudonné tirou o chão de seus pés, e o padre enxergou a real gravidade do problema.

- Eu praticamente o vi crescer. - Padre Girolamo afirmou, entre goles de café. Suntee sabia que assistia ao desenrolar de acontecimentos extraordinários. - Primeiro, quando você era menino, em 1995. Depois, no começo da década seguinte, ao reaparecer consistentemente na paróquia para me visitar. De um jeito ou outro, Maria Santíssima encontrou a forma de nos manter amigos no curso desses eventos.
- Mas Giro, por que não chegou para mim antes, para conversar? Não compreendo! Você e Parker se cumprimentando, quando os "apresentei", como se já não se conhecessem! - Abriu os braços e meneou com a cabeça, os olhos bem abertos. - Não houve nada na interação de vocês que me levasse a crer que…
- Isso aconteceu pois Parker sabia tão bem quanto eu que, cedo ou tarde, você se aproximaria da verdade. Nós sabíamos da história, Daniel, mas faríamos mal se não deixássemos que descobrisse por si.
- Ainda assim, Giro. - Suntee voluntariou-se para contribuir `a conversa. - Você o encorajou a voltar a Cape May, tendo inclusive cuidado do trâmite do adiantamento das férias na Coordenação de Recursos Humanos. As surpresas não acabaram, certo?
- Compreenderão melhor quando eu lhes mostrar… Agora, entraremos nas razões de Dieudonné ter me procurado no lado de fora do seu quarto, enquanto estava em coma. - Terminou o café num gole e deixou uma nota de dez dólares sob o pires. - Venham comigo.

Após a descida da primeira curva de Cape May, mas muito antes de se chegar a downtown, existia uma tranquila, pacata rota secundária a serpentear através do relevo em voltas muito espaçadas cercadas pela rala mata nativa tipicamente litorânea. Ali, a geografia fazia a suave transição de estuário à praia. Girolamo parou no acostamento de um determinado ponto. Não havia mais nada a evocar o acidente de seis anos antes, mas Daniel imaginava as razões pelas quais o amigo os levara até ali. Suntee se apoiou nas grades de proteção e arriscou uma espiada para baixo. Era uma devastadora queda. Daniel olhou para Giro com olhos suplicantes, e o amigo foi direto ao ponto.

- Reconhece essa curva? - Fazia um frio cortante. Luzes de postes semelhantes a velas bruxuleavam rastros fantasmagóricos que começavam para os lados do Atlântico, muito distantes. Suntee notou os pelos eriçados dos braços. Respirava com antecipação.
- Imagino que seja o ponto de onde me joguei?
- Eis o impasse, Daniel. A história oficial simplesmente não cola. - Giro sentou-se sobre a grade de proteção. Ali, num lugar tão deserto e vasto, Legrand sentia-se pequeno e oprimido, homens fora de seu ambiente, confabulando para escapar de um incompreensível mal. - Você foi encontrando dentro do carro destruído, parcialmente virado sobre as rochas do estuário. Saiu com ferimentos graves, perdeu a audição de um dos ouvidos por causa do trauma. Seu estado emocional, à época da confusão, já não vinha bem. Mildred estava morrendo. Além da menina, você parecia perturbado por outros problemas. Eu sei disso pois abria seu coração para mim, no confessionário. O que eu poderia fazer? Eu o orientei, rezei por ti. Você sofreu o acidente, voltou sem lembranças, e a tese da tentativa de suicídio colou.
- Por favor, apenas seja honesto.
- Quer saber? Jamais acreditei que tenha tentado se suicidar. Você tinha desnudado a alma a mim, filho, eu te conhecia, sabia que jamais tentaria um lance parecido. Eu firmei a convicção de que não era o tipo de pessoa dada a tamanho desatino. Por mais que a doença de Mildred tenha te desestruturado, sabia que enfrentaria a tempestade até voltar ao porto. - Padre di Sofia esfregou os olhos cansados, e ia continuar, a voz sem fôlego, quando Agente Dieudonné se ofereceu para falar, tomando a palavra.
- Ao investigar melhor os detalhes do caso, a sugestão de suicídio só passou a fazer menos sentido. Explique-me, por exemplo, como teria rolado dentro de um carro a girar barranco abaixo, sem fraturar costelas, pernas ou braços. Você sofreu um trauma nessa área da cabeça... - Apontou para o ouvido deficiente de Legrand. - O fato é que um suicida a se lançar barranco abaixo teria feito muito pior, não teria sobrado nada, porra.
- Senhor, vamos ao ponto, certo? - Suntee perdia a paciência.
- Não está claro o suficiente? Um carro desgovernado teria avançado contra a grade de proteção, e as teria arrancado no impacto; entretanto, apenas as deformou ao atravessá-las. Daniel não estava dentro de um carro em velocidade, garoto.
- O cenário de suicídio foi forjado, menino. - Padre di Sofia abreviou, trocando um olhar breve e penetrante com Suntee.
- O carro foi empurrado à média velocidade, lançado propositalmente com Daniel dentro. - Dieudonné fez coro. - Com o velocímetro adulterado.
- Não faz sentido. - Podia experimentar o gosto amargo do pânico na ponta da língua. - Por que fariam algo do tipo a um cara sem inimigos?
- Sem inimigos? - Padre di Sofia repetiu, incrédulo. - Ora, Daniel mal se recorda da própria vida em Cape May! Como pode me garantir que não tinha inimigos?
- E inimigos... - Suntee pensava em voz alta, pronto a desenvolver possibilidades, quando Dieudonné retomou a dianteira.
- Inimigos podem atentar contra a vida! - Sumarizou, apontando para Daniel. - Alguém com motivos bons o suficiente para querer te silenciar. Uma briga mais calorosa. Teu inimigo te acerta com um pedaço de pau, por exemplo, desespera-se ao achar que te matou num instante de forte emoção, e forja o cenário de suicídio. Deus sabe que você tinha razões para dar cabo de si, apenas sabemos que não o faria.
- Quem tramaria semelhante cilada? - Daniel perguntou, os olhos marejados.
- Não sei, Daniel. Você nos diga.

Giro os deixou no lobby do albergue com a promessa de que ele e Dieudonné retornariam pela manhã, quando poderiam tomar café e conversar melhor. "Por que não agora?", Daniel opinou, recebendo o olhar intrigando do padre e do agente federal. Ele explicou que não conseguiria dormir mesmo, então fariam melhor retomando de onde haviam parado. A recepcionista gentilmente ofereceu: "Poderíamos preparar uma garrafa de café?". "Sim, por favor", assentiu com um sorriso de gratidão. Eles se sentaram em torno de uma das mesas do refeitório deserto. A garota ligou as luzes das lâmpadas em spots e trouxe de antemão as xícaras, enquanto uma das cozinheiras esquentava a água. Dieudonné sacou uma caderneta do bolso do paletó bege e começou a rabiscar qualquer coisa.

- Quem se passava por Mildred Weber? - Perguntou, de supetão, seus olhos deixando a caderneta e se fixando aos de Daniel. - Isso mesmo, Robyn Corliss. Você resgatou o pessoal daquele avião, tornou-se herói nacional, e Parker te rastreou até Elizabeth, para instigar recordações. Robyn veio em seguida, e não perdeu tempo. Se Robyn se fez passar por outra pessoa, claro que queria intimidade para se tornar o ombro onde pudesse chorar as mágoas. Ela queria mantê-lo perto, desse modo ficaria um passo a frente.
- Muito bem. - Daniel viu onde Dieudonné desejava chegar. - Hoje, sei que Robyn esteve me observando, a começar por aquele dia na praia, em 1995, até os primeiros anos na corregedoria. Giro, você se recorda dela? Nos anos do colégio?
- Recordo-me com muito carinho e lamento o que aconteceu mais tarde. - Ensaiou um sorriso triste e experiente. A garçonete trouxe a garrafa térmica. Daniel agradeceu com um aceno de cabeça. - Mesmo após o colegial e durante os anos de faculdade, ela também aparecia na secretaria da paróquia, à minha procura, por orientação. Depois, dos aprovados no concurso, foi Robyn quem pediu transferência para Washington, para o escritório de representação da Guarda Costeira. Para a família, contou que buscava independência, mas seus verdadeiros motivos deviam-se ao ex-namorado, administrador de restaurantes em Georgetown. Não fazia sentido... Ela terminara medicina, começaria a residência em psiquiatria; entretanto, adiou a residência para assumir um carguinho de nível médio?
- Você me estimula a raciocinar, mas nunca revela tudo o que sabe. - Daniel provocou, enchendo a xícara. - Então, por que Robyn seria minha inimiga?
- Goldman Roehmer. O nome soa familiar? - Dieudonné respondeu no lugar do padre. Bebericou o café, fazendo um estalo com os lábios ao terminar. O semblante de Daniel imediatamente se iluminou. Claro que se lembrava.
- Quando Robyn revelou que estava por trás do perfil falso de Mildred, ligou-me de Nova York. Disse que se encontrava numa exposição no Metropolitan para as obras desse artista. Pesquisei e não acreditei.
- Despedaçado a machadadas. Sofreu tanto que praticamente sentiu até o fim a amputação, antes de morrer de choque. - Detalhou. Suntee empalidecera, mas talvez em razão da cálida luz dos spots.
- Escreveram que o autor foi um serial killer conhecido como "Mickey caçador".
- "Mickey lenhador". - Giro corrigiu, para vir com a inesperada emenda. - Acho que "Mickey lenhador" jamais existiu. Creio que foi Robyn quem despedaçou Goldman Roehmer.
- Pelo que sei, ele foi morto em 2001. Você precisa colocar Robyn na cena do crime.
- Robyn concluía Medicina em Oxford. - Girolamo começou a elucidar. - E ela era namorada de Goldman. Pode não se lembrar, porém foi você quem me inteirou de tudo, lá atrás, numa de suas visitas ao orfanato, para ver Mildred.
- Ela não estava com Aaron?
- Não. - Giro hesitou, desapontado em arruinar a inocência do amigo. - Aaron tinha deixado Robyn para ficar com Parker. Foi justamente naquela época, dezembro de 2001, em que Parker terminou o namoro contigo. Parker deixou você para ficar com Aaron, e Robyn enlouqueceu. As duas irmãs deixaram de se falar, e o pai, Bill Cowan, despachou-a para a Europa, para terminar o curso, porém, principalmente, para se esquecer do playboy.
- Pela maneira como me recordo, eu e Robyn trabalhávamos na Guarda Costeira há meses, quando ela apareceu em pessoa e me visitou no andar da corregedoria, para conversar. Isso nos coloca, cronologicamente, no início de 2003. Como Robyn poderia me falar sobre transferência para Washington para ficar próxima a Aaron, quando sequer namoravam?
- Talvez o objetivo tenha sido seduzir o ex-namorado, recuperá-lo. - Giro repôs o café. Tomou um gole e continuou. - Ou vingar-se da irmã. O fato é que algum tempo depois desse seu reencontro com ela no prédio da Guarda Costeira em 2003, Aaron retornou para Cape May, num profundo quadro de depressão.
- Isso! - Daniel fez o aparte. - Quando nos vi conversando, Aaron parecia uma remota sombra de como me recordava dele da época do colégio.
- Você só não deve se lembrar ainda que, na época, quando conversaram, Aaron se encontrava a semanas do suicídio. Se nessa história há um suicídio, não foi você quem tentou dar cabo da própria vida. Foi Aaron quem efetivamente se matou.
- Ajude-me a me situar no tempo. - Pediu, levantando as mãos, exasperado. - Quando eu e Aaron conversávamos na diner, em que ano nos achávamos?
- 2004. - Girolamo apertou os olhos. - Acompanhe o meu raciocínio, correto? No fim de 2001 ou começo de 2002, Parker termina o namoro contigo para ficar com Aaron. As irmãs brigam e Doutor Cowan arruma a transferência de Robyn para a Inglaterra. Na Europa, ela se envolve com esse pintor maluco. O rapaz aparece despedaçado e, "coincidentemente", Robyn volta aos Estados Unidos. O fato de Robyn e Goldman terem namorado a coloca no topo da lista de suspeitos. No entanto, quando ela já estava em Cape May, "Mickey lenhador" mata um casal de turistas em Londres, removendo Robyn da lista. Em 2002, assim como aconteceu contigo, Robyn é aprovada no concurso da Guarda Costeira e, em 2003, consegue a remoção para o escritório de representação em Washington, reaproximando-se de Aaron Lang, o qual vivia uma existência nababesca, relacionando-se com a Parker e provavelmente com uma porção de outras garotas deslumbradas. É como eu disse: Robyn era uma médica que, em vez de terminar logo a residência em psiquiatria, escolheu um cargo de nível médio. Ela precisava de uma desculpa para assediar Aaron Lang em Washington.
- Espere, espere... - Suntee balançou a cabeça, muitos fatos novos para processar. - Enquanto tudo isso acontecia, onde Daniel estava?
- Cuidando de Mildred, preparando o caminho de ambos para o céu - Foi a resposta de pronto, como se estivesse apenas esperando pela questão. Suntee sorriu com respeito e admiração: achara as palavras de Giro lindas. Jamais levara a sério, mas, agora, era o seu espírito irreverente e jovem que passava a ver sentido na fé. Até mesmo Suntee, portanto, vinha experimentando uma profunda mudança espiritual ao longo da jornada ao lado de Legrand. - Não se esqueça de que, quando Mildred entrou na vida do Daniel, tirou-o de toda a confusão, que deixou de dizer respeito à sua pessoa e cingiu-se apenas ao trio. Em 2004, Daniel tinha os próprios problemas, pois Mildred voltara a adoecer, e ele passou a se importar exclusivamente com o tratamento da moça. Foi nessa época que Aaron o procurou para pedir desculpas pelo ocorrido com Parker, porém Mildred havia feito um bem tão grande a sua vida, nem mesmo ressentimentos Daniel reservava quanto ao ocorrido.
- Como sabe de tudo, Giro? - Suntee indagou.
- Um pai sempre sabe a respeito dos filhos; e essas pessoas são todas filhos, para mim: alguns mais confusos que os outros, mas igualmente amados. O fato é que Aaron comprou um bilhete para São Francisco, e saltou da Golden Gate. - Padre di Sofia fez um sinal com a cabeça para Suntee e passou a enumerar com os dedos da mão. - Eu não sei, todavia, de tudo. Eis o que desconheço: a realidade por trás do assassinato de Roehmer na época na qual Robyn morou em Oxford, o papel de Robyn no estado psicológico de Aaron, a ponto de ele ter saltado, e por que Daniel acabou golpeado e arremessado naquele ponto da estrada nas dunas do estuário.
- E então, depois que Daniel despertou, em 2004, você resolveu ficar por perto. - Suntee arriscou.
- Sim, eu e Dieudonné, especialmente depois que ele me procurou, quando Daniel ainda não saíra do coma, concatenando pistas a apontarem à Robyn. Temíamos que ela terminasse o que não conseguiu acabar.
- Robyn querendo me matar? - Pasmado, Daniel não quis acreditar.
- Precisamos que se lembre de tudo! - Dieudonné salientou. - Só você tem as últimas peças!

Naquela mesma noite, antes de dormirem, Daniel e Suntee revisaram os acontecimentos do dia. Ele falava ao garoto sobre quando conversara com Robyn, quando ainda cativo sob o encanto da mentira, e ela pedira para que procurasse o orfanato de Cape May. Os dois combinaram que, na manhã seguinte, começariam pelo orfanato, e dali, deixariam que as circunstâncias ditassem os compromissos. Giro se hospedou na velha paróquia, e Dieudonné ficou de apanhar Padre di Sofia e passar no albergue, pela manhã, para o começo dos trabalhos. Antes de adormecer, aquelas perguntas estranhas ficaram alçando voo ao redor da cabeça de Legrand. Daniel teve um sonho diferente. Não foi bom, nem ruim, apenas esquisito. Ele se encontrava no mesmo restaurante de beira de estrada onde vira os recortes de quando Robyn vencera o campeonato de caratê. Ao parar para examinar o quadro de notícias, percebeu novos recortes presos pelos pinos. Daniel podia ver fotos, muitas delas em preto e branco. Quando tentava ler o texto, todavia, a fonte das letras, minúscula, perdia o foco. Vez que não conseguia se inteirar das notícias, satisfazia-se com as fotos de Robyn, seu sorriso muito aberto exibindo dentes perfeitamente alinhados e brancos. Mas o que existia sob as fotos? Bem, não podia ler uma única linha inteiramente, apenas algumas palavras. "Beliscão". "Estupro". "Surra". "Ameaça". "Fisting". O sonho foi perdendo nitidez, até nada mais restar. Só escuridão.

Há pessoas que passam um longo período sem se verem, porém, tendo se reencontrado, não precisam de coisa alguma para se sentirem à vontade um à presença do outro; foi assim entre Daniel e uma doce, adorável senhora negra idosa chamada Lefty, merendeira chefe do orfanato e incondicional aliada de Girolamo. Fora a primeira a se juntar ao time de di Sofia no passado, quando o sacerdote assumira para si o trabalho de cuidar de crianças abandonadas e rabiscava em linhas gerais o plano de um orfanato, na verdade, um lar seguro aos desamparados de Cape May. A vida de Mildred correra sob o manto protetor de Giro e de Lefty, a referência feminina que cuidara da garota cega, com amor e carinho, desde sua chegada ao lugar, quando pequenina, à morte. Lefty não só criara Mildred, também se sentia mãe de todas aquelas outras almas inocentes. O filho biológico, Orlando, encontrara sob o teto da paróquia o próprio porto seguro, onde pudera viver sob a atenção e os cuidados de quem o amava. Uma pedrada o deixara mentalmente deficiente, e embora tivesse a idade de Daniel, era como se nunca tivesse deixado os dez anos. Sob o carinho e suporte da mãe e da família do orfanato, ninguém conhecia o horroroso sentimento da exclusão. Todos, absolutamente todos, pertenciam à mesma página.

Lefty, claro, recordava-se de Daniel muito novinho, sempre no orfanato para ficar perto de Mildred. Ao reconhecê-lo, riu bem alto, batendo as palmas das mãos, histérica, e o abraçando, de avental e tudo! Foi um grande momento. Atrás do orfanato, Giro construíra a casa da merendeira chefe. O quintal o remetia a lembranças do jardim da avó. Ao assistir ao proceder perenemente paciente e amoroso de Lefty para com Orlando, entendeu que o carinho da merendeira não diferia da devoção com a qual Gladys o carregara através dos maus tempos, desde a época na qual fora um homem sem perspectivas que sequer abrira livros até ao inesperado comeback ao jogo da vida, o melhor presente que poderia desejar após tantos anos carregando sua cruz quase solitariamente, não fossem os suportes de Padre di Sofia e de Gladys.

Lefty os convidou a sentarem. Trouxe café e pão com manteiga passada na chapa. Padre Girolamo encontrava-se numa reunião com os atuais párocos; ele comandaria sua primeira missa em anos, desde que partira de Cape May. Começaria logo mais, às 09:00, mas tinham tempo para o café da manhã e recordações de tempos mais felizes. Lefty os levou ao quintal onde Mildred cuidara dos gatos; os felinos continuavam a ser tratados com amor, agora sob o olhar puro de Orlando. A senhora se escusou, dizendo que ia apanhar qualquer coisa. Quando ela os deixou, Suntee perguntou:

- Tudo bem, amigo? - Sacudiu-o com a mão no braço, sorrindo solidariamente. - Muitas emoções para pouco tempo, não é, cara?
- Sim. - Respondeu, curiosamente à vontade, uma sensação inédita desde que tinha voltado. - Talvez a Lefty, como cidadã de Cape May há tantos anos, saiba de Aaron Lang. Acho que lhe perguntarei a respeito.
- Faça isso. - Suntee ia falar mais, quando a escutou chegar pelo corredor da casa de portas e janelas permanentemente abertas.

Lefty trouxe um porta-retratos. Ela o depositou nas mãos de Daniel. Ele imediatamente reconheceu a foto como um dos arquivos utilizados por Robyn para se passar por Mildred. Ao revê-la, lamentou por não conseguir vincular a imagem à bela história de amor que o tinha devolvido aos trilhos, quando mais necessitara. Talvez, mesmo ausente, a força das recordações de Mildred o devolveria aos trilhos novamente. Daniel encarou a senhora, preocupado, temeroso em remexer feridas não cicatrizadas. Existia, porém, incomum resignação na maneira como Lefty tão generosamente se abria. Daniel soube que ela sobrevivera ao carregar consigo somente a parte boa da breve passagem da filha neste mundo.

- Senhora, melhor do que qualquer um de nós, deve se lembrar das circunstâncias de minha partida de Cape May. Sabe que perdi a memória. Eu queria ter chegado hoje tagarelando sobre os grandes momentos que só eu e Mildred teríamos como saber, mas acredito que quando minha jornada tiver acabado, as histórias terão voltado, e então contarei para a senhora.
- Mantive comigo as recordações bonitas da época na qual estiveram de mãos dadas, juntos, sob aquele jacarandá. - Lefty apontou para além da janela. Mesmo para além do muro, já no terreno do orfanato, viam sua copa púrpura. - Vocês se encontraram na época certa: um foi puxando o outro para frente. Suas vidas não foram fáceis; porém, em seus dramas, souberam como se ajudar e, pelo menos, para Mildy, durou até à morte. Eu sei o pensamento que tem em mente: "Como ela pode parecer tão otimista quando a filha morreu tão jovem?". A resposta, e mais alguns anos ao longo da estrada o ajudarão a compreender melhor como consigo sorrir, é que a vida tem seu jeito de descartar o que não é importante, até restar o essencial. Se tem algo feito perfeitamente pelo tempo, é afastar as coisas superficiais. Os anos avançam, e vão levando juntos camadas e mais camadas de coisas desimportantes, até restar o absolutamente essencial. Logo depois da morte de Mildy, não quis saber de mais nada, até acordar, numa manhã, grata. Grata pelos anos, mesmo poucos, que tive para segurar a mão de Mildy e ajudá-la nessa estranha, dolorosa caminhada que foi a jornada dela neste mundo. Até a brevidade me fez ver a poesia escondida por trás das agruras e dores.
- Lefty, eu não gostaria de assoberbá-la com o peso da minha história pessoal, mas talvez possa me ajudar. Também desejo encerrar a porta do meu passado e seguir adiante, mas antes...
- Eu imaginei que voltaria, principalmente após salvar o avião da American Airlines. - Suntee olhou para Daniel com um agradecido, maroto sorriso, cheio de reconhecimento. Lefty sacou no ato que o menino havia sido um dos passageiros resgatados.
- Espero retribuir o que esse cara fez por mim! - Suntee corroborou a acertada impressão da senhora.
- Por acompanhá-lo nesses instantes tão delicados, provou-se um ótimo amigo! - Lefty enalteceu o valor de Suntee. - Independente de quem tenha te jogado da estrada, não custaria a você se interessar e começar a juntar peças para deduzir que, não tivesse sido pelas mãos de outros, jamais teria avançado contra a grade de proteção propositalmente.
- Ei, então também acredita que estamos falando de tentativa de homicídio! - Suntee perguntou, porém saiu como uma afirmação de alguém ciente das mesmas contradições na versão mentirosa da tentativa de suicídio.
- Eu tenho certeza que tentaram te matar. - Ela falou, convicta, mais um desabafo do que comentário. - E poderia falar sobre os aspectos na cena os quais não fizeram sentido, mas prefiro ficar com sua palavra: ela vale muito mais. Mildy estava a dias de morrer, quando o fez jurar que não causaria a si mal algum, e que usaria os bons momentos para levar uma vida honrada.
- Eu jamais faria promessa semelhante se não estivesse disposto a bancá-la. - Segurou o braço da senhora e o apertou. - Eu acredito na senhora. E preciso conversar com vovó. Eu imagino a amargura de vovó, convivendo resignada com a versão da polícia.
- Fale com Gladys. - Ela apreciou a ideia, os olhos vívidos. - Sua avó jamais mediu esforços para vê-lo bem. Gladys merece a satisfação.
- Então sabe por que estamos aqui. - Suntee introduziu a questão. - Daniel precisa reaproximar-se de sua história, mas também descobrir o que aconteceu na estrada. Eu creio que ele sabia de algo que não deixaria uma outra pessoa dormir. Eu não acho que essa pessoa tenha tentado matá-lo deliberadamente. Creio que o tenha procurado para conversar. Ânimos se inflamaram, Daniel foi atingido com muita força. O agressor se desesperou. Tomando-o como morto, bolou o cenário de suicídio.
- Não consigo afastar a frustração! - Daniel lamentou, abaixando o rosto e sacudindo a cabeça. - Sou a única testemunha, e não me lembro de coisa alguma!
- Não faria essa afirmação: única testemunha. - Lefty demorou a falar, mas acrescentou: - Pouco tempo depois, um amigo seu tomou uma facada numa briga mal explicada e morreu. E não podemos deixar de considerar o redemoinho emocional ao seu redor, na época. Num primeiro momento, vem-nos à mente o falecimento da Mildy, mas mesmo afastado do redemoinho, Daniel ainda detinha um papel no sinistro triângulo amoroso envolvendo Parker, Robyn e Aaron. Eu me recordo de Aaron. Como poderia esquecê-lo? Não fosse por Aaron, você e Mildy não teriam se conhecido. Foi por causa de Aaron que Parker foi embora, e então você veio parar aqui, atrás de um animalzinho especial para presenteá-la, uma tentativa de reconciliação. Parece uma ideia excessivamente ingênua e doce, mas naquele tempo, aos vinte anos, deve ter parecido grandioso. Procure os pais de Aaron. Eles adorariam revê-lo. - Lefty soou convincente. Daniel começava a bolar um esboço de plano em sua mente.
- Rever? - Repetiu, surpreso.
- Sim. Vocês todos se conheciam do Lower Township, e você era um garoto muito querido pela comunidade. - Lefty parecia prestar atenção aos gatos de Orlando brincarem, mas a atenção voltava-se a lembranças muito cristalinas, pipocando na sua cabeça experiente. - De certo modo, os acontecimentos em 2004 serviram como sinal para o fim de uma era. Cada um foi para o seu lado e, desde então, nunca mais fizemos novas lembranças. Faria bem se conversasse com os pais de Aaron. Após tantos anos desde a morte do filho, imagino que queiram desafogar as impressões que não tiveram como vocalizar no calor do momento. Eventualmente, compreenderá que seu passado inteiro em Cape May não faz muito sentido, caso visto de muito próximo; no entanto, se der um bom passo para trás, capturará o contexto, o quadro maior, e então a história fará sentido. Eu sei que não veio movido unicamente pela ânsia de saber. Compreendo a dor de se forçar a uma vida comum, quando o chão sob seus pés parece faltar. Lembre-se, eu perdi uma filha, e até aceitar a morte da Mildy, aprendi sobre esse lugar sombrio que você habita hoje. Não se exaspere e continue no caminho da luz.

Daniel prometeu que retornaria. Não caberia a Lefty rasgar as cortinas as quais revelariam de uma só vez a natureza do ocorrido na entrada, mas o ajudaria a organizar a desordenada série de imagens bonitas que o remetiam a Mildy: pelos bons momentos com Mildy, Lefty trazia à luz detalhes, até os aparentemente insignificantes, aptos a ajudá-lo a compreender melhor a pessoa que enxergava ao se olhar no espelho. Naquela tarde, Aaron Lang surgiu no motor de busca quando fez a pesquisa. Daniel conseguia entender melhor o apelo de Aaron, e por que lhe fora tão fácil atrair Parker e Robyn à mesma teia. Ele era um vórtice de emoções elevadas à enésima potência. O sorriso curto de canto de boca realçava a malícia do olhar de quem não se comprometeria com nada a não ser seu hedonismo. Tal hedonismo as tinha capturado pelas partes de si que os pais jamais conheceriam, por inconfessáveis, aquelas pelas quais Bill & Gail lhes cobravam adequação. Caso refreadas, entretanto, as irmãs tinham achado que revogariam o direito de se deixarem consumir pelas chamas da novidade e descoberta, pelo fulgor de estrela em curva descendente, virando poeira ao longo do rastro das emoções incandescentes. Em 2004, Parker e Robyn "rompiam" a estratosfera, ambas seres celestes lançados à Terra, arrastadas pelo poder supersônico dos desejos proibidos, para serem fodidas no rabo por Aaron. Cegas pela loucura, não viam valor naquilo que se esvaia entre os dedos a cada estocada desferida por Aaron: compaixão, pureza de coração, honestidade, as virtudes que fariam uma ponte entre as ilusões passageiras a outro ponto onde não precisariam se desesperar para serem felizes. Elas teriam rido dessas bobagens, naquele tempo, enquanto, de quatro, tomavam as estocadas violentas de Aaron. Quase dez anos haviam se passado, e os sobreviventes daqueles jogos de manipulação tentavam descobrir, em meio aos escombros da vida, como serem adultos.

Havia informações quanto às circunstâncias da trágica morte de Aaron em dois jornais municipais, o "Voice of Cape May" e o "Cape May by the Bay". A mãe recordava-se de que, pouco antes do suicídio, Aaron deixara os restaurantes de Washington e voltara para casa muito doente, atormentado por sintomas gastrointestinais e inflamação na garganta. Depois de se esquivar por uma semana dos pedidos insistentes dos pais para que procurasse um hospital, dera entrada na Casa de Saúde de Cape May com uma febre de quarenta e quatro graus. Ele deixou o leito dias depois, com a saúde estabilizada. Enquanto seus olhos corriam pelas linhas, Daniel se recordou do "fantasma" de Aaron com os olhos tão abertos quanto os de um bicho acuado, e imediatamente presumiu que o encontro só poderia ter se dado no mesmo período. O "Cape May by the Bay" seguia com a notícia, a mãe de Aaron revelando que nem mesmo um mês se passara, quando o filho se despediu, tendo comprado o bilhete para São Francisco, de onde fatalmente saltaria da Golden Gate. Conforme a matéria, cursara Artes Cênicas na NYU, mas trancara o curso para administrar os restaurantes em Washington. As circunstâncias do envolvimento de Parker e Aaron pareciam subitamente claras, em puro estado de flagrância. Nova York representava a libertação dos padrões antiquados e imensas expectativas impostas por Bill & Gail à Parker; o namoro com Aaron, a transformação da lagarta para borboleta. Daniel sentia que precisava conversar com Parker a respeito. Não seria uma conversa fácil, porém, quando consultados, Suntee e Giro concordaram que não havia como se imiscuir.

Na quinta-feira, Parker telefonou de Londres, morrendo de saudades e decidida a pegar o primeiro voo para Jersey para liquidar o vazio cavado no coração pelo distanciamento. Um fim de semana não seria muito tempo, porém a exiguidade do reencontro tinha um jeito especial de fazer com que tirassem da oportunidade seu absoluto melhor. Como de costume, Daniel foi charmoso e encantador. Parker desligou certa de que se veriam na próxima sexta-feira. Legrand, Suntee, Dieudonné e Giro tornaram a diner o epicentro da missão, retornando todas as noites para jogarem com hipóteses, sopesando as implicações disso e daquilo. Suntee minimizou a preocupação dos pais ao postergar o retorno para Jersey na manhã de sexta-feira, ao lado de Daniel. "São as mais emocionantes férias de minha vida, e a senhora querendo que termine mais cedo!", reclamou, com tocante honestidade. Daniel, Giro e Dieudonné trocaram olhares contentes. Às 06:00 do dia seguinte, Daniel quitou a estadia e se despediu da staff. Giro e Dieudonné aguardavam a dupla no lobby. Antes de deixarem os limites de Cape May, Dieudonné pareou o automóvel com a caminhonete de Daniel, buzinou e fez sinal para que abaixassem o vidro. "Boa sorte em Elizabeth, Daniel! Nós nos veremos em breve!", exclamou, para ser ouvido, erguendo o polegar. Daniel buzinou em resposta, Giro e Suntee acenaram e agradeceram. Dieudonné ligou o pisca e entrou na rotatória, de volta à praia. Na saída da cidade, prestaram uma visita a Lefty, que não aceitaria uma negativa a seu convite de lhes preparar o café da manhã. No momento da despedida, Lefty se encostou na janela do motorista, e lhe entregou um volumoso pacote; Daniel inicialmente não entendeu, mas então, ao rasgar a embalagem e revelar um velho álbum, compreendeu o objetivo da idosa. Por mais desapegado que a vida lhe tivesse ensinado a ser, gostava muito de Daniel, e se cobraria mais tarde se não fizesse chegar a suas mãos o livro de recordações. Não se lembrava de quase nada, mas o gesto de Lefty foi tão belo que os olhos de Daniel marejaram. Quando efetivamente se afastaram de Cape May, a manhã avivara-se em calor, temperada por um sol no zênite, sua força refletida desde o verde mais agressivo da relva à forma como a costa parecia pegar fogo sob um azul sem igual, o Atlântico em toda glória.

Diferente das outras aventuras, naquela oportunidade, não foi com sermões que Gladys o recebeu. A avó parecia genuinamente preocupada. Assim que a viu, abraçou-a como se não houvesse amanhã e, por alguns minutos, ela não conseguiu entender. Daniel explicou que somente hoje, ao compreender as implicações do ocorrido na estrada em 2004, via melhor o sacrifício de Gladys para preservar sua saúde física & mental. Daniel contou que não apenas Giro como Lefty acreditavam que ele não teria se atirado deliberadamente através da grade de proteção e, como que atravessada pela eletricidade de pura emoção, Gladys assentiu, lágrimas banhando a cara. A confissão retirou quase dez anos de segredos de cima dos ombros da avó. Daniel pediu a opinião de Gladys. Acreditava que a história parecia atrelada ao triângulo amoroso composto por Aaron, Parker e Robyn, e sabia que Aaron havia se suicidado à época do mistério na estrada. Pretendia conversar com Parker, que, afinal de contas, namorara o rapaz.

- Seria muito elucidativo saber a maneira com a qual Parker enxerga hoje os eventos de quase dez anos, agora com experiência de vida. Eu acho que ela será muito honesta, pois confia em você e se sente segura de seu amor. - Ela desceu o peito da mão pelo rosto do neto, com meiguice, e o encorajou. - Converse com Parker, querido.
- Muito bem, então. - Concluiu, resoluto. Para aliviar a tensão, mencionou a "luz de suas vidas". - Cadê o meu bem-humorado mascote?

E como que capaz de compreender o mestre, Cyrano pôs a cabecinha para fora do cesto de roupas onde vinha dormindo, ou melhor, escutando a conversa de avó e neto, limitando-se a indicar seu novo cantinho preferido para dormir, e voltou para dentro. Daniel tomou um bom banho, trocou de roupas e foi fazer um agrado `a avó. Ele comprara um saboroso prato de filé `a parmegiana, com arroz, purê de batata e macarronada, o bastante para que não tivessem de trabalhar pelo almoço e jantar. Pouco depois do meio-dia, Daniel foi navegar na internet, mas acabou cochilando. Cyrano saltou para dentro da rede e foi descansar no peito do mestre.

Despertou ligeiramente preocupado, atento `a chegada de Parker para mais tarde. Suspirou aliviado ao verificar o horário: dormira até `as 16:00. Ao se virar para alcançar o rádio relógio sobre o criado-mudo, acabou por fazer o gatinho girar sobre o peito, acordando-o num sobressalto. Cyrano saltou para a cama e foi se aninhar em algum lugar quente, entre os travesseiros da cabeceira. Parker tinha dito que chegaria a Newark num voo da British Airways previsto para `as 19:30. Para ocupar o interregno até o horário combinado, Daniel resolveu brincar com Cyrano. Contra a vontade do gatinho, pôs termo a seu sono felino para levá-lo a um passeio pela trilha.

Daniel chegou suado do passeio, mas bem disposto. Subiu o alpendre atraído pelo cheirinho do café coado há meia hora por Gladys, olor que o convidava a largar os planos mais imediatos para se juntar a ela na cozinha. "Você sabe agradar a nora, não?", brincou, beijando-a no lóbulo da orelha, e sentando-se para provar uma xícara. Gladys questionou se ele pretendia levá-la para jantar fora pois, com a comida que trouxera ao meio-dia, não seria preciso. Daniel disse que preferia decidir na hora, quando a pegasse no Liberty. Gladys queria acompanhá-lo, porém havia muito a fazer até a chegada de Parker. Daniel pediu licença para tomar banho, pois assim a avó poderia começar a arrumar a casa mais cedo, começando pelos quartos. Foi após o banho, quando dobrava o lenço para caber mais elegantemente no bolso da blusa, que seus olhos retornaram ao álbum de fotografias. Quando Lefty o entregara, Daniel fora dominado por muitos sentimentos. Por que não pensara mais a respeito, até aquele instante? Teria se esquecido? Não funcionava assim. Parte de Daniel antevia a força das emoções que as páginas libertariam, e talvez estivesse com medo de perceber que houve um tempo na vida em que amou e foi amado de um modo que jamais voltaria a ocorrer.

Daniel se despediu da avó com um beijo no rosto que fez estalo, e quando ela tentou contemporizar que estava cedo, o neto explicou que aproveitaria a folga para visitar colegas de trabalho no terminal de cargas. Lógico que não era essa a questão, pois acabou procurando o acostamento onde meses antes lera o e-mail de "Simone di Sofia". Agora, encorajado pelo isolamento e nostalgia conferidos pelo ponto do retorno a Elizabeth, precisava passar a vista por fotos que talvez explicassem por que, desde 2004, sentia um enorme vazio no peito. "Há infinitos maiores do que outros", afirmava a mensagem na contracapa, dando o tom ideal `a proposta de viagem pela contínua maré de momentos os quais viviam, morriam e reviviam. Qual fora mesmo o termo utilizado por Padre di Sofia? Ah, sim. "Um passeio pelas alamedas da recordação". As fotos eram de reconfortante simplicidade, instantâneos de pequenos, genuínos momentos os quais, num apanhado geral, tornavam mesmo as vidas mais comuns uma grande ópera. Daniel e Mildred descendo pela primeira curva de Cape May, ela às suas costas, fazendo uma caretinha que a deixava sapeca; Daniel e Mildred com roupas de lã, para o frio, ele de sobretudo marrom, ela de preto, uma elegante lareira capturada pelo enquadramento da câmera; Daniel e Mildred na frente do prédio administrativo da Guarda Costeira, ela um pouquinho debilitada, sustentando o sorriso confortável e confiante de quem tinha a consciência tranquila: Daniel conseguiu o que procurava. Começava a se recordar. Só que assim como ocorria aos velhos, empoeirados álbuns de fotografia, as lembranças também viriam fragmentadas em miscelâneas as quais, agregadas, comporiam uma gloriosa declaração de amor à vida. Não muito distante, o terminal de passageiros reluzia, com Boeings acoplados a fingers e, mais além, aviões taxiando pelas pistas, ora em processo de estacionamento, ora de decolagem. As recordações de Daniel não diferiam do movimento do aeroporto internacional onde passara uma porção da existência adulta. Assim como seus aviões, lembranças iam e vinham em diferentes escalas de imprevisibilidade.

Daniel segurava a mão de Mildred, furada pelas sondas de alimentação. Distraído com a janela, observava a descida de uma garoa gelada sobre a noite de Cape May. Era 2002, e Mildy estaria morta dentro de uma semana. Legrand passava seus dias no hospital, por mais que Lefty implorasse para o rapaz descansar. Mildy não ficaria sozinha por um minuto; ela e Padre di Sofia revezavam-se dormindo no leito ao lado da garota. Daniel, entretanto, não quis saber, não podia aguentar se abster de segurar a mão furada da namorada enquanto houvesse tempo. Lefty dormia; mas Daniel, bem acordado, vigiava sua querida, os olhos vagando pelo quarto mergulhado num consolidado, atraente breu. Repentinamente, luz: ela veio da breve abertura da porta, na entrada de Padre di Sofia.

- Vá para casa, filho. Gladys também precisa do neto! - Consolou-o, pondo a mão sobre o ombro do rapaz.
- Oh, padre. - Levantando-se, chamando-o num canto. - A amargura se apoderou de minha alma. Eu preciso…
- Você precisa desabafar. - Com paciência e amor cristão, Giro apontou para cima. - Vamos à cafeteria da cobertura. Poderemos conversar em paz. Deixe-as dormir tranquilamente. Agora, é hora do papo de homem para homem.

Eles se sentaram na parte descoberta. A cafeteria realmente encontrava-se vaga. Padre di Sofia pediu a Daniel para esperar, e trouxe o café com leite polvilhado de canela. Ele preferiu não fazer perguntas, deixando-o falar. Daniel exprimiu a frustração pelo fato de vir fazendo o bem, mas receber um golpe tão terrível como a doença de Mildred.

- Imagine só, Aaron, feliz e garboso, saltando de cama a cama, de Robyn a Parker. - Ergueu os olhos ao nível de Padre di Sofia. - Eu que sempre fui uma pessoa digna de estar casado, com filhos, um lar, sinto-me paralisado, e já fui trocado por Parker, que preferiu o outro cara. Trabalho e estudo, como o pão que o diabo amassou. Odeio meu trabalho e, não fosse por vovó, não exageraria ao dizer que minha família está arruinada. E Aaron, que faz bagunça, sai com várias mulheres, jamais participou da santa missa, vive como um príncipe, tem a Parker sob o jugo, ganha muito dinheiro, todos prosperaram. Sabe, Giro, estou revoltado, porque era para ser o contrário. Sempre fiz o que foi certo! Por que sofro tanto? Por que minha vida está paralisada? O que devo fazer para minha vida fluir?!
- Bom, primeiramente, meu filho, vamos aqui tentar resolver um problema teológico, antes de tentar solucionar as questões da sua vida. Vamos radicalizar as coisas e colocar a situação de Jó. Jó, no Antigo Testamento, era um homem que serviu a Deus em tudo, foi sempre muito bom, e sofreu mais do que os outros, ímpios, desobedientes a Deus, não tementes a Deus, que prosperaram e foram felizes. E então, o Livro de Jó termina sem uma resposta: por que o justo fenece, padece, murcha, enquanto está lá, o ímpio, gordo, robusto? A resposta vem com a vida eterna. A resposta vem com Jesus Cristo crucificado. Nosso Senhor, Ele morre na cruz, a morte mais miserável que poderia existir, para nos abrir a felicidade no céu, e para que a gente entendesse isso, Ele proclama as bem-aventuranças. - Padre Girolamo bebericou de sua xícara. Daniel prestava atenção, com os olhos bem abertos e comovidos. - Então, comecemos por aqui. Comecemos por essa realidade. Sua avó Gladys parece que o educou muito bem, mas o educou "pela metade". Educou para essa terra. "Seja bonzinho, e você vai prosperar". Pois bem. Ela deveria ter educado você para o céu. Talvez tenha até feito isso, mas você se esqueceu. Você se esqueceu de que a verdadeira felicidade, nós devemos buscá-la não aqui na terra, mas em Deus, sabendo que Ele é nossa felicidade. Nosso Senhor não disse "Bem-aventurado os espertos, porque deles é o reino da Terra"; Ele disse "Bem-aventurado os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus". Então, filho, a primeira coisa que posso apontar é que existe alguma coisa equivocada com seu cristianismo. Seu cristianismo parece voltado para a Terra, para a prosperidade. Talvez você se sinta mais tranquilo, mais ambientado, na igreja dos protestantes, com sua teologia da prosperidade, onde prometem que se você for bonzinho, você será rico, próspero, contente, feliz e realizado aqui nessa Terra. A igreja católica nunca prometeu isso para ninguém, e se algum padre prometeu isso para você, certamente não falava em nome da tradição católica. - Giro abriu um sorriso ao lembrar de um dado pitoresco. - Eu me recordo de um testemunho de um dirigido espiritual de Padre Pio, que disse a ele: "Padre Pio, eu gostaria de ser santo! O que eu devo fazer?!". Padre Pio olhou para ele e respondeu: "Meu filho, tudo bem que você queira ser santo, mas saiba, é uma vida de cachorro!". Ou seja, num mundo onde existe o pecado, num mundo onde existe o egoísmo, quem quiser servir a Deus e viver o amor, certamente irá morrer. Certamente a cruz irá visitar você de uma forma ou de outra. Mas nós sabemos que devemos, sim, encontrar alguma felicidade nessa terra, porém felicidade nesta terra está sempre atrelada a um pouco de frustração. Alegria com um pouco de tristeza, prazer com um pouco de dor. E não existe, aqui, a realidade sem defeito, sem manchas; isso, encontraremos no céu. Essa é a promessa cristã, é a fé católica. Agora, aqui, até aqui, eu resolvi um problema teológica, mas numa direção espiritual, pensando nas coisas que me disse, eu diria para ti, Daniel, que sua conduta soa um pouco como a de Santa Terezinha antes da conversão. Hipersensível. Terezinha era assim. Ela chorava, depois chorava porque tinha chorado. Você se lamenta porque tem que trabalhar no suporte da corregedoria, como se fosse uma grande desgraça; no entanto, trabalhar pode ser uma grande graça, uma grande santificação. Porque seria muito ruim, mesmo que estivesse em casa, que não trabalhasse. Um bom e santo neto de uma avó católica certamente, tendo uma avó idosa para cuidar, vai ter muito trabalho, e, nessa vida aqui, o trabalho nos santifica. Você não pode viver uma vida esperando uma colônia de férias. A vida que passa em passatempo, ela certamente não é plena, certamente não é vida. Então, eu discordaria de ti, ao dizer que Aaron, Parker e Robyn vivem uma vida tão perfeita assim. Se eles vivem uma existência devassa, e depois têm todo tipo de regalia material, invejar isso é não entender o quanto isso é vazio. O quanto isso não preenche! O quanto isso realmente não é boa notícia! Se Deus te prometesse tudo isso, faria o papel de enganador. Por isso, Deus não engana: Ele não se engana, e não engana ninguém. Ele fez você para uma felicidade muito mais plena, uma felicidade muito mais cheia! Veja, se você quiser se aprofundar a esse respeito, leia o catecismo da igreja católica ao nos colocar a sede pela felicidade, pondo algumas citações de Santo Agostinho, dizendo assim: "Todos queremos ser felizes, e não existe no gênero humano pessoa que não concorde com essa proposição, mesmo que antes de formulada por inteiro. Então, como Vos hei de procurar, Senhor? Visto que procurando a Vós Meu Deus, eu procuro a vida bem-aventurada. Fazei que Vos procure, para que minha alma viva, pois meu corpo vive de minha alma, e minha alma vive de vós". Essa é a equação de Santo Agostinho. Você, Daniel… Compreenda isto: seu corpo recebe vida, não do bem-estar e dos prazeres do mundo; seu corpo recebe vida da sua alma, e sua alma recebe vida de Deus. Então, a felicidade que vem de Deus vai para sua alma. E por isso pode sustentar seu corpo. Aqui está a realidade. Só Deus pode satisfazer você. Eu, às vezes, preparo casais, no curso de noivos. E, geralmente, na primeira aula, eu pergunto, para todos: "Quem aqui vai casar pra ser feliz?". Eles levantam a mão, em coro, "Eu vou ser feliz, eu vou ser feliz!". Eu respondo: "Muito bem. Só que… Deixa eu dar uma má notícia para vocês. O casamento não é a felicidade". O casamento pode ser um caminho pra a felicidade. O casamento pode ser uma história de vida que te conduza à felicidade. Mas se você quiser transformar seu casamento, sua família, aqui na terra, num paraíso, então sua vida vai se transformar num inferno. Você insiste, no confessionário, que sua mãe foi embora e sua família terminou arruinada. Provavelmente, essa foi uma das causas de sua mãe ter ido embora. Ou seja, tua mãe procurava um paraíso aqui. Mas, se um pai de família, uma mãe, quiser transformar a família num paraíso, vai terminar transformando essa família num inferno, porque vai cobrar de todos a perfeição que eles não são capazes de dar, vai cobrar de todos uma felicidade que eles não são capazes de fornecer, e vai esperar da vida aquilo que Deus não prometeu. Deus prometeu que, sim, poderíamos ter, nessa vida, uma certa bem-aventurança e alegria, se tomássemos a nossa cruz e O seguíssemos, porém a felicidade virá no céu, plenamente. Para concluir, gostaria de citar a palavra de um psicólogo chamado Viktor Frankl. Ele diz com toda clareza que felicidade não é algo que se obtém quando se busca. Felicidade só se obtém quando abraçamos uma missão árdua, isso que nós cristão chamamos de cruz, uma tarefa árdua. Se você der sentido à vida nessa tarefa que é a busca de Deus, da santidade, você encontrará felicidade Nele, um pouco aqui na terra, mas plenamente no céu. - Padre di Sofia segurou o rapaz pela cabeça para encará-lo, como um pai a corrigir amorosamente o filho. - Não inveje os maus. Não se arrependa de ter feito o bem. A gente tem que se arrepender do pecado. Mas não se arrependa de sua pureza. Não se arrependa de sua educação católica. Jamais.

Daniel fechou os olhos fortemente, de modo a fazer correr as lágrimas, e, ao abri-los, encontrava-se de volta ao presente. A ambientação da cafeteria foi se esfarelando, até se ver na cabine da caminhonete. Ao olhar para fora, viu a pista de retorno para Elizabeth, o aeroporto indiferente, para o lado da janela do motorista. Esfregou os olhos, aturdido. Contornava a via de acesso ao embarque e desembarque doméstico, com a mente nas doces palavras salvadoras do melhor amigo. Daniel guardou o álbum de fotografias sob o banco, e trabalhou seu melhor sorriso para receber a namorada. Quando a abraçou, fê-lo com força, gratidão. Parker sentia a turbulência emocional dele; em vez de questioná-lo a respeito, entretanto, não quis cobrá-lo, e agiu com graciosidade e amor. Daniel planejara conversar sobre Aaron na mesma noite, mas algo nos olhos de Giro, ao lhe falar sobre sua pureza de alma, encorajava-o a fazer tudo para não perdê-la, de jeito nenhum.

Parker parecia cansada, mas feliz. A sombra dos olhos borrara, como se viesse de uma conturbada e interrompida noite de sono. Ao lado de Daniel, entretanto, restabelecia o equilíbrio, o namorado e a avó Gladys cumprindo o papel de porto seguro da sua vida. Daniel a canhoneava com perguntas sobre as filmagens; a avó e Cyrano os receberam no alpendre. O jantar fora servido. Após refrescar-se e vestir roupas limpas, sentou-se com a avó e o neto para lhes contar o desafio de se fazer um "filme de época". Ela revelou com orgulho que o diretor tinha lhe contado que ficara com um papel anteriormente escrito para uma estrela conhecida. Loach ficara tão satisfeito com os testes de Parker no decurso do processo de audição que preferira a "atriz dos filmes de arte" `a estrela de cinema. Terminaram de jantar, quando Daniel veio com uma simpática ideia. Ele as levaria para tomar sorvete downtown. Mesmo a avó, que só saia de casa `a noite a custa de insistência, apreciou a sugestão, perguntando logo se havia algum sabor de sorvete parecido à canela. Quando Parker se juntou a Gladys para lavar as louças, Daniel disse que ia apanhar um documento na caminhonete, e trouxe o álbum para o quarto, `as escondidas.

Sentaram-se numa das mesinhas sobre o espaço de calçada. Prestando atenção naquela turminha jovem socializando no epicentro das lanchonetes, ocupando os salões de game, Parker se recordou dos tempos durante os quais fizera o mesmo na companhia de Daniel, a irmã e os amigos, para os lados de Cape May, no fim dos anos 90. Daniel comentou, baixinho, provocando risos por parte das mulheres de sua vida: "Sinto-me velho". Ele tinha razão. Quando se tinha a idade da rapaziada, velhice é doença que acontece aos outros; jovens são como vampiros: imortais. Não há preocupações em se ferir sentimentos, amizades se fortalecem ou desmoronam sem muito drama, as noites são semelhantes, o mundo só conhece promessas em vias de se realizar. Mais `a frente na estrada, a curva que quase não se enxerga, mas que permanece ali, apenas a alguns anos no futuro, espera pelos desavisados para lhes apresentar o essencial. Lefty estava correta. Viver traduzia-se em perder camadas e mais camadas de superficialidade, até se poder chegar ao imprescindível. Naquela noite, porém, os jovens presentes `a sorveteria tinham todo o tempo do mundo.

"Senhor Legrand?", uma tímida voz feminina introduziu-se. Daniel se voltou e encontrou Olívia. Ele se levantou instantaneamente, com uma gargalhada espontânea de grata surpresa, e a trouxe para si com um abraço fraterno. A quase sempre tímida Olívia surpreendeu-o ainda mais, correspondendo ao abraço e exprimindo satisfação, sem reservas. Não custou a chamar pelos demais, sentados numa cafeteria estilo parisiense, do outro lado da rua da sorveteria. Daniel viu que havia cerca de dez garotos da East Side, amigos do avião da American Airlines. A galera fez uma festa ao dar pela presença de Legrand. Parker e Gladys entreolharam-se orgulhosamente. Apertos de mãos eram seguidos por abraços, gargalhadas e inside jokes familiares somente aos membros do seleto grupo. Daniel pediu licença para lhes apresentar a namorada, Parker, e os meninos se deram pelo fato de que a mulher era a atriz do filme que ele exibira em casa, num dos encontros, coisa de um semestre atrás. Parker recebeu os elogios com modéstia, e Daniel admirou a maneira como enrubesceu ao sabor da aclamação. Os grupos juntaram as mesas, e a conversa só foi ficando mais animada, principalmente ao girar em torno do resultado do concurso, ainda pendente, para o frangalho dos nervos dos concorrentes!

- Você está dormindo, querido? - Parker perguntou, num tom muito baixinho, preocupada em acordá-lo, caso positivo.
- Estou aqui, meu amor. - Ele se virou, para ficarem com os rostos coladinhos. - Foi uma excelente noite, não? Estou feliz por tê-la aqui.
- Você quer me dizer alguma coisa? - Aí está, Daniel pensou. Parker simplesmente conseguia antecipar seus movimentos.
- Eu estive em Cape May nessa semana, querida. Eu me saí bem, reencontrei algumas pessoas especiais, preenchi algumas lacunas. Não precisa mais fingir que só conheceu Giro agora. - Ele falou, e Parker arregalou os olhos, encantada. - Isso mesmo. Eu sei que ele é Padre Girolamo di Sofia, eu me lembro bem. - Massageando carinhosamente as mãos da atriz, pediu. - Podemos conversar sobre alguns pontos? Não hoje, amanhã. Pode ser?
- Você não precisa pedir nada, Danny. Sempre estarei do seu lado.
- Então fique mais pertinho de mim. - Abraçou-a afetuosamente.
- Assanhadinha, hein? Aquela menina? - Parker colocou suspeita, e Daniel a olhou admirado, sorridente. Parker apertou os olhos e com uma expressão de quem não se deixaria enganar: - Danny… Ela está apaixonada por você!
- Ora, o que é isso! Por favor! - Estalou os dedos, o que prontamente despertou Cyrano, dorminhoco sobre a escrivaninha ao lado do MacAir. - Cyrano, diga a Parker que ela está equivocada!
- Olhe o meu equívoco! - E começou a fazer cócegas no abdômen de Daniel, deixando-o gargalhar até dizer chega!

Não havia ocasião certa para a conversa séria. Daniel se limitaria a apresentar as evidências na mesa assim que melhor oportunidade se apresentasse. Era sábado, e os dois passeavam de mãos dadas pelas calçadas de downtown Elizabeth. Antes do meio-dia, Daniel perguntou a Parker se gostaria de visitar o mercado, onde costumava passar o intervalo entre os expedientes, no aeroporto. A atriz adorou a ideia, possivelmente atenta ao fato de que a passarela entre os blocos parecia o lugar apropriado para se conversar reservadamente. Havia frequentado a ponte há meses, quando o visitara pela primeira vez, agora, voltariam como namorados. O sol escaldante remetia a recordações da alta estação, quando a turma de carga mal tinha tempo de gozar o descanso do intervalo, pois se o fizesse, ao voltar, encontraria o dobro de serviço. Existia, porém, o prazer de se dar tudo de si, quase como um código de honra entre guerreiros que, ao fim do turno, apreciavam comparar machucados depois de um puxado dia de trabalho braçal honrado.

- Antes de qualquer coisa, você precisa se abrir comigo. - Ele a segurou sob o cotovelo assim que a sombra do toldo os albergou. - Não importa o que se deu, ou o que você disse para mim. Nós nos magoamos, mas, na época, éramos muito jovens, nem de longe imaginávamos a dor por vir. Então, preciso que seja honesta. Você confia em mim?
- Claro. - Respondeu prontamente, mas a trepidação na voz embargada não sinalizou firmeza.
- Pode confiar em mim. Pois entre duas pessoas que se conhecem há tantos anos, não há pecados que não possam ser perdoados. - Ele disse, a que Parker fechou os olhos com força. Daniel esperou um pouco para começar, ambos distraídos com o movimento do Northeast Corridor por alguns minutos. - Eu preciso que me fale tudo o que aconteceu entre você e Aaron Lang. Por favor, meu amor, não deixe de mencionar nada. Mesmo detalhes aparentemente inúteis podem me ajudar. Eu quero saber quando o envolvimento começou, o que aconteceu... Confie em mim.
- Eu terminei nosso namoro por causa do Aaron, sim. - Confessou, num suspiro. A dor da admissão tornou os outrora lindos traços uma máscara de sofrido constrangimento. - E briguei com Robyn por causa da mesma pessoa. Ela se sentiu traída. Eu e Aaron, nós... - Hesitava falar. Solícito e compreensivo, Daniel acariciou os cabelos dela. - Nós estávamos ficando na surdina, cuidadosos para que ninguém descobrisse. Eu e você ainda namorávamos, mas, em razão da faculdade, eu em NYU e você em Cape May, o distanciamento abriu uma oportunidade para a entrada de Aaron na minha vida.
- Conte-me mais sobre Robyn, durante e após a descoberta. - Daniel pediu, a voz baixa e sob controle.
- Robyn fazia medicina em Nova York. Nós brigamos, e ela voltou a Cape May. - O canto da boca contorceu-se de dor. Daniel a encorajou, ainda lhe afagando os cabelos. - Papai a enviou para a Inglaterra, para terminar os estudos em Oxford e só depois fazer a residência nos Estados Unidos.
- Muito bem, muito bem. - Passou a mão no queixo, intrigado e atento, e começou a enumerar os fatos nos dedos. - Você terminou o namoro no começo de 2002, e então foi morar com Aaron. O sr. Cowan mandou a filha para Oxford, para terminar Medicina. Robyn concluiu os estudos em 2002, mas não quis saber, num primeiro momento, de residência, e voltou aos Estados Unidos para fazer o concurso da Guarda Costeira, ocorrido no segundo semestre do mesmo ano. Aaron Lang se joga da Golden Gate dois anos depois. Fale-me de 2004.
- Morávamos em Georgetown. Robyn e eu não conversávamos. - Ela se apoiou no corrimão, pensativa, realmente vasculhando a mente. - Eu queria voltar a Cape May, mas a briga me mantinha cautelosa e afastada. A novidade havia acabado, Aaron não me fazia bem. Algum tempo antes de eu retornar, ele não parecia o mesmo espírito liberto e contestador de antes. Comportava-se sempre choroso e cabisbaixo. Foi em meados daquele ano em que Aaron deixou os restaurantes e voltou para Cape May. Eu fui em seu encalço, mas antes que conversássemos melhor, antes que me explicasse o que acontecera, partiu sem dar satisfações. Só soube que havia pulado da Golden Gate pelo obituário do "Cape May by the Bay".
- Eu creio que foi na mesma época na qual Mildred faleceu, e em questão de semanas, tentei me suicidar arremessando o carro contra a grade de proteção. Eu apenas... - Daniel vacilou. Parker o encarava com olhos muito abertos, verdadeiramente apavorados. - Eu apenas acho que não atentei contra minha vida. Padre di Sofia e eu conversamos a respeito. Ele insiste que eu era detentor de informações importantíssimas que teriam comprometido alguém, caso...
- Quem faria algo a você, Danny? - Ela custava a crer.
- Revisei a cronologia. - Daniel não a respondeu diretamente. - Eu me lembro de Robyn no prédio da sede da Guarda Costeira no fim de 2002, ou comecinho de 2003, portanto após ter concluído Medicina em Oxford e estar de volta à casa. Ela mencionava a remoção para o Escritório de Representação da Guarda Costeira em Washington, para ficar próxima a Aaron. Não faz sentido, certo? Por que Robyn faria questão de tê-lo ao alcance, quando você e Aaron moravam juntos?
- Ela queria reatar, de qualquer maneira. - Parker abaixou o rosto. Daniel sentia-se arrasado por incitá-la a rememorar assuntos tão complexos, e a tomou para si. - Eu acho que eles ficaram algumas vezes, mas então Robyn desistiu. Ela conheceu o marido, um juiz federal Allen Corliss. Exonerou-se do cargo da Guarda Costeira, tratou de se focar na residência em psiquiatria.
- Obrigado, querida. Desculpe por fazê-la passar por isso novamente. Você foi muito corajosa.
- Eu me sinto péssima pois temo que perca o respeito por mim. Você me compreende, não é? Eram outros tempos, e precisei me ver sozinha para valorizar o significado de nossa relação, e tudo o que fez por mim... Eu ainda quis procurá-lo, mas não queria magoar a Mildred. Eu a respeitava pela maneira que tomava conta de você e, portanto, consegui me contentar em eventualmente espiar suas páginas nas redes sociais.
- Tudo bem, tudo bem. - Apertou-a um pouco mais e a acalentou nos braços, como numa dança. - Já sei de tudo que preciso, querida. Apenas fique aqui comigo.

Após a tensão daquela primeira conversa, o dia transcorreria mais tranquilamente. Ao regressarem ao loteamento depois do almoço num rodízio de carnes, estavam harmoniosos numa nova, amistosa frequência. Sim, o semblante de Parker revelava, por vezes, tons melancólicos, somente perceptíveis por obra de esforço; entretanto, no frigir dos ovos, a conversa apenas sacramentara as bases sólidas do relacionamento. A atriz abrira mão de seus segredos, das escolhas que haviam exposto inseguranças muito humanas, e recebera suporte por parte do companheiro. Na manhã de domingo, num tom choroso, contou à mesa do café da manhã que realmente não precisava voltar tão cedo para Londres. A segunda e a terça-feira seriam reservadas `as tomadas externas da Sorbonne de Paris, recriada nas fachadas da cidade universitária de Oxford, cuja arquitetura neogótica valera sua escolha pelo diretor de fotografia, por promover o resgate de estilos passados, um revival das formas góticas medievais. Parker teria de se apresentar na chamada da manhã de quarta-feira, para o que seria um dia pitoresco e divertido: o pessoal da maquiagem a "envelheceria" para a ocasião, a comemoração do jubileu de Pasteur, quando tanto a atriz quanto Barclay Harrison deveriam parecer as idades dos personagens, ambos aos setenta anos. Daniel respondeu que não poderia pensar em nada melhor que tê-la presente por mais dois dias, mas lhe lembrou que o filme era o projeto mais interessante que cruzara seu caminho, e que não devia jogar com a sorte e deixar para apanhar o voo de volta para Londres em cima da hora. Ela concordou que sentia que o filme seria seu trabalho mais relevante.

Quando Daniel e Gladys foram deixá-la no aeroporto, no fim do dia, e a avó pediu licença para ir ao banheiro, Parker segurou as mãos do namorado e insistiu que fosse honesto e lhe garantisse que não tinha se ressentido face a tudo confidenciado acerca de Aaron. Daniel respondeu que admirava sua coragem e que jamais poderia julgá-la. "Tudo o que passamos apenas nos aperfeiçoou para que terminássemos juntos", garantiu. Avó e neto assistiram ao avião da British Airways correr pela mesma pista que há quase um ano transformara Daniel Legrand em herói. Gladys apertou a boca de um jeito a deixar uma covinha, e Daniel perguntou se se sentia bem. Ela fez que sim, mas afundou o rosto no seu ombro, visivelmente emocionada.

Com a partida, Daniel recuperava liberdade para agir. No mesmo domingo, foi Suntee quem ligou à noite para perguntar quais seriam os próximos passos. Daniel precisava voltar a Cape May o quanto antes para conversar com os pais de Aaron. Antes de se decidir, precisava ligar para Lefty, para consultar a opinião da senhora. Suntee pediu que não viajasse sem lhe contar, e Daniel comprometeu-se a avisá-lo assim que traçasse uma linha de ação. Ao conversar com Lefty, a senhora reiterou que não desvendariam a história inteira apenas pelo contado por Parker. Precisava, sim, procurar os pais de Aaron em Cape May. Quando resolvesse voltar, pediu para que fossem direto para sua casa no anexo do orfanato, em vez de um hotel, e Daniel agradeceu o apoio. Apesar de os sinais apontarem a Cape May, foi dormir sem saber ao certo o que faria a partir da segunda-feira.

"Eu gosto muito de você", Robyn falara, naquela manhã na praia, e desde então Daniel gostava de relembrá-la, como uma corrente de ar fresco a remetê-lo a emoções elevadas. Saudades da mãe? Fechava os olhos e evocava a cena de Robyn o chamando quando ela estava para lutar nos Jogos Escolares, para dizer que gostava muito dele; incerteza quanto ao concurso? Voltava à manhã onde tão surpreendente quanto inesperadamente a complicada irmã de Parker revelara sentimentos muito humanos, afirmando gratuitamente seu apreço por Daniel. Antes de perder parte das recordações, tanto as muito dolorosas quanto as que lhe faziam bem, como Robyn preparando-se a entrar na área da competição com um dos pés, o pé machucado, atado, dizendo tão pura e espontaneamente que gostava de sua pessoa, Robyn faria mais uma linda lembrança, para que mesmo tendo sido perdida, Daniel desse um jeito de retornar a uma certa época, quando o toque de Robyn lhe fizera tão bem que o mero eco lhe devolveria um sorriso ao rosto.

Eram as férias de julho de 1999, e Daniel se encontrava em Nova York para visitar a namorada. As irmãs Cowan tinham vencido uma longa distância desde os dias de Cape May: Parker ensaiava para uma temporada de "Cabaret", no Departamento de Teatro da NYU; Robyn, que fora uma campeã no colegial, agora liderava o time do caratê universitário. Ela começara defendendo o Lower Township quatro anos antes na praia, e agora as meninas da Medicina do NYU. Naquela época do ano, Nova York era um deslumbre. Diferente do que ocorria a outros lugares do mundo, a temperatura chegava a leituras altíssimas durante os dias, sempre mais longos. Amanhecia mais cedo, e o céu somente começava a escurecer lá pelas 21:00, época maravilhosa para se caminhar pela metrópole que não dormia. Todo dia prometia uma novidade. Daniel levara Parker para almoçar sanduíches de almôndega, sentados na relva do Central Park, quando assistiram a New York Philarmonic Orchestra realizar excepcionais rendições para os mais notórios temas do cinema, gratuitamente, um presente da Orquestra a Nova York, em comemoração pelo 04 de Julho. Ele também conseguira reservar uma mesa a tempo para passarem a noite da queima dos fogos de artifício sobre o rio Hudson, em clima de romance, num restaurante na cobertura de um arranha-céu na Avenida 12, entre as Ruas 20 & 60.

Daniel e Parker encontraram amigos da época do colégio, agora estudando na NYU. Hospedado num hotel simples e acolhedor acima de um bar de policiais de Lower Manhattan, durante as tardes, o casal passeava pelo SoHo, visitando galerias de arte e, em geral, vivendo a vida boêmia de artistas, para retornar somente à noite, para tomar caldo de galinha no quarto, com o rumor distante de vidros tilintando, copos e garrafas sobre o balcão, no bar do andar abaixo. Era o terceiro e último domingo de competições entre as meninas do caratê, e a diferença de escores pendia para uma ligeira vantagem a favor da Cornell, de Nova York. Robyn lutaria a final e só sua vitória reverteria a pontuação a favor da NYU. O lugar das competições era o mais neutro possível, pois a Columbia University, que perdera logo na fase introdutória, cedera suas acomodações para a final. Daniel e Parker chegaram atrasados ao Blue Gym. Haviam descido do táxi e tentado entrar pela 119th Street, mas o acesso só seria possível pelos portões do campus, na 116th Street. Jovens barulhentos surgiam em levas, em grande festa, subindo as escadas da saída da estação que parava na 116th com a Broadway, e desembocava nos portões do campus.

Ele e Parker tinham encontrado assentos próximos ao ringue. Antes do começo da competição, depois de vestir o protetor bucal, Robyn procurou a irmã e o cunhado. Ao vê-los, ergueu o punho em sinal de força. Ela teria olhado para o casal, mas o coração de Daniel lhe dizia que procurara especificamente seu rosto, e não necessariamente a irmã também. Daniel forçou um sorriso, que não saiu convincente por causa do nervosismo. Imediatamente, o sorriso se desfez, e só restou o olhar angustiado. Robyn fez um pequeno sorriso no canto dos lábios, como se pedisse para não se preocupar, manteria a outra menina sob controle. Parker apertou a mão do namorado, apreensiva, e Daniel trouxe a cabeça dela para o ombro. Ao arriscar uma olhada para trás, ficou pasmo com o massivo público presente.

A luta foi previsivelmente anticlimática e unilateral, Robyn mantendo a pobre oponente sob controle, do começo ao fim. A irmã de Parker era a melhor, e mesmo desafiada por outra competidora que tinha muito com que ameaçá-la, as expectativas foram por terra no primeiro chute bem desferido por Robyn, o qual desequilibrou a adversária ao apanhá-la no peito, atirando-a `as cordas, desastradamente. Não era questão de quem venceria, mas de quão definitivamente Robyn a derrotaria. Diferente do que ocorrera `as lutas anteriores, que iam ao limite e precisavam ser definidas pela diferença de escore, a agressividade imposta por Robyn ao ataque interromperia o combate muito antes que o tempo limite fosse alcançado. Para quem via, perdurava um estranho sentimento de inevitabilidade, Robyn consistente, fazendo estragos sem pressa e regularmente, a outra garota movida por resiliência quixotesca, suportando passivamente o castigo por trás da névoa que devia ser a confusão mental, talvez à espera da oportunidade de um golpe de sorte o qual jamais viria.

Após um tempo que pareceu mais longo do que efetivamente o foi, Robyn conseguiu encurralá-la num corner, e deixá-la aberta para impor as combinações para derrubá-la. Robyn era destra, mas atirava jabs com a mão esquerda, jabs velozes, quase impossíveis de bloqueio, por mais que a adversária erguesse os dois braços em frente ao rosto. A mão deslizava entre luvas e ia cortando supercílio e boca. Não eram murros fortes, mas o volume lançado causava terrível pressão. Reconhecendo o fim, Robyn preparou o abate. Deu alguns passos para trás e aliviou o ataque, para que a adversária preparasse alguma resposta inócua. Quando ela arriscou um chute patético que nem mesmo com força foi lançado, Robyn abaixou-se, esquivando-se, e a derrubou com um chute baixo na parte de trás do joelho, que a levou pesadamente ao chão. O árbitro viu o suficiente, e interrompeu a luta. A garota procurava desajeitadamente se levantar, engatinhando no chão. Robyn ergueu os braços em vitória, e os colegas da NYU invadiram para aclamá-la.

Daniel e Parker sofreram para entrar na área da competição para congratulá-la. O primeiro a parabenizá-la foi mesmo Aaron; depois, as pessoas que haviam se sentado mais próximas `a arena. Vendo-a tão distante e nos braços de estranhos, Daniel resignou-se com o fato de que dificilmente conversariam. Aconteceria uma cerimônia para a entrega das medalhas e, posteriormente, o anúncio do resultado final dos jogos, a NYU tendo conquistado o primeiro título na modalidade. Enquanto Parker e os demais alunos da NYU abarrotaram as galerias, Daniel tentou se conformar que não conseguiria a desejada privacidade para parabenizá-la, e se viu sozinho, sobre o ringue vazio, segurando as cordas, pensativo. Repentinamente, um assovio por trás das cortinas que levavam às escadas do túnel de serviço. Quando Daniel se voltou e a enxergou, fez menção de que saltaria as cordas para correr até a ela. Robyn, todavia, foi mais rápida, e correu de volta ao ringue. Ficaram somente os dois ali, isolados da festa cujo rumor chegava das galleys principais.

Robyn chegou com tal ímpeto que Daniel acreditou que o arrebataria; no último segundo, porém, foi como se recordasse da muralha invisível existente entre os dois. Ela anulou a marcha, até chegar a um palmo de sua face. Encararam-se por alguns segundos, ambos eletrizados e sem jeito, até Daniel segurar as mãos de Robyn e felicitá-la. Robyn esboçou um sorriso triste e cansado. Daniel levou as pontas dos dedos ao rosto dela, ao lado das marcas de expressões do canto da boca. Delicadamente, deslizou o polegar, do canto da boca para o nariz. Ela apreciou o contato, mas só foi entendê-lo quando viu o vermelho muito escuro nas pontas. Daniel procurara limpá-la do sangue da adversária que respingara na cara.

- Robyn, você foi excelente! Apenas não quero ver outra luta sua. Eu sofro muito assistindo! - Daniel brincou. Robyn deu uma risadinha sapeca.- Robyn, eu...
- Você quer me contar algo? - Ela perguntou, a antecipação queimando através dos olhos.
- Sim. - Daniel respirou fundo, meneando em afirmativo, lentamente, lutando contra o sentimento que o cingia num abraço cada vez pior, e disse baixinho. - Eu gosto muito de você.
- Eu sei - Ela segurou as mãos de Daniel. Mesmo com marcas de violência impressas no rosto, através de gotículas secas de sangue, Robyn parecia linda. Ele ousou erguer uma das mãos e, ao toque dos dedos de Legrand no pescoço muito comprido e sinuoso, esboçou um sorriso confortável, aliviada. Os rumores avolumaram-se, num eco que vinha da galley e sugeria voltar ao quadrilátero da competição. Não tinham mais tempo. - Haverá uma comemoração no lounge da Top of the Standard. De lá, a vista é fantástica, os drinques não param, a música excitante! Podemos conversar melhor no lounge?
- Eu estarei no lounge! - Confirmou presença, dando razões para a completude dalegria de Robyn.
- Preciso me trocar, então! Não posso aparecer suada e coberta de sangue! - Os dois riram. - O sangue da outra menina. - Robyn o beijou subitamente no lado do rosto. - Top of the Standard, 21:00.
- Estaremos lá.

Um tour-de-force arquitetônico, celebrado pelo arrojado, arriscado conceito de janelas "de chão ao teto" e a clientela classe A, o lounge do Top of the Standard franqueava vistas deslumbrantes do rio e das luzes de Manhattan, coadjuvantes a seu mágico interior, cuja capacidade atendia a uma elevada demanda, obra de ambientes tão flexíveis que a transição de um a outro dava-se suave e naturalmente. O bar caracterizava-se pela madeira, evidenciada no tampo do balcão e no revestimento de limestone em tons cinza e blue marine das paredes e pisos. O espaço ainda oferecia um espaço de convivência casual e descontraído. A divisória de vidro era revestida por um adesivo fosco com fotos de pontos turísticos dos mais pitorescos e celebrados lugares do mundo, separando-o da pista de dança com a leveza que setorizava ambientes sem descuidar do conforto. O lounge era servido por muitos sofás, de sete lugares cada, em espaços de linhas elegantes e simultaneamente clássicas. Os caixilhos de alumínio eram laminados por vidro temperado, oferecendo uma abertura visual através de um arco de 360°: devassava, consequentemente, a ilha inteira. Perene sobre a festa, a meia-luz charmosa deitada pelos lustres em cristais swarovski de cor fumê.

Daniel e Parker sentiram-se intimidados já ao se apresentarem para a conferência dos nomes na lista, na recepção. O bar e a pista haviam lotado; cachoeiras de champanhe incessantes avançavam em rios sobre cristais caros, naquele exclusivo e sofisticado mundo à parte, onde cigarros chiques, consumidos charmosamente, também permaneciam sempre acesos, e jovens herdeiros das maiores fortunas da América do Norte trocavam segredos e confabulavam o futuro. Robyn exalava seu usual charme e elegância, o cotovelo sobre o balcão do bar, uma piteira entre dedos, luvas marrons sentando muito bem com a escolha pelo casaco de couro. Os cabelos loiros haviam sido soltos, e caiam atraentes sobre uma parte do rosto apenas, tornando-a, de uma estranha forma, mais atraente, talvez pelos mesmos surreais motivos que seu nariz, quando ensanguentado imediatamente após a luta, combinara tão bem com o sorriso cansado, ao parabenizá-la pela vitória. Aaron encontrava-se ao lado da namorada, e uma roda se formara ao lado e ao redor do casal. Quando o garçom passou ao lado, Parker sacou duas taças, uma para si e outra para o namorado. Ela o segurou pela mão e o guiou através do salão a um lugar vago num dos sofás do lounge. Antes que o casal alcançasse o espaço, entretanto, algumas colegas da NYU a cumprimentaram e a arrebataram pelos braços, levando-a a outro espaço. Ela olhou por sobre os ombros, com um olhar surpreendido, e o risonho Daniel fez o sinal de OK – depois a "resgataria" das "comadres".

A noite começou embalada, e a energia só foi incrementando, não apenas por força das gargalhadas e conversas as quais quase sufocavam a música ambiente, mas do show que raptava o pessoal do lounge para a pista. Foi naquela noite na qual Daniel conheceu Bobbi Chapman. Ela era a melhor amiga de Robyn, pelo menos fora a história contada por Parker, com uma pontinha de ciúmes da atenção da irmã. Inglesa, Bobbi se tornara amiga de Robyn quando adolescentes. Curtiam os mesmos artistas, músicas e baladas. Todos os anos, nas férias de julho, quando viajava para a Europa, passava ao menos duas semanas em Londres para visitá-la e aproveitar o verão londrino. Em 1999, aos vinte anos, Bobbi começava a carreira artística com a formação original do grupo Takin’ my Time, e naquela noite, as garotas apresentavam-se no palco. À sua maneira, a aparência aristocrática e britânica impunha à estrela uma falsa fragilidade: a impressão não refletia sua verdadeira natureza. Ela era muito alva, seus cabelos loiros sempre mantidos curtinhos e repicados, e olhos muito expressivos e grandes, imaginem uma Kylie Minogue no início da carreira.

Canhões de luz giravam com tanta velocidade e em tantas direções que uma parafernália de cores ilustrava o salão, lâmpadas rotativas de led transformando o espaço num estrelado universo em constante transformação ao alcance de olhos e mãos. Daniel procurava reencontrar a namorada. As menina do Takin’ my Time davam novas rendições a sucessos da década de 90, que chegava ao fim, levando consigo a inocência de uma era. Ele se afastava da pista, o palco cada vez mais longe, quando sentiu uma mão sequestrando-o pelos pulsos e o puxando para o vão entre as esquadrias das janelas do corredor antes do hall de elevadores. Ali, encostado às lâminas de vidro, seria impossível não se impressionar com a altura. Bobbi interpretava uma música do grupo The Deele, "Two Occasions", num ritmo mais lento e romântico. Daquele instante para sempre, "Two Occasions" seria a música que até ao fim da vida Daniel seria remetido aos momentos com Robyn. Como o espaço da passagem anterior ao hall era limitado, Robyn e Daniel ficaram praticamente colados, peito a peito. A sensação de Robyn contra o peito era de uma deleitosa intimidade. Nada se disseram, mas Daniel só precisava do sorriso triste dela. Ela pareceu hesitar, ambos sentindo nas maçãs dos rostos suas respirações quentes e tensas. Finalmente, Robyn subiu a mão que deslizara anteriormente à parte baixa das costas de Legrand para trás da nuca dele, e o puxou violentamente para beijá-lo. Ele não pensava no risco envolvido, nas consequências do segredo. Apenas desejou que Robyn tivesse a boca conectada à sua pelo piscar de olhos da concepção ao fim do universo. Quando ela terminou, novamente lhe deu o sorriso entristecido de alguém que se conformara em viver um amor secretamente. E, tão brevemente quanto como o raptara, ela partiu, juntando-se ao fluxo natural a desembocar no espaço grande da pista, longe do hall estreito. Ao longe, luzes vermelhas e verdes dançavam pelo palco e acima. À medida que Daniel foi despertando de suas recordações, era como se pilhas de um gravador, quase gastas, reduzissem a velocidade da reprodução a ponto de as vozes se embolarem e encerrarem.

Por volta das 10:00, Suntee deixava a casa para jogar basquete com os amigos na quadra do quarteirão. Sorridente e com a cabeça cheia de planos, só foi dar pela presença de Daniel, encostado à caminhonete, ao passar bem ao lado dele na calçada. Suntee abriu um sorriso, mas viu que as linhas retesadas no rosto do amigo apenas se apertaram. O garoto percebeu que o negócio era sério.

- Regressarei para Cape May no começo da tarde. - Sumarizou. - Eu tenho uma pista e gostaria de segui-la. Os pais de Aaron Lang. Se não puder ir, eu compreenderei.
- Meu patrão... - Pousou a mão sobre os ombros de Legrand. - Não há favores suficientes no mundo para recompensá-lo por ter salvado nossas vidas. Conte comigo.
- Preciso sacar dinheiro, pagar umas contas... Terei uma manhã muito compromissada em Elizabeth. Posso pegá-lo neste mesmo ponto, no começo da tarde?
- Você me encontrará na calçada. - Deixou-o aliviado com seu suporte incondicional. - Resolva as pendências. Eu mesmo tenho assuntos a acertar. Por exemplo, derrotar os filhos da puta na quadra de basquete, antes de partir!
- Obrigado, amigo. - Daniel o abraçou, e concluiu o encontro com um soco encorajador nas costas. - Até as 13:00.

Daniel não precisou se explicar extensamente à Gladys. Ela sabia o nome do jogo; o neto não pararia até encontrar a verdade. Gladys apenas perguntou a Daniel o que deveria dizer a Parker quando a namorada ligasse. Confuso, raciocinando enquanto dobrava as roupas para guardá-las na mala, respondeu: "Não sei, vovó. A senhora pode dizer é verdade, seria melhor". Gladys sugeriu que convidasse o amigo para o almoço, e Daniel achou uma simpática ideia. Ele o contatou por celular; Suntee adorou o convite, e quando os ponteiros acusavam 11:00, Daniel circulava com a caminhonete pela pista da quadra esportiva do bairro para apanhá-lo a tempo de levá-lo para comer. Enquanto Gladys conversava com o garoto num animado clima de expectativa, servindo pratos muito gostosos que o adolescente jamais provara, Daniel escrevia um e-mail para Parker, para apaziguar a saudade e esticar um pouco a folga, ao fim da qual a atriz certamente o procuraria e ligaria para Elizabeth. Depois do almoço, Daniel levou Suntee para a casa do adolescente, para que ele tomasse banho, se trocasse e juntasse algumas camisas e calças, em preparação para apanharem a estrada à tarde.

Não houve tempo para conversar com Giro. Daniel deixaria as explicações para mais tarde. A sensação de aventura sobre o escaldante calor do asfalto era mais forte do que o vigor com o qual o sol subia ao zênite. Suntee perguntou se ficariam na casa de Lefty; Daniel achou melhor que passassem os dois primeiros dias no velho albergue. A semana estava apenas começando, então quanto antes encontrassem os pais de Aaron, mais rapidamente concluiriam o objetivo da missão. Ao estacionarem na frente do familiar albergue e descerem, o cheirinho de sais do mar, combinado com a força do sol, determinou como a dupla passaria a primeira tarde na cidadezinha costeira: uma vez acomodados, vestiram roupas mais leves, e desceram para a praia.

Às 16:00, quando o sol começava a perder momentum, Daniel e Suntee visitaram o orfanato. Lefty não esperava vê-los tão cedo; ela não conteve a alegria do reencontro. A senhora idosa os cobriu de palavrões quando Daniel lhe contou que tinham voltado ao albergue, e ordenou que pegassem logo as coisas para se hospedar em casa. Daniel conseguiu acalmar a fera, prometendo que seria a primeira coisa a fazer na manhã seguinte. Lefty estava orientando o conserto do telhado do gatil, Orlando sobre o cavalete com martelo e pregos, quando a dupla chegou, e os rapazes se voluntariaram a ajudá-lo. Sob um sol enfraquecido, o trio se divertiu virando latinhas de cerveja geladas e trabalhando duro ao lado de Orlando para reparar o telhado. Lefty instalara cordas descendo pelas treliças, para evitar quedas, e armara tábuas sob as telhas, para que não perdessem o equilíbrio. Enquanto Suntee o ajudava com a infiltração e a goteira, Daniel reforçava o beiral, colocando o forro para forçar um contraponto ao vento que podia desestabilizar as telhas.

Findo o trabalho, os três homens se sentaram sobre o telhado para finalizarem o pack de cerveja. Exaustos, a sensação de dever cumprido era sensacional. Daniel brincou e afirmou que considerava voluntariar-se a cuidar do orfanato de Padre Girolamo. Suntee o apoiou e se ofereceu também. Lefty determinou que o pedido da dupla fora aceito, e a partir daquela data não sairiam mais do lugar. Eles riam e riam. Após aquelas primeiras horas descontraídas, Daniel e Suntee quiseram conversar com Lefty, focando-se nas razões da viagem. Era fácil alcançar a casa dos Lang, a primeira na subida ao cinturão das mansões acima das dunas. Lefty ofereceu-se a ir junto. Daniel agradeceu, mas explicou que sentia que precisava realizar a tarefa sozinho. Até Daniel subir na caminhonete, Suntee o acompanhou e trocou algumas palavras com o amigo, os braços apoiados no espaço da janela de motorista.

Antes de subir para as dunas, Daniel desceu para downtown Cape May, e fez uma parada numa floricultura para comprar um buquê muito bonito. Ao chegar à envidraçada mansão de dois terraços voltados ao oceano, já eram 18:00. Daniel estacionou do outro lado da calçada, respirando fundo antes de descer com as rosas. Sorriu ao constatar que se sentia um jovem a se apresentar aos pais da garota a quem levaria ao cinema ou ao baile. Uma secretária de uniforme azul o atendeu no portão. Tendo se identificado como um antigo amigo de colégio de Aaron Lang, a jovem pediu que aguardasse um pouco. Ele procurava se assegurar de que sairia daquele encontro com a primeira importante pista desde a volta a Cape May. A secretária voltou com um cordial sorriso, e empurrou o portão, convidando-o a entrar.

Os pais de Aaron se chamavam Cheryl & Adam Lang. Sob bastantes aspectos, a família de Aaron não diferia tanto dos Cowan; representantes da nata de Cape May, figuras socialmente relevantes, importantes. Cheryl & Gail frequentavam os mesmos círculos. Adam fizera a ponte de safena de Bill alguns anos antes. Daniel foi conduzido pela secretária até ao espaçoso terraço na cobertura cuja vista dava para a linha do Atlântico. A paisagem gozava de excelente amplitude por causa da planta em "L", a qual impunha efeito contínuo e ampliado quando aliada aos planos de vidro usados como janelas de correr. O terraço era composta por duas alas de paredes de vidros, oferecendo uma incomparável panorâmica do litoral. Predominância de móveis de madeira de lei e a transparência de portas e janelas proporcionavam integração completa ao extraordinário cenário das dunas.

Cheryl e Adam tomavam café à beira da piscina. Assim que a secretária conduziu o convidado ao espaço, deixaram suas cadeiras para recebê-lo bem. Daniel entregou à senhora o buquê de rosas e agradeceu a gentileza da recepção. Cheryl puxou uma cadeira para o visitante, e Daniel sentou-se. Ela cheirou as rosas e o agradeceu novamente, elogiando-o pelo bom gosto. Daniel ponderou se demonstrava nervosismo, mas soube que dentro de cinco minutos a novidade teria passado, e teriam como se concentrar no impasse. Cheryl serviu-lhe uma xícara de café com leite.

- Suponho que os senhores se recordem de mim? - Daniel começou.
- Sim, e não exclusivamente por causa de sua ação no aeroporto em Jersey. - Cheryl respondeu, com um sereno e conhecedor sorriso. - Fazia alguns anos que não tínhamos ideia do que acontecera a você e sua avó, mas então assistimos às reportagens sobre o aeroporto.
- Faz tempo que venho ensaiando um retorno. Reaproximei-me da Lefty, mãe adotiva de uma ex-namorada da juventude em Cape May. Descobri que minha relação com Padre Girolamo di Sofia remontava ao tempo durante o qual ensinou Matemática no extinto Lower Township. - Provou do café com leite, particularmente saboroso graças à canela. Pareceu calcular o próximo passo. Adam foi mais rápido.
- Tudo isso... Eu me refiro ao desejo de saber... Começou quando a filha dos Cowan te procurou, certo?
- Parker, correto. Imaginem a minha surpresa ao despertar uma manhã e me deparar com a atriz de "Lady Chatterley" na porta. - Os pais de Aaron viram graça no inusitado, e sorriram.
- No princípio, evidentemente, ela não me contou a verdade. Imaginei que tinha parentes no voo da American Airlines. Aos poucos, foi soltando pistas. Depois de combinadas, as pistas me mostraram muito claramente que eu apenas não me recordava. Voltamos a nos envolver romanticamente.
- Mas então resolveu investigar... - Cheryl capitulou a introdução, chegando ao cerne.
- Não ficou só na investigação. O peso do ocorrido virou lembranças, e recordações passaram a vir quando eu menos esperava. Assim sendo, o que parecia ter sido uma doce, inocente história de amor entre dois jovens de Cape May virou um intrincado mistério. - Atento para jamais soar apreensivo, Daniel acabou entregando certa urgência ao se justificar. - Hesitei muito em procurá-los, mas Lefty me convenceu. Eu vou ser franco: eu acho que o que ocorreu comigo em 2004, numa estrada não muito longe daqui, foi uma tentativa de homicídio. Giro e Lefty concordam que eu não teria enfiado o carro contra a grade de proteção. Eu não saberia lhes explicar por quê, mas imagino que minha história tenha cruzado com as de Parker, Robyn e Aaron, especialmente em 2004. Estive na diner onde passei momentos importantes da juventude. Tive uma recordação muito cristalina de Aaron, às lágrimas, pedindo-me desculpas por algo que...
- Sim, sim. - Cheryl confirmou, num sopro triste. Adam a envolveu com um dos braços, uma tentativa patente de consolo. - Eu e Aaron conversamos muito a respeito de você nos meses que antecederam o suicídio. Ele falava sobre remorso. Acreditava ser alvo do seu ódio por ter tirado a Parker de...
- Oh, não. - Daniel protestou. - Jamais o responsabilizaria. Parker faz as próprias escolhas, senhora. Não foi Aaron quem as fez por Parker, correto?
- Claro, mas mesmo assim ele se sentia culpado por tê-la "tirado" de ti. Nós conversávamos por telefone, e Aaron falava sobre voltar a Cape May.
- Ele estava em Washington, correto? Administrando restaurantes?
- Isso, e vivendo com Parker. - Cheryl complementou. - Ele retornou em meados de 2004.
- Próximo à época da confusão na pista. - Anotou em voz alta, mais para si.
- Não parecia bem. Inquieto, choroso. - Uma sombra atravessou o pesado semblante de Cheryl, lembranças amargas as quais não revisitava há algum tempo. - Insistia para que ele me contasse o que acontecera em Washington. Vivia metido no quarto. Depois de uma semana, comprou uma passagem para São Francisco e se despediu. - Lançou um olhar desesperado para o mais comedido Adam, e desatou a chorar. Daniel se sentiu péssimo.
- Se você diz se recordar de uma conversa com Aaron, e nas suas lembranças ele parecia atormentado, provavelmente estamos falando do mesmo período. - O médico afirmou.
- Aaron não me falava extensamente sobre os problemas. Eu sabia que Robyn o seguira para Washington, e que tinham se encontrado secretamente. - A mãe revelou.
- A senhora saberia me dizer se Robyn e Aaron continuaram a se ver secretamente por muito tempo, enquanto ele morava com Parker?
- Aaron e Robyn se encontravam às escuras desde 2003. Ela morava em Georgetown, por causa do trabalho na...
- Isso. - Concordou com um aceno de cabeça. - Ela havia sido transferida para o Escritório de Representação da Guarda Costeira. Foi um artifício para manter Aaron sob sua influência.
- Daniel... Você não guarda rancores de meu filho, correto? - Indagou a senhora, olhos desesperados, inseguros, que não se fixavam, deslizantes como peixes ensaboados.
- Não. - Estendeu a mão por sobre a mesa para lhe apertar o antebraço. - E espero chegar ao fundo da questão, sra. Lang. Seu filho foi tão vítima quanto a minha pessoa.

Lefty assistia ao jornal da tarde com Suntee e Orlando, na sala de estar, com xícaras e pratinhos em mãos. Eles tomavam sopa de carne e molhavam pedacinhos de pães frescos nas canecas. Quando bateu os pés no tapete do alpendre antes de entrar, os amigos lançaram perguntas com seus olhares intrigados. Daniel se sentou de supetão no sofá. Lefty foi buscar sopa e xícara de café com leite. Ele provou a comida, enquanto os três lhe assistiam, aguardando com tensão que se pronunciasse. Daniel acomodou xícara e caneca num canto da mesinha de vidro e descreveu o encontro:

- Os pais pensam exatamente como Lefty e Padre di Sofia. A mãe, a senhora Lang, parece convencida de que Aaron morreu guardando segredo. Fala sobre como voltou transtornado de Washington. - Mais um gole de café, para retomar. - Eis a situação: Aaron está morto, Parker me contou tudo o que sabia, e vocês sabem que Robyn não vai me ajudar.
- Te ajudar? - Lefty precisou repetir, incrédula. - É mais fácil Robyn mandar te matar, cara.
- Preciso pensar, preciso pensar. - Repetiu, como uma oração.
- Dê tempo ao tempo. Fique em Cape May por mais alguns dias. Talvez, não encontre respostas, mas as perguntas certas a fazer. - Lefty descreveu brilhantemente.
- Agora deixem-me comer. - Ele disse, após um longo suspiro. - Depois dessa, vamos voltar para o hotel, Suntee. Precisamos de uma boa noite de sono.
- Amanhã cedinho, o senhor já sabe... - A senhora indicou a Daniel. - Quite a diária daquele albergue e trate de trazer suas coisas para cá. Vocês vão ficar aqui!

Uh-hum, Daniel assentiu, voltando à deliciosa, encorpada sopa. Na televisão, uma matéria sobre a vindoura estação de férias, a expectativa do setor hoteleiro, a estratégia para acomodar a demanda daquele ano. Alunos de vários colégios da cidade falavam sobre as atrações da estação. Com dolorosa sapiência, Daniel constatou que uma nova geração tomara conta. Por mais que, em recordações, todo aquele período de sua vida parecesse tão palpitante – as visitas a Parker em Nova York, os jovens que assumiam seus cargos, tomando as rédeas da Guarda Costeira após tantos anos sem concurso, os jogos de verão na praia – agora, em 2010, Parker, Robyn e Daniel seriam tomados ou como irmãos mais velhos ou jovens pais dos meninos. Havia benefícios, entretanto, em se ficar mais velho; o reajuste da vista lhes permitia enxergar além das aparências, talvez, como quão especial todo o período mágico fora, fato constatável agora que ficava gradualmente mais afastado na cronologia.

No quarto do hotel, deitados em suas respectivas camas, Daniel e Suntee assistiam ao filme da tela de sucessos, ao fim da noite. Em algum momento, Suntee citou, do nada, o nome de Dieudonné. O jovem tinha razão; seria importante contar com o suporte do agente, apenas não sabia como contatá-lo. Eles já tinham preparado as mochilas para partir na manhã seguinte, e Daniel via-se esperando o insight que lhe traria as perguntas necessárias, quando as novidades simplesmente caíram sobre seu colo. A recepcionista ligou para o quarto e Suntee atendeu. A sra. Lang havia ligado para o hotel desejando conversar com Daniel.

- Olá, Sra. Lang, obrigado por me ligar.
- Não sei se irá ajudá-lo, mas certamente robustecerá um perfil de Aaron na época em que morreu. - Ela introduziu, cautelosamente refreando os ânimos. Mal sabia que sua observação seria valiosíssima. - Aaron voltou para Cape May muito doente. Vazava-se em diarreia, e quando se despediu para São Francisco, parecia muito doente. Aaron chegou a dar entrada no hospital em Cape May. Não nos quis por perto. Sei que fez exames de rotina, mas foi liberado alguns dias depois.
- O hospital local de Cape May, não é? Agradeço a informação, senhora, sem dúvida sua história coloca as coisas sob perspectiva. - Coçou o queixo, sem saber ao certo sobre quais perspectivas falava.

Daniel desligou revigorado. Suntee ficou na beira da cama, aguardando que lhe contasse as boas novas. Antes de fazê-lo, entretanto, Daniel ligou para Giro. Após um par de minutos de conversa, despediram-se, Giro tendo prometido que partiria para Cape May o quanto antes, e os encontraria na casa de Lefty. Daniel foi enxaguar o rosto no banheiro. Ao retornar ao quarto, desligou a televisão e os dois amigos tiveram uma séria conversa. Repassou as informações da Sra. Lang sobre o estado de saúde do rapaz, e disse que Aaron havia passado um período internado no hospital de Cape May. Antes que vocalizasse a segunda parte, foi Suntee quem mencionou que os arquivos deviam guardar algum registro de sua estadia, mas que jamais teriam acesso à pasta. Daniel guardava, porém, um trunfo.

Quando ele apareceu no consultório de Max, na manhã seguinte, não foi de todo uma surpresa para o infectologista. Max sabia que Daniel seguiria pistas, o problema sendo que, até há pouco, as mesmas levavam a terrenos firmes, apenas a outras pistas as quais o afundavam num abismo de escuridão cujo fundo parecia longe de terminar. Max conservara as lembranças de Daniel num bom lugar, jamais desaprendera a lhe querer bem. Daniel se assomou à porta do escritório; entretanto, foi como se o fizesse na porta da sala, em 1995, procurando ajuda. Ele deixou o telefonema que tinha em mãos para mais tarde, e recebeu o amigo com muito carinho e atenção. Sabia que a razão da visita era difícil, e fechou a porta de maneira a terem tempo e privacidade. Daniel sondou admirado as paredes, quadros de diplomas bem distribuídos por trás da cadeira. Sobre a mesa, elegantes porta-retratos sinalizando igual sucesso na vida familiar. Max perguntou a Daniel sobre Gladys. Ao conjurar imagens da avó preparando a mesa para o café da manhã, Legrand sentiu-se negligente, uma urgência a voltar para casa. Num primeiro instante, o papo fluiu leve e bem-humorado, Daniel divertindo-se ao ouvir o cara que um dia se sentara ao lado na sala de aula, descrevendo bisbilhotices da vida em família, preocupações de pai, viagens a Disney, o primeiro namorado da filha. A conversa era impelida pela naturalidade, até seu curso tender a reminiscências mais distantes; foi quando o semblante de Max pareceu mais apreensivo, ambos cientes de que se avizinhavam do motivo que o levara ali.

- Aaron Lang. - Daniel proferiu o nome. - Pode até ser que eu tenha deixado Elizabeth por razões causadas por Robyn, Parker e Mildred, mas Aaron certamente foi um personagem dessa história, ao menos àquela altura. Foi em 2004, quando voltou de Washington para Cape May.
- Sim. - Disse, firmemente.
- Estava doente. Conversei com a Sra. Lang. Deu entrada neste mesmo hospital e permaneceu por aproximadamente uma semana até receber alta. Depois de voltar para casa, comprou um bilhete para São Francisco, e sabemos o resto da história. - Daniel não conseguia proferir o pedido, todavia sabia que Max tinha como pressenti-lo. Por fim, sumarizou. - Eu preciso saber qual foi o problema do rapaz. Preciso da pasta referente à passagem dele naquele verão de 2004. Não tenho acesso aos arquivos. Preciso de você, Max.
- Tudo bem, tudo bem... - Levou a mão à testa, como que apanhado por um golpe forte. - Olhe, eu não compreendo. Como fichas médicas poderiam...
- Registros desvendariam sua confusão mental. Eu acho que há um vínculo entre a condição de Aaron e seja lá o que for que tenha acontecido em Washington.
- Eu teria acesso aos arquivos antigos, amigo, mas... - Hesitava em desapontá-lo. Daniel não tinha como julgá-lo.
- Apenas não sabe se seria ético. - Completou a lacuna, precisamente. Max encarou-o grato por tê-lo poupado de se explicar. Legrand continuou. - Eu jamais pediria algo semelhante se tivesse escolha. Não sei para quem mais pedir ajuda, Max. Eu não corri atrás do problema, o problema me agarrou em Elizabeth e me arrastou a Cape May. Estou envolvido até o pescoço, e não posso mais parar até saber! - Frisou a última parte.
- Confia em mim? - Devolveu, com olhos impressionados. Daniel fez que sim. - Pois escutará de mim no decorrer da semana.

Daniel voltou para a casa de Lefty com ótimas notícias. Ficou feliz ao encontrar Padre di Sofia e Dieudonné, reunidos a Lefty e Suntee, à mesa da cozinha. Ele explicou que Max não lhe dera certeza, porém sentia que a consideração à sua pessoa certamente pesaria a favor. O quarteto abriu lugar para a vinda de Legrand à mesa. Giro tinha uma porção de ideias, mas escolheu esperar a resposta de Max. Por dependerem da resposta do infectologista, resolveram acalmar-se, sacando de suas mentes, por um momento, a problemática, a qual, sem o apoio de Max, só ofereceria ilações confusas. Daniel ligou para Elizabeth, contou à avó que Padre di Sofia se encontrava em Cape May e lhe forneceu o telefone de Lefty, sempre que a avó precisasse encontrá-lo e seu celular estivesse fora de área. Eram 19:00, e Max não havia voltado para casa. Imaginava que a esposa não custaria a ligar para o consultório para saber se estava bem. Dito e feito, a ligação veio, mesmo com um pouquinho de atraso. Desempenhou bem o papel de médico assoberbado por demandas de um dia cansativo, com uma desculpa tipicamente boba e crível, uma internação que lhe exigira o preenchimento de papéis, a usual burocracia. A esposa terminou a ligação declarando o quanto o amava, e o médico sorriu ao imaginar-se fazendo amor com ela, logo mais. Fumegou, emocionalmente exaurido, metido num grave dilema. Ainda não se decidira, porém se flagrou vasculhando as gavetas, nos arquivos. Não foi nada difícil chegar ao nome de Aaron. Conforme Daniel sugerira, de fato, o rapaz fizera uma passagem de uma semana para descanso e exames, e a ficha encontrava-se nas suas mãos. Não entendeu por que os pais de Aaron não haviam buscado as informações anteriormente, mas compreendeu que não teria adiantado: o filho saltara da Golden Gate, talvez fosse tudo de que precisavam saber. Às 21:00, Max permanecia no gabinete, tendo analisado cuidadosamente os resultados dos exames os quais traçavam um curioso quadro sintomático. A esposa telefonou uma segunda vez, perguntando se gostaria que fosse pegá-lo, pois entardecera. Max disse que não se preocupasse, pois o bondinho ainda daria muitas voltas ao redor de Cape May até a última corrida da noite.

Em Nova York, Robyn era outra que adiara a volta para casa, mas Allen acostumara-se às noites da psiquiatra no Monte Sinai. Os motivos a manterem-na perante o monitor não se deviam ao trabalho. Ela lia resenhas de filmes de horror, de um blog mantido por um tal "Cecil Thornton". Vinha revisitando o blog, mesmo desatualizado, praticamente estagnado desde julho de 2004 quando o site deixara de ser alimentado. Entrava lá no mínimo uma vez ao dia, todos os dias, quase memorizara certos parágrafos escritos sobre "Hellraiser", "Hellraiser 2", mas não conseguia parar de voltar aos textos. Vez ou outra, um sorrisinho tímido brotava de seus lábios, cortesia da doçura que mesmo em críticas sobre obras de horror o autor conseguia impor aos textos. O celular chamou, mas Robyn não tirou os olhos da tela, tateando o aparelho e o trazendo ao ouvido.

- Oh, Max! - Exclamou, verdadeiramente apanhada. - Desculpe-me, esperava por uma ligação de Allen.
- Robyn, não quis assustá-la, desculpe. - A voz de Max soou tensa, contida por trás de trepidante cavalheirismo. - Você pode conversar?
- Agora sim. - Ela fechou o blog e girou na cadeira, de modo a ficar de frente `a impressionante vista do escritório no último andar da ala de Psiquiatria. - Daniel Legrand tem feito perguntas?
- Queria a ficha de Aaron. Eu acabei de ler o prontuário. Você sabia que Aaron adoecera na semana anterior ao suicídio?
- Foi há quase dez anos. - Robyn mascarou a frustração. Daniel avançava com as peças no tabuleiro. Ela se sentiu ameaçada, mas não podia soar insegura. - Os pais dele estão vivos e têm suas carreiras. Qual o sentido em tocar nesse assunto?
- Aaron tinha relações contigo, e com Parker. As coisas no prontuário… Os sintomas. - Não sabia como contornar o delicado problema. - Parker pode estar seriamente comprometida.
- Max, por favor. - A fachada de segurança foi abaixo. Cheia de tristeza, Robyn lhe deu a oportunidade de recuar, ameaçando-o de forma delicada, mas determinante. - Se procurar no prontuário, não encontrará em momento algum o termo "HIV". Não se envolva. Não é a sua briga. Daniel quer se contrapor a mim, e vai perder. Por favor, não se envolva.
- Sim, não encontrei o nome "HIV", mas os sintomas! - Folheava as páginas amareladas, encucado, tentando entender como não havia um só laudo de histograma na ficha. - Oh, Deus... Você não quer saber de prontuário algum pois já sabe de tudo! Sabia antes de Aaron adoecer, não? - Observou, cheio de horror. - Você passou o vírus para ele!
- Por favor. - Ela repetiu, com a voz grave e seriíssima. - Daniel é uma pessoa confusa. Ele não merece crédito, Max. A palavra de um homem tão vulnerável e atormentado não vale muita coisa contra a minha. Surpreende-me, você tê-lo em tanta estima. Você quer afundar junto a Daniel Legrand, atirar sua vida no lixo por causa dele?
- Não posso deixar de ajudá-lo. - Lamentou, confuso porém obstinado. - Não depois do que li. O quadro sintomatológico… Bate com os primeiros sintomas de infecção de um vírus. Um vírus como o da AIDS.
- Você não imagina as implicações do que fala, Max. Você não vai querer me fazer de inimiga. Eu já aceitei que Daniel não vai parar, e eu sinto muito pois ele vai sofrer bastante. Farei o mesmo a você, se continuar. - Prometeu, com muito pesar, mas com firmeza de quem sabia exatamente onde queria chegar e não perdia tempo com ameaças vazias: ela ia direto ao ponto, e não prometia uma violência a qual não cumpriria. 

"Uma pena, uma pena", Robyn lamentou, com o olhar cansado voltado para o cruzamento de duas avenidas para a lateral do edifício do Monte Sinai, sempre movimentadas, charmosas, a vida a qual Daniel deixara de viver, o futuro arrancado de suas mãos, por causa dela. Ela não voltaria ao marido imediatamente. Enquanto aguardava o táxi tomando um cafezinho no lobby, ligou para casa e conversou com Allen. Perguntou como estavam as crianças; assistiam a um DVD com o pai na sala, à beira da lareira. Era uma noite fresca, Robyn reconheceu ao deixar o hospital pela porta giratória para apanhar o táxi. "Leve-me para a 230 Fifth", ordenou, ao entrar. Robyn desejava perspectiva, e foi justamente o que encontrou no rooftop do bar da 230 Fifth, a mais magnânima vista de Manhattan. Depois de receber o drinque, fez caminho por entre outros frequentadores impecavelmente vestidos, e chegou ao opulento garden, o qual dava para uma linda vista do Empire State. Ela se encostou ao parapeito, e a cabeça lhe deu vertigens ao buscar pela 26th com a 27th Street. Robyn parecia estonteante - sempre o era - porém, naquela noite, o único acessório a vesti-la melhor que o blazer slim executivo era a tristeza que a fazia parecer uma vulnerável jovem médica `a beira das lágrimas e à espera de seu salvador. Robyn sentou-se num dos bancos completamente vagos. A fachada do Empire State, ao menos a borda, recebia das lâmpadas um fulgor muito avermelhado, enquanto mais para o centro, a tendência era a diluição de um aquoso verde neon. O homem moreno de poderosa presença que se sentou ao lado não devia ter muitos anos a mais que os 31 de Robyn. A "sombra" no rosto denunciava desleixo com lâminas de barbear, mas parecia muito elegante, vestia-se bem, movia-se com firmeza, um "macho alfa". Robyn abriu o sorriso, sinalizando disponibilidade e interesse.

Tomou mais alguns drinques com Martos, o sedutor. Embora cuidasse para se manter espirituosa, simpática e interessante, sentia-se demasiadamente cansada, a ponto de preferir avançar os sinais para acabarem atracados na cama o mais rápido possível. Mal haviam entrado no quarto de Martos, na 230 Fifth, o conquistador tentava o cartão no leitor ótico enquanto Robyn segurava e apertava seu pau cada vez mais duro. Enquanto saltava desastradamente sobre um só pé para tirar os sapatos, meias e paletó, Robyn aliviava-se chutando os próprios saltos num canto, tirando-os do caminho com a delicadeza de uma mulher que se habituara a encontros perigosos. Martos não custou a se despir, jogando-se de costas `a cama, cruzando os braços, `a espera da amante. Robyn soltou os cabelos. Bocejando, procurou o banheiro, dizendo que logo se juntaria a ele na cama. Ela desafivelou o sutiã e deixou a calcinha deslizar, ficando inteiramente nua. Demorou-se, enlevada diante do espelho, apalpando os seios, examinando quão rijos pareciam. Robyn quase passou um lenço umedecido sobre os lábios muito vermelhos, para remover o batom, mas ao se recordar de uma tarde em especial em 1999, quando Daniel passara o polegar sobre o queixo para limpar o sangue e mesmo assim parecera linda, ao menos para os olhos dele, resolveu preservar o efeito para Martos, deixando o batom nos lábios. Robyn ressurgiu nua, sem sinais de pudor. Queria ser vista, devassada pela concupiscência e a pica de Martos e, portanto, abriu as luminárias ainda não acionadas. A repartição de pelos da vagina era perfeita, a perfeição pela qual um homem passaria a vida inteira com a boca ali, no "lugar secreto". Martos se sentou sobre as pernas dobradas no colchão, e Robyn se aproximou com movimentos perfeitos. Houve uma revelação: ele viu que o corpo de Robyn não estava inteiramente nu. Ela usava uma joelheira de malha, quase da cor da pele, e na mesma perna, no pé direito, uma tornozeleira branca. Martos a segurou pelos quadris. Com muita cautela, pousou-a sobre a cama. Por algum tempo, pareceu querer prolongar o exame, deixando para depois o abate. Com interesse clínico, seus dedos exploraram a superfície das bandagens, as fissuras entre as conexões, o complicado, intrincado arranjo de dobras de malha elástica sobre a pele, o cheiro de látex esticado, almiscarado aos de carne e puro desejo fisiológico. Quando seu pau finalmente explodia de tesão, eles se agarraram. Robyn, sempre por cima, investia sobre o parceiro, faminta, transgredindo papéis. Martos esperara amá-la a noite inteira; agora era ela quem o assaltava, uma sucessão de brincadeirinhas ousadas, prazeres demasiadamente agressivos que o deixavam arfando por ar. Quando procurava recuperar-se por um minuto sequer, Robyn o puxava de volta pela parte de dentro da coxa como se Martos não fosse nada, um tanto quanto humilhante para seu ego inflado. Beijos, cheiros e sensações fuzilavam sua mente, sem compaixão, convidando-o a flertar com a insanidade. Martos mergulhou num abismo sem fim, os braços e as coxas fortes de Robyn na verdade, onde sentidos se confundiam em absoluta sinestesia. Sons podiam ser vistos; as cores do arco-íris, degustadas. Os sentidos estavam completamente embaralhados, trocados. "Demais… Chega, chega", arfava por ar, deitado de lado, sob Robyn e entre as suas pernas, sem ganhar nada que não o indiferente, implacável assédio da amante.

Martos despertou com a réstia da madrugada penetrando através do espaço desimpedido das cortinas de seda, amarradas no meio por uma faixa amarela. Aturdido, sentindo-se confuso pela noite anterior, sentia-se inexplicavelmente grato pela volta à normalidade no quarto. Sua respiração recuperara a cadência, ele se sentia bem. A existência deliciosamente ordinária podia ser experimentada nos tons cinza predominantes no firmamento nublado nova-iorquino, ou no cheirinho de café e canela da máquina do corredor. Robyn já se vestira, mas ainda não pusera os saltos. Ela entrou no quarto com dois copos de isopor. Sorria ligeiramente ao entrar, com uma cautela a indicar que temia acordá-lo, até vê-lo bem desperto.

- Você se sentirá bem. - Ela lhe entregou um dos copos. - Este aqui tem leite. - Martos bebericou de seu copo e ergueu os olhos à Robyn. Ela se sentou sobre as pernas dobradas, sobre a cama e ao seu lado. - Eu sou casada. - Ergueu a mão esquerda para mostrar o dedo anelar.
- Eu também. - As risadas se uniram num uníssono, e foi bem divertido. A tensão se fora. Agora, eram como primos que haviam experimentado uma coisa besta e secreta. Não existiam problemas, implicações, ou ao menos Martos assim pensava. - Você se recorda de mim?
- Eu me lembro que era o corregedor chefe da Guarda Costeira quando passei no concurso há dez anos. - A psiquiatra respondeu, prontamente. Sem fôlego, Martos ficou observando, com a boca levemente aberta. Achara que só ele a reconhecera ao abordá-la na noite anterior. - Não o vi muitas vezes, mas o via por ali.
- Ainda sou o chefe. - Disse, com um certo orgulho. - Você tem uma boa memória mesmo. Vim a Nova York para o congresso de...
- Fotográfica. Memória fotográfica. Quer um exemplo? - Robyn se ajeitou melhor sobre a cama, confortavelmente, dobrando melhor as pernas. Moveu um pouco os dedos dos pés, como que se livrando da fadiga impingida pelo frio às articulações, e prosseguiu. - Daniel Legrand. Lembra-se dele?
- O cara que trabalhou nos sistemas informatizados de processos? Na secretaria? - Apertou os olhos, perguntando, mas já conhecendo. Sua intriga não devia a qualquer esforço de memória, mas aos motivos de Robyn trazê-lo à conversa. - Foi exonerado, perdeu tudo após um acidente na estrada, até onde eu consiga me lembrar. Daí, eu o vi na televisão por causa daquele lance do aeroporto e...
- Fantástico, não? - Os olhos de Robyn repentinamente iluminaram. - O lance do aeroporto… Bem, voltemos alguns anos. Os anos nos quais ele trabalhou sob sua tutela. Foi assim que eu e você nos cruzamos, Martos. Quando eu passeava no seu andar com uma desculpa qualquer, apenas para ver como Daniel vinha se saindo. - Eles ficaram em silêncio, após essa parte, até Robyn revelar: - Eu me importo muito com ele. Digamos que ele é meu projeto pessoal. Ele me preocupa e me tira o descanso. - Segredou, com um olhar divertido e esquisito.
- Ele está bem? - Perguntou, sem saber exatamente o que dizer diante daquela conversa estranha.
- Passo algumas noites em claro, preocupada. - Ela fumegou, dando um gole no seu café com canela, agora morno e passível a ser tomado mais rapidamente. Ela ficou com um bigodinho no lábio superior e na ponta do narizinho. - Sou Psiquiatra chefe no Monte Sinai. Eu fui médica da mãe dele. - Ela pareceu esperar, mas Martos não tinha nada sobre o quê trabalhar. Não se recordava bem do servidor, apenas da reserva, da solidão de Legrand. A bem da verdade, seus sentimentos por Daniel o confundiam. Parte de Martos o desprezara; parte gostara de sua pessoa, como teria afeto a um estagiário qualquer. Mas o puto tinha que estragar as coisas com aquele ar de "Conde de Monte Cristo", fazendo-o se sentir como um Fernando Mondego privilegiado. Martos tivera de estudar como um burro de carga, tivera de sofrer para ser o chefe de Legrand e daqueles estagiários, porra. Nada lhe fora dado de mãos beijadas! Por que aquele filho da puta nunca reconhecera isso, como os outros o fizeram?! - Eu… Não sei como me sentia em relação ao cara. Acho que gosto dele. - Iluminado por uma súbita ideia, esboçou um sorriso honesto e confirmou. - Sim, gosto dele. Poxa, eu fiquei feliz ao vê-lo na televisão. Fiquei feliz, porra!
- Calma, calma. - Robyn massageou-o num dos braços. - Ele confunde as pessoas, não? Mas, sabe, ele é o mais confundido de nós. Não sabe se cuidar, não sabe se virar. O que eu faço com Daniel Legrand, Martos?
- Como assim? - Apoiou-se nas palmas das mãos para se encostar à cabeceira com as pernas esticadas e os pés cruzados. Robyn se ajeitou de novo, novamente arqueando os dedos dos pés, dissipando certa tensão, certa espera. - Qual a sua responsabilidade sobre a vida dele?
- Um garoto tolo, tonto. - Esfregou os dedos no cenho, olhando para entre as pernas dobradas. - Quem ele pensa que é para me afrontar, fazendo perguntas, querendo descobrir o que eu… - Ela se deteve no último segundo, e levantou o rosto para olhar para o corregedor e sorrir. - Agora, sou eu quem o confunde, certo? Desculpe-me. - Ela sacudiu a cabeça, e o que era perspicácia energética foi virando serena tristeza. Agora, lágrimas rolavam pelas maçãs do rosto da psiquiatra. - Eu o amo e o odeio, Martos. E pela mesma razão: ele me faz pensar em mim mesma, em 1994, 1995, nas minhas melhores partes, em promessas puras, mas irrealizadas. Ao mesmo tempo, eu o odeio, porque as partes nunca podem ser mais importantes que o todo.
- Por favor, não chore. - Sacou um lenço do Clenex sobre o criado-mudo. - Robyn, onde quer chegar? Esse cara foi tão importante a ponto de…
- Sou médica da mãe dele. - Ela escancarou. - Sou a psiquiatra chefe, de modo que ela se encontra sob os cuidados de outras médicas, mas eu a tratei, ainda a trato. Ela é uma interna idosa no Monte Sinai. A avó o engabelou com histórias de que a mãe teria morrido. O passado desse cara é um olhar através da escuridão. Foi jogado da casa da mãe para o do pai. A avó tentou impedir, eu não a culpo; mas avós nada podem, judicialmente falando. Nas férias de um determinado ano, voltou para casa, calado, sem conversar, urinando na cama, chupando o dedo. Finalmente, contou à mãe.
- Deus, eu não sei se quero ouvir. - Cheio de dor e confusão, Martos apalpou a beira da cama para se erguer. Ele se sentou, ainda desnudo, à mesa, e ficou olhando para a cama.
- Vai ouvir.

Mais tarde, noutro lugar. Robyn tomava uma ducha quente, quando Allen entrou no box disposto a namorar. Aos galanteios, Robyn respondia simpática, mas furtivamente, procurando não se esquecer de passar numa drogaria para comprar comprimidos de fluconazol. Quando o marido começou a parecer bastante ousado nas investidas, deu-lhe um selinho e pediu que fosse mais paciente, pois cuidaria dele mais tarde. As outras médicas residentes da Psiquiatria que assessoravam Dra. Robyn Corliss tinham se acostumado `a forma como ela se assomava nos corredores. Seus saltos altos faziam barulho antes mesmo de ela ter cruzado a divisória entre hall de elevadores e o braço da psiquiatria do Monte Sinai. Quando passava pelos consultórios e salas de portas abertas a caminho de seu gabinete, desejava a todos um bom dia com um sorriso apertado que a tornava uma chefe tão humana quanto cautelosa, avessa a proximidades, mas não inteiramente fria. Sobre a mesa, relatórios sobre o quadro emocional de uma paciente específica, uma certa "Helena Legrand". Períodos extenuantes de silêncio e solidão após vocalização de desejos de suicídio. Robyn fechou os olhos, entristecida, sua mente explorando uma leve mudança na classe do ansiolítico, porém sem se concentrar no ponto, de fato. Helena ainda se encontrava sob efeito sedativos, só voltaria a si à tarde. Naquela manhã, Robyn deixou o prédio ao meio-dia para conhecer um novo restaurante italiano do outro lado da quadra do Monte Sinai. Uma vez acomodada, ligou para Bobbi Chapman, a melhor amiga. "Preciso conversar contigo, Bobbi. Será que pode pegar o voo para Nova York?".

Bobbi mandou um e-mail no final de tarde, o qual Robyn só abriria mais tarde, após dar ao marido o sexo negado no box. A amiga chegaria num voo da American Airlines `as 10:00. Robyn acessou o site do Marriott e reservou um quarto para a data. Respondeu a mensagem de Bobbi para que assim que o avião aterrissasse, apanhasse um táxi para o Marriott da Broadway. Robyn encontraria a amiga no Broadway Lounge, o restaurante cuja vista abrangia Time Square. Na manhã seguinte, Robyn chegou ao Marriott às 11:00; notava-se a eletricidade do lugar, de garçons preparando mesas ao clangor de panelas, da cozinha. Bobbi chegou sem malas, vestindo óculos escuros os quais não repeliam olhares curiosos de algumas pessoas as quais a reconheceram como a vocalista do Takin’ my Time. Um garoto que devia ter dezessete anos se aproximou, visivelmente acanhado. "Olá, a senhora é…", começou; entretanto, nem chegou a terminar a sentença, imediatamente derrubado pela categórica negativa da cantora, que sequer se preocupou em olhá-lo na cara para dispensá-lo. Robyn se levantou para recebê-la com um abraço. Ao receber da colega a carta de carnes, Bobbi sugeriu que subissem ao quarto e escolhessem algo para comer ali em cima.

Robyn escolhera uma suíte servida por muitos luxos. A cantora fez a opção de prato, e entre goles de vinho tinto, as amigas recuperaram o tempo perdido. O assunto que a levara a arranjar o encontro ficou para ser tratado entre xícaras de café após o almoço. Bobbi estudava o tráfego a serpentear diante dos pés do Marriott, buzinas e gritos que ao alcançar aquele tão distante andar chegavam como ecos enfraquecidos, refratados e longínquos. Raios de sol entravam paralelos, filtrados pelas persianas, desenhando franjas sombrias na face da cantora. De perfil, parecia no mínimo dez anos mais nova que suas três décadas de vida.

- Daniel não sabe de muito ainda, mas eu devo confessar que vasculhou nos becos certos. - Robyn começou, oferecendo `a amiga o isqueiro assim que ela filou um cigarro da carteira. - Lembrou-se do Aaron. A última informação que tive foi a de que procurou Max Leeson, de Cape May, pedindo vista do prontuário médico da época.
- Eu não me preocuparia tanto, se soubesse que Daniel pararia em Aaron. - Tragou, e deixou a fumaça quente correr pelos pulmões, requentando-a por dentro. - Você teme que ele queira bisbilhotar a história do Goldman Roehmer também?
- O que faço? - Robyn soou temerosa. - Eu devo procurar Max? Para conversar?
- Agora, Daniel envolveu terceiros. - Apontou, sem hesitar. - Max seria incapaz de se negar. Podemos contar que, a essa altura, saiba do problema do Aaron e esteja preparado para entregar as informações a Daniel.
- Pedi para que não se envolvesse. - Comentou, quase inaudível.
- Então você não tem culpa. - Bobbi minimizou, pragmática. - Ele teve oportunidade de desistir. Você sabe o que precisa ser feito, não? - Bobbi não esperou que a amiga respondesse, fez isso por Corliss. - Claro que sim. Você se lembra quando me procurou desesperada, por causa do Goldman. Eu tomei conta de Goldman Roehmer. Dê-me alguns dias para resolver seu problema com Max. - Depois de dar seu parecer, Bobbi pôde examinar melhor a amiga, dissociada de seus problemas mais urgentes. - Meu Deus, mesmo cansado, você não envelhece um dia. Quando me concederá a conversão?
- Você fará a conversão, docinho. - Lançou uma piscadela, apoiando as mãos no vidro da janela. Bobbi a abraçou na linha de cintura, e a beijou no rosto com um estalo. - Não se preocupe. Já estivemos no chão antes. Nós nos levantaremos novamente.
- Muito bem. - Robyn se virou. - Eu e Allen poderíamos te levar para uma peça, enquanto estiver em Nova York.
- Então façamos isso hoje! - Aceitou, prontamente. - Algo interessante para ver na Broadway?
- "Vincent in Brixton", em breve temporada no Ambassador. Li fantásticas resenhas. O que acha?
- Adoraria. Seria muito divertido! - Mais um dos beijos que fazia estalar, e Bobbi voltou `a mesa para repor sua xícara.

Era quarta-feira, Max ainda não tinha dado satisfações. Daniel se preocupou, não demorando aos amigos mostrarem-se igualmente nervosos. Jogavam baralho quando o celular de Daniel chamou. "Oh, olá, Max", Daniel disse, e os amigos silenciaram no mesmo segundo para se atentarem à conversa. A expressão tensa no rosto de Legrand foi suavizando, e eles souberam que estavam no caminho certo. Daniel sentia-se um novo homem ao buscar o frescor da varanda da casa de Lefty. Suntee ia saindo, mas Giro achou melhor não, "Vamos aguardar, filho", aconselhou. Daniel voltou à cozinha com o aparelho erguido, anunciando que Max resolvera falar. Os dois se veriam na diner a partir das 18:00 de sábado. Lefty foi buscar as latinhas de cerveja no congelador, para celebrar. Brindando e comemorando, sentiam que a sorte mudava a seu favor.

Um dia antes do combinado, Daniel distraia-se assistindo à televisão, com um dos gatinhos de Orlando no peito, quando a programação foi interrompida. Desatento, não prestou atenção, até compreender que reportavam um grave acidente ocorrido na municipalidade. Havia repórteres noticiando um pandemônio a envolver a linha férrea, e Daniel deixou o bichinho de lado. "Ao vivo de Cape May", lia-se na legenda branca sobre a tarja preta, na borda inferior da imagem. "Oh, meu Deus", exclamou, num susto suficientemente alto para assustar a Lefty e Suntee, até então ocupados com a continuidade dos cuidados `as telas do gatil. Não passava de 18:00, mas Giro acabara cochilando na rede do alpendre, de modo que mesmo quando a confusão se deu, não despertou. Dieudonné passara em casa, mas combinara de voltar ao orfanato. As imagens, horrorosas, exibiam o bonde tombado na primeira curva da descida para Cape May, e pessoas machucadas, estateladas ao longo da pista paralela. "Foi aqui em Cape May?", Lefty perguntou, mesmo que imagens e legenda explicitassem a resposta. Suntee ficou pasmo, de olhos arregalados, como que congelado, a mão um pouco à frente da boca aberta. Daniel voou para a caminhonete, Lefty foi em seu encalço. Arrancou, fazendo cantarem os pneus e, à toda velocidade, seguiu furando semáforos a caminho do epicentro.

Distantes, os berros de sirene repercutiam na praia, ambulâncias traçando as últimas manobras no sentido do local do acidente. Ainda caótico, não havia controle de bombeiros e policiais sobre a cena. Com a confusão, Daniel venceu as faixas amarelas de isolamento sem oposição, desconhecendo seu real motivo. Dentre muitas pessoas feridas, subitamente o viu: Max de bruços, coberto de sangue, as vestes todas rasgadas. Daniel ajoelhou-se ao lado e segurou, assegurador, as mãos do médico. Max estava vivo, porém em péssimo estado. Os policiais intervieram e o orientaram a lhes dar espaço, para os paramédicos trabalharem. Ao olhar por sobre os ombros, enxergou a multidão formada atrás dos cordões isolantes. Familiares e amigos haviam chegado e desesperavam-se, e os bombeiros viam-se forçados a lutar contra o bonde tombado e o princípio de pânico que prometia irromper a qualquer instante.

Logo, as programações cederam tempo de televisão ao acidente com o bonde de Cape May. Lefty convenceu o amigo que fariam um bem se deixassem os bombeiros e paramédicos trabalharem; por ora, achava prudente aguardar informações no hospital para onde as vítimas seriam encaminhadas. O bonde elétrico de Cape May tinha capacidade para vinte e cinco passageiros, e descarrilara durante uma de suas demandas de pico, `as 18:00. Médicos fora de expediente foram convocados em caráter de urgência. Não custou ao hall do hospital ser tomado por uma forte comoção, parentes desesperançados exigindo informações. Uma enfermeira mais valente subiu no cavalete para pôr ordem `a desorganização, aos gritos, exclamando que abrissem passagem para as macas. Cirurgiões tiveram de trabalhar em regime de mutirão, a totalidade dos casos envolvendo terríveis fraturas expostas. A mulher e a sogra de Max chegaram quando o paciente era preparado para entrar na mesa de cirurgia. Desesperadas, iam de enfermeira a enfermeira, pedindo informações, até enxergarem Daniel. Eles correram para abraçá-lo. Pela janelinha das portas de vai e vem que davam para o corredor da ala cirúrgica, Lefty viu Max ser carreado para a operação.

Os ponteiros indicaram 21:00. Fazia duas horas desde a entrada de Max no centro cirúrgico. Lefty as encorajava, com muita tranquilidade, segurando as mãos das mulheres e comandando preces, enquanto Daniel andava lentamente em círculos, aguardando a primeira oportunidade para abordar um dos médicos vindos da ala de operações para lhe perguntar sobre o amigo. Ele estava inclinado enchendo um copo descartável de água diante do filtro, quando o cirurgião apontou, empurrando a porta de vai e vem. Lefty e as mulheres aproximaram-se apressadamente. Daniel chegou ao grupo no mesmo minuto. O médico puxou o gorro e iniciou com um sorriso o qual lhes deu vida nova. Max se encontrava bem. Sofrera fraturas de costela e fêmur - a mais delicada causara uma hemorragia, estancada na operação - mas, agora, encontrava-se fora de perigo, e descansando. Mãe e filha se abraçaram. Enquanto Lefty as consolava, Daniel deixou a recepção a passos vagarosos, para respirar ar fresco do lado de fora.

Lefty e Daniel voltaram para casa `as 23:00. Suntee e Giro pareciam completamente capturados pela televisão, até eles entrarem pela cozinha. Passava um humorístico qualquer, mas em intervalos cada vez mais abreviados, a programação sofria interrupções diretas do local, com imagens do bonde tombado e da entrada do lobby do hospital de Cape May. Antes que os recebessem com perguntas, Daniel adiantou que Max descansava, são e salvo. Giro explicou que a repórter dissera há pouco que não houvera mortes. Ele deixou que Lefty narrasse aos outros a difícil noite no hospital, e foi se sentar num dos bancos do gatil, distante de barulho. Ele ligou o celular. Queria ligar para Elizabeth. Obviamente, Gladys soubera do acontecimento, e a avó atendeu após a primeira chamada. Paciente, Daniel sorriu quando a avó o silenciou sob o peso das exclamações. Tendo se acalmado após a tempestade de nervos, a avó foi avisada pelo neto que Daniel e Suntee estavam bem, e que felizmente não se tinha registro de qualquer óbito. Ela já ouvira a mesma coisa, da televisão. Daniel encurtou a conversa quando viu Giro acenando do lado de dentro, para que se juntasse aos demais.

Eles não se acalmaram a ponto de se recolherem a seus quartos. Vinha a calhar o fato de o dia seguinte ser sábado. Padre di Sofia foi preparar café, enquanto Daniel escusou-se para tomar banho e vestir roupas limpas. Enquanto se refrescava, Daniel calculou a diferença de horário entre Nova York e Londres, e deixou a ligação para Parker para a manhã seguinte. Imaginou que a atriz não soubesse de nada, então na manhã de sábado contaria o ocorrido assim que conversassem. Daniel telefonou muito cedo para o hotel em Londres, mas a telefonista disse que a equipe encontrava-se filmando em Oxford. Deixou recado, mas não mencionou o acidente, limitando-se a prometer que voltaria a ligar. Daniel e os amigos subiram para a entrada de Cape May, e assistiram `as difíceis, delicadas manobras dos bombeiros e técnicos da prefeitura para remover o bonde da pista paralela aos trilhos. Profissionais de perícia faziam a vistoria nos trilhos, dando o pontapé inicial no complicado inquérito do descarrilamento. Ele ligou para a esposa de Max, que atendeu o celular sentada ao lado do marido na sala de recuperação. Ainda sob efeito de sedativos, o paciente não reunia condições de falar, o que provavelmente se daria somente à tarde. Daniel confidenciou os temores aos colegas, durante o almoço na diner. Temia soar paranoico, mas não conseguiu se desvencilhar da possibilidade de Robyn ter um papel no evento. Desconhecia a extensão da influência, do número de aliados, a mera possibilidade de envolvimento o levava a considerar abrir mão das investigações. Não pensava mais em examinar prontuários, gostaria apenas de agradecê-lo pelo empenho, livrá-lo do problema.

A enfermeira convincentemente ajudara a esposa de Max a compreender que seria de mais valia se fosse dormir em casa pois, ao voltar à vigília, ela se sentiria mais forte e preparada para retomar os cuidados ao marido. Eram 22:00, e desconsiderando alguns flertes com a consciência, o fluxo de pensamentos de Max continuava fragmentado, e precisava permanecer "fora do ar" por um tempo. A dedicada companheira alisou os cabelos do paciente e o beijou na testa para desejar boa noite. O hospital aparentava muita quietude, os corredores quase sobrenaturais de tão esvaziados, quando a última visita do paciente do quarto 102 surgiu. Max voltara ao estado de consciência, os olhos vasculhando com muita sofreguidão o interior sombrio do quarto, azulado por máquinas a registrarem frequências de batimentos, quando Robyn entrou sem bater. Vestida com um blazer branco, quase a teria confundido com a nova médica. Em razão do breu, seus cabelos loiros pareceram escuros, e Max considerou que o preto caia melhor a Corliss. Ela deixou o buquê de rosas sobre o criado-mudo.

- Como se sente, Max? - Perguntou, puxando a cadeira para perto da cama, cuidando para não fazer barulho.
- Robyn? Quê… Quanto tempo estive fora? - Impacientou-se. Robyn pousou a mão sobre o peito espetado por plugues.
- Você está meio febril. Amanhã, acordará melhor. Lembra-se do que aconteceu?
- O bonde acelerou e voou para fora dos trilhos na primeira curva. Lembro-me de ter sido lançado para a cabine.
- Refiro-me a antes. - O sorriso no lindo rosto de Robyn se apagou, sobrando uma expressão arrepiante que até então o médico desconhecia.
- Do que está falando?
- De Daniel Legrand, enchendo sua cabecinha com teorias da conspiração. Você leu o prontuário do Aaron, não? - A maneira direta com a qual Robyn fez a afirmação o deixou acuado, e Max nem soube o que responder. - Nós estudamos juntos desde a oitava série, sentávamos lado a lado em 1994. Hoje, nossos filhos têm a mesma idade, ocupariam carteiras da mesma sala. Eu não quero seu mal.
- O que deseja de mim, Robyn? - Perguntou, quase sem forças.
- Daniel determinou-se a ser meu inimigo. Eu só espero que não faça o mesmo. Esqueça o que viu no prontuário, e não se envolva. - Robyn estudou com frieza a reação do médico. Ele pareceu amedrontado, não havia dúvidas. - Eu sei o que concluiu com a leitura do prontuário. Você me vê como uma vilã; entretanto, é mais complicado que isso. Se ele quiser me enfrentar, vai perder. Não queira cometer o mesmo erro. Seus filhos são pequenos, precisam de um pai. Posso infernizar sua vida a ponto de afugentar sua esposa. Seu filho não merece o divórcio dos pais, Max, por favor, eu sou psiquiatra, eu sei do que falo. Pense nisso, seu filho jogado de uma casa `a outra. E a vadia da sua nova esposa poderá fodê-lo enquanto não estiver por perto. Quer que seu filho, uma criança inocente, termine assim? Quando voltar para casa, retome sua vida. Esse encontro jamais aconteceu. - Robyn se levantou, dirigindo-se calmamente para a porta. Uma das mãos fechava-se sobre a maçaneta, quando Max perguntou.
- Foi você quem armou o descarrilamento do bonde?
- Lógico que não. - Robyn voltou-se, a cara banhada pela luz do luar realçando o branco dos olhos. Então, elevou o olhar através da janela, para cima, e continuou: - Foi o demônio em mim. - A psiquiatra se foi, deixando Max para trás, profundamente terrificado.

Parker retornou a ligação para Daniel, na manhã de domingo, bastante perturbada. Ela só soubera do bonde naquela manhã, quando a equipe tirara o dia para descanso, e ligara a televisão do quarto do hotel. Atencioso e com sensibilidade, Daniel soube como pôr termo aos receios de Parker. A atriz queria pegar um voo para Nova York, mas o namorado conseguiu fazê-la entender que seria um ato inútil e dispendioso. Por volta de meio-dia, ele voltou ao hospital para visitar o amigo. Max lhe pareceu verdadeiramente transformado, temeroso de que fosse questionado sobre o prontuário de Aaron. Quase no mesmo minuto, Daniel imaginou o sucedido. Robyn devia se encontrar na cidade. Determinado a abreviar a aflição do amigo, Daniel lhe deu um forte abraço e agradeceu pela atenção. E assim, perdia um dos aliados em Cape May. Quando voltou `a caminhonete com Suntee ao lado, ao entardecer, acreditou que seria mais prudente dar a busca por encerrada. Tudo mudaria novamente, com uma conversa com Gladys `a mesa, na noite daquele mesmo domingo.

A recordação do restaurante de beira de estrada onde se distraíra lendo o flanelógrafo ainda estava fresca na memória, e quando o identificou no retrovisor, esperou no acostamento até não vir mais veículos para executar a cuidadosa manobra que o levou para a frente. Daniel pediu o prato principal da casa para o garoto, e enquanto Suntee entupia as veias com fritas cobertas por queijo cheddar, tiras tostadas de bacon e catchup, procurou o balcão que dava para os recortes. Os recortes continuavam lá, esquecidos, memento mori de um tempo que não voltava mais. Sorriu com uma ponta de nostalgia ao revisitar o recorte de Robyn, com os braços em vitória, filetes de sangue escorrendo das narinas. Sabia que assistira `a luta, e agora procurava se enxergar dentre as pessoas em volta da área de competição. Deixara Cape May movido pelo sentimento de que Robyn estenderia suas teias de modo a progressivamente imobilizá-lo, porém mesmo assim não conseguia ressenti-la. Passou delicadamente as pontas dos dedos sobre o recorte e, receando ser flagrado, verificou se Suntee seguia inclinado sobre seu prato à mesa. De fato, o garoto encontrava-se demasiadamente preocupado com a junk food para prestar atenção. Os sinos da entrada daquele restaurante perdido `as margens da estrada deserta tilintaram, anunciando com certa antecedência a entrada do ar quente vindo de todos os lados, mais especialmente da direção do manto asfáltico. Daniel cerrou os olhos e se permitiu recordar.

Noutros tempos, Daniel tinha um jeito muito especial de passar as manhãs de domingo. Fazia pouco tempo desde a dissolução do namoro com Parker, e domingos pareciam demasiadamente quietos para ficar em casa. Conhecia-se bem, a ponto de aceitar que, caso não "fugisse" de casa por algumas horas, quando recordações de dias mais felizes tendiam a assaltá-lo, logo voltaria a se entristecer e se desanimar, num fluxo que o distanciava do sentido ao qual gostaria de dar à vida. Ele costumava passar no supermercado, onde comprava pratos feitos - uma porção de arroz, de bife acebolado, outra de fritas - e então dirigia até ao amplíssimo, vazio e silencioso estacionamento do colégio Lower Township, onde parava sob a mais frondosa e alta das árvores, e punha-se a comer e lembrar-se de um tempo mais simples. A sobremesa, uma barra de chocolate, Daniel reservava ao fim, quando, tendo corrido com o automóvel pelas vias da praia, subia pela avenida das dunas até culminar no mirante dos carros, onde casais costumavam namorar sob a fantástica panorâmica da praia e do Atlântico a frente.

Daniel entrou vagarosamente pelo espaço do estacionamento do Lower Township. À distância, perfilou uma familiar figura, sentada sob a sombra protetora das árvores, no gramado do canteiro principal. `A medida que foi se aproximando, sossegadamente, viu que se tratava mesmo da Robyn Corliss. Desceu do carro e foi cumprimentá-la, porém apesar de encontrá-la disposta e sorridente, não parecia surpresa. Ela se vestira distintamente de como costumava vê-la; no entanto, mesmo de saia, blusa branca e chinela de dedo, encantava-o da mesma maneira que fizera naquele dia na praia. Daniel a abraçou, e foi apanhado de surpresa quando Robyn pareceu querer prolongar o reencontro. Ele então se pôs a alisar as costas dela, numa tentativa desastrada, mas honesta, de confortá-la. Era inusitado. Havia sido seu o coração estilhaçado pela indiferença de Parker, porém agora consolava Robyn, destruída pelo fim do relacionamento com Aaron. Depois do abraço inicial, ambos ficaram um pouco sem jeito, até Daniel tirar da cartola uma ideia brilhante. Por que não dividir o almoço - e um momento de tranquilidade - ao lado da ex-colega de sala? Robyn adorou o convite. Ela deixaria o carro no estacionamento do Lower Township, e iria com Daniel no carro dele ao farol/mirante sobre o qual já ouvira falar, mas jamais vira com os próprios olhos. Encontraram-no vazio, numa discreta saída da avenida costeira a dar para uma vista verdadeiramente inédita. Robyn riu, divertindo-se com a bagunça na hora de mexer com pratos e talheres descartáveis. Almoçaram `as gargalhadas, e terminaram melados e felizes. Depois de reunir o lixo num saco, deixaram o carro, levaram-no ao cesto de recicláveis, e foram se sentar num conjunto de rochas na encosta que servia como ponto para se admirar melhor a abertura do privilegiado ponto de vista. Muito distante, ao leste, viram a entrada muito íngreme para Cape May e, protuberando por trás de uma coleção de árvores, a chaminé da diner.

- Odiar alguém que um dia amou é a parte mais difícil somente para mim, ou para você também? - Aí estava a origem da dor de Robyn. Ela lançou a pergunta com olhos marejados, perdidos no Atlântico.
- Costumava ser. - Relutou um pouco antes de responder. - Mas então encontrei conforto nas palavras do Padre di Sofia. - Robyn voltou o rosto a Daniel, interessada. - Há pessoas, Robyn, que quando nos deixam, prefiro pensar que estão tentando nos fazer um favor. Sim, eu me apeguei à Parker, mas aconteceu porque o centro de minhas prioridades perdera o eixo. Basear-se em emoções pode ser traiçoeiro para se apostar um futuro inteiro. Não apenas futuro, Robyn, sabe… Depois que a gente nasce, não morremos nunca mais. Como seria após isso aqui… - Abriu os braços, sinalizando o meio, a vida palpitante ao redor do farol. - Eu não sei dizer; entretanto, a pessoa que escolhemos, que é com quem caminhamos ao céu, é determinante para o destino final. Sabe… - Ele segurou as mãos da ex-colega, ela gostou da iniciativa do contato e, sentada sobre as pernas dobradas, mexeu os joelhos, acomodando-se melhor. - Pense como uma escala no aeroporto internacional. Subiremos no avião cujo destino é um lugar lindo, lindo… Acontece que se a gente se deslumbrar com as lojinhas do freeshop, e perdermos tempo dando um valor enorme às coisas lindas das vitrines, correremos o risco de perder o voo quando a hora do embarque chegar. Fazemos melhor ao preferirmos as virtudes.
- Obrigada, querido. - O agradecimento saiu como um aliviado, doce suspiro. Daniel sentiu que havia contribuído para amenizar a angústia de Robyn. - Não estou vivendo a melhor época de minha vida. Minhas malas estão prontas para os dois últimos semestres de medicina em Oxford. Mas não perderei tempo no freeshop, não se preocupe. - Falou, brincando. Ele deu uma risadinha.
- Você se sairá tão bem em Oxford quanto se saiu naquela luta. - Elogiou-a. Como resposta, Robyn cerrou os olhos, sorrindo meio encabulada.
- Eu ganhei a luta por você. - Ela revelou, e Daniel sorriu, estupefato de contentamento. - Danny, gostaria de ter sua torcida para todos os momentos da minha vida, mas me sinto péssima por dias como hoje, quando nos reunimos, pois vejo quão raros eles são.
- Você sempre terá minha torcida. - Disse de uma forma tão singela que derreteu o coração dela, até então petrificado pelas traições e sacanagens rasteiras capitaneadas por Aaron. Robyn se encostou à mureta e esticou as pernas. Puxou Daniel para o lado e, com a intimidade de uma irmã, pousou a cabeça dele sobre o peito, para que descansasse. A brisa a cortar o mirante era fria e molhada. Com os olhos cheios de lágrima, Robyn revelou. - Eu sei que existe algo entre a gente. Imagino o que sente por mim, mesmo que apenas muito raramente vocalizemos nossos sentimentos. Se apenas tivéssemos nos envolvido romanticamente na época certa… - Daniel permaneceu silente, e Robyn não teve como saber se ele chorava também. Abraçados, desejavam que aquele dia jamais acabasse, e que a praia e o Atlântico não apenas se fizessem sentir, como efetivamente se tornassem o mundo particular onde pudessem se livrar de tantas camadas de cizânias, vinganças e traições.

"O senhor aceita uma xícara?", a garçonete perguntou, restaurando o foco de Legrand no presente. Ela se constrangeu ao dar pelos olhos emocionados de Legrand. Daniel agradeceu e tomou a xícara pela asa. Suntee limpava as mãos gordurentas com guardanapos. Finalizara sozinho uma refeição para três! Tão distraído restara, somente se deu pela vulnerabilidade de Daniel ao se sentar ao lado do amigo na caminhonete e observá-lo melhor. Imediatamente, Suntee calou a boca, sentindo-se péssimo por não ter percebido antes. Daniel apertou-lhe o antebraço, indicando a desnecessidade do rapaz em se preocupar. Ao cruzar a entrada para Elizabeth, ambos se sentiam exaustos. No alpendre de uma das casas do bairro de maioria hispânica onde Suntee morava, familiares e vizinhos comemoravam a formatura de um garoto, que não parecia tão mais velho. Aproximou-se do meio-fio da calçada, em frente à residência da família de Suntee.

- Que droga! - Suntee resmungou. - Não suporto mais a espera do resultado.
- Você se saiu bem. - E, mais genericamente, elaborou. - No concurso, e ao meu lado, durante a procura.
- Vou tomar um bom banho quente e dormir por uma semana. - Antes de descer, emendou. - Qualquer coisa, ligue-me, meu patrão.
- Ei, não peça algo que não esteja disposto a bancar mais tarde. - Riram, risadas solidárias e doloridas de companheiros de batalha.

Daniel tomou a avó nos braços, comprometendo-se a se esquecer por um tempo de Cape May. À mesa para o café, à noite, após o banho e descanso da tarde, o neto falou sobre Max. Quando fez menção ao nome do médico, Gladys finalmente se lembrou de mencionar o telefonema de Max para Elizabeth, na última sexta-feira. Max abriu o jogo com Gladys, e disse que Daniel o procurara para pedir informações sobre Aaron Lang. De posse da ficha do rapaz, descobrira o que havia de errado com a saúde dele. Basicamente, segundo Max, seria mais difícil descobrir o que não havia de errado. Gladys recontava a conversa ao neto, desatenta às implicações do quadro sintomatológico descrito ao telefone. O exame voltara positivo para pneumocistose, uma dentre muitas infecções micóticas que tinham consumido desde as unhas dos pés `a película da língua, tomada pela placa esbranquiçada da candidíase oral. Descrevera gânglios no pescoço, virilhas e axilas. E Max parara ali. Adiantara a Gladys a conversa que pretendia ter com Daniel; isso antes do atentado terrorista ao bonde. Daniel recolheu-se a seu quarto, inquieto. Algo não o deixava relaxar, e foi se deitar, angustiado com pensamentos embaralhados. Eram 02:00 da madrugada quando acordou, coberto por uma camada de suor frio. As informações faziam subitamente um todo coerente. Lado a lado, somadas, reportavam pleno sentido. Daniel não acordou a avó. Empenhou-se para sair sem fazer barulho. A caminhonete corria `a toda velocidade a avenida de acesso, quando ligou para Suntee e pediu para que o encontrasse no Liberty. Daniel estava sentado na mesma mesa da pizzaria onde discorrera sobre o terrível sonho para o qual, à época, o amigo não encontrara explicações. Pela máscara de horror na qual a face de Daniel se transformara, Suntee sabia que a questão justificava a emergência da reunião.

- Sim, são os sintomas mais comuns de infecção pelo vírus da AIDS. - Suntee acatou, após a descrição de Daniel quanto aos sintomas de Aaron Lang. - Mas o laudo declinava expressamente isto? "Infecção pelo vírus HIV"?
- Explicaria o desatino que o levou a saltar da ponte em São Francisco. E numa das vezes em que estivemos em Cape May, lembrei-me de uma conversa com Aaron, aterrorizado dizendo-se arrependido de ter "tirado" Parker de mim.
- Oh, Deus. - Suntee abaixou a cabeça, esfregando impaciente as mãos. - Ele não sabia que estava infectado; entretanto, transitava entre as camas de Parker e Robyn. Contaminou a Parker.
- Não faz sentido! - Daniel protestou. - As duas parecem muito bem! Não há como…
- Por favor, Daniel, não fale como um completo ignorante. O vírus fica latente por alguns anos, certo? Em alguns casos, leva pouco tempo da infecção aos sintomas iniciais; noutros, passam-se muitos anos. Provavelmente, quando esse rapaz foi contaminado, passou pela infecção aguda que varia de pessoa a pessoa, mas é observada na maioria dos casos. Parker ou Robyn podem ter sido infectadas, e porque não desenvolveram alguma infecção inicial, ou mesmo a infecção se manifestou como resfriado, hoje seriam portadoras sem se imaginarem soropositivas.
- Preciso conversar com a Parker… E com a Robyn. - Nem sabia como se expressar, inseguro, as linhas gerais do plano que concebia sob o peso da terrível possibilidade.
- Você deve fazer o teste, primeiramente. Você usou preservativos, com Parker?
- Não, Suntee… Vai custar a acreditar em mim, porém eu e Parker jamais mantivemos relações sexuais. - E sem nenhuma consideração pela própria vida, com o mesmo altruísmo que o levara a salvar aquela gente no voo da American Airlines, Daniel rezou: - Oh, Deus, por favor, poupe-as dessa maldição! - Balançando a cabeça, confuso, o significado do problema só agora se assentava sobre o coração com o peso de uma bigorna. - Nem me parece possível que estejam carregando um vírus tão letal pelos últimos 6 anos.
- Mas é muito possível, sim. E está correto ao querer lhes avisar o quanto antes. Se o vírus estiver presente, quanto mais cedo iniciarem o protocolo, melhores as chances de manterem a carga viral quase indetectável.


O peso da revelação tirou Daniel de centro. Necessariamente, era questão de tempo até a tensão se tornar demasiadamente urgente a ponto de suportá-la sem um ataque de fúria, um infarto ou pior. Voltaram ao estacionamento reservado aos servidores aeroportuários, o céu de um fascinante lilás a prometer dias de chuva, quando Daniel subitamente pôs-se a correr `as margens da pista. Suntee assistiu `a surreal cena boquiaberto, até vencer a inércia para ir em seu encalço. Enquanto avançava no sentido da cabeceira da pista, Daniel rememorava o Natal de 2009, quando tudo começara, e desejou jamais ter interferido e salvado as pessoas do Boeing. Claro, tratava-se de um breve pensamento egoísta, mas vinha do momentâneo desespero. Não teria sido lançado em evidência, o passado doloroso não o teria rastreado até Elizabeth. Nem chegou a sentir quando Suntee conseguiu lançar-se a suas costas para derrubá-lo, como numa partida de futebol americano.

- Suntee, eu não tenho mais respostas. Não posso salvá-las desse problema. Antes estivessem dentro do avião: eu teria como arrancá-las da cabine de passageiros com vida! Mas essa doença é maldita, não tem cura. - Constatava, com olhos bem abertos, fitando o aparentemente infinito gramado central entre pistas.
- Calma, Daniel. Calma. Não pode perder o controle no momento da decisão. Estamos perto!

Os amigos permaneceram abraçados, dois pontos insignificantes de dor humana à beira das rampas de pouso e decolagem para aqueles gigantes alados. Ao voltarem para casa, deram de frente com Gladys e Giro, aflitos. Gladys se dera pela ausência do neto. Ao ligar para o celular e cair na caixa postal, telefonara para Padre di Sofia e lhe contara a conversa com Max, a maneira como descrevera o estado de saúde de Aaron uma semana antes do suicídio. Giro pegou o carro e foi direto para a casa dos Legrand. Assim que o viram, abriram os braços para acolhê-los, juntando-se num abraço forte.

- Tenha fé em Deus, Danny. Parker não pegou esse vírus, Robyn tampouco. - Gladys procurava animá-lo. - Você me dará razão!
- Devo falar com as duas, Giro! - Decretou. - Não sei se Robyn se encontra em Nova York ou Cape May. Quanto a Parker, não posso tratar a questão por telefone! Preciso vê-la em Londres!
- Eu sei de quem verdadeiramente precisamos. - Giro retrucou. - Precisamos da Lefty. Ela saberá dizer se Robyn está em Cape May. Você tem certeza de que quer vê-la? Não se esqueça de que foi você quem especulou a possibilidade de Robyn ter algo a ver com o descarrilamento do bonde!
- Eu apenas sinto que preciso voltar, Giro, mas desta vez estarei pronto.

Giro cuidou de ligar a Lefty, e pedir para checar, discretamente, se Robyn voltara para a mansão costeira dos Cowan. Ele preferiu não entrar no mérito - caberia a Daniel, se assim o desejasse, esmiuçar os motivos. A senhora faria os contatos necessários e daria uma resposta antes do meio-dia. Suntee queria voltar a Cape May com Daniel, Giro também, mas nada parecia demovê-lo da obstinação de terminar a missão sozinho. Ele separou o passaporte e confiou a guarda à Gladys. Assim que acautelasse a Robyn em Cape May, subiria para Jersey e apanharia o primeiro voo para Londres. Em torno da mesa, por volta de meio-dia, o clima entre os presentes era insustentável, pura tensão. Houvera um telefonema no meio da manhã; entretanto se tratava de Dieudonné. Com urgência, o agente do MI6 e Daniel tinham conversado por cerca de cinco minutos. Dieudonné o procurara para encorajá-lo a não desistir; ficou contente ao escutar as novidades da boca de Legrand. Ele não apenas não desistiria, chegara a hora de ir para a cima. Finalmente. Alguns minutos após o meio-dia, Lefty telefonou para sinalizar que Daniel podia seguir para Cape May o quanto antes. Precisou aturar as recomendações de Padre di Sofia e Suntee, combinadas ao sermão de Gladys, durante seu vai e vem pelo corredor principal entre os diferentes cômodos da casa, para agrupar os itens necessários à viagem.

- Ficarei bem, turma! - Foi econômico na despedida. - Se quiserem meu bem, tomem conta de vovó, e aguardem meu retorno. - Apontou para a velhinha, e asseverou. - Vovó: cuidado com o gás de cozinha! - Lançou um olhar à dupla de amigos e contou: - Por duas vezes neste ano a flagrei tendo deixado o dial da boca do fogão aberto. Cuidem disso, sim, pessoal? Fiquem com ela enquanto eu não...
- Foi um acidente, meu filho, eu não estou ficando esclerosada! - Gladys resmungou, meio acabrunhada. Daniel deu uma risada, assim como os amigos, e a abraçou assanhadamente.
- Eu sei, minha velhinha linda, eu sei! - Fez um gesto com a cabeça para Giro e Suntee e brincou: - Essa vozinha é só minha, não toquem nela!
- Corta essa, meu patrão, agora ela é nossa vovó, também! - E agora, os quatro se abraçaram no centro da sala. Era uma bela cena, um raio de luz, de encorajamento, antes da subida de Legrand à "área da competição" sobre a qual Robyn falara ao longo da jornada.

O trio assistiu `a caminhonete levantar poeira pelo eixo do loteamento, com expressões agoniadas, endurecidas. Giro e Suntee conduziram-na para dentro, e o padre foi preparar um pouco de chá. Lefty fumava feito uma chaminé, um sobe e desce pelas calçadas o qual deixou Daniel apreensivo só de ver. Não existiam motivos para mantê-la na escuridão e, sendo assim, compartilhou as conclusões que julgava a pura verdade: Aaron se matara num momento de trágico desespero, engatilhado pelo horror evocado pela possibilidade de ter contraído AIDS. Lefty perguntou a Daniel como considerava lidar com Robyn, como pretendia aproximar-se para tocar numa questão tão privada. Ele deixaria as preocupações para o último minuto, o essencial era conversarem na primeira oportunidade. Na terça-feira, caminhando por downtown Cape May ao lado de Lefty, observava nos cidadãos um renascimento da esperança, mesmo em face do recente evento do bonde. Naquele mês de férias, Lefty contou, cerca de duas semanas antes do término, os estudantes realizariam a tradição da festa das máscaras, a qual acontecia na diner frequentada por Daniel e os amigos, quando na cidade. Na noite do baile, Daniel visitou o hospital para perguntar sobre o estado dos pacientes, e encontrou apenas dez dentre os vinte e cinco ainda em observação. Max fazia parte dos dez que precisariam esperar até a próxima semana para retornar para casa. Num primeiro momento, Legrand limitou-se a observar, solitariamente. O mesmo doutor que lhes dera a feliz notícia de que Max se saíra bem repentinamente passou bem ao seu lado, apressado, sem chegar a notá-lo. O corredor o qual margeava os quartos de pacientes em recuperação se apresentava pacato, silente. Lá, luzes mais suaves davam ao espaço a tonalidade modesta, inspiradora de descanso. Daniel se dirigia ao quarto de Max para uma visita, quando a porta foi aberta e Robyn apareceu. Daniel vacilou no mesmo instante, e embora pressentisse que devia deixar o lugar, fez a ação contrária, indo ao encontro de Corliss. Quando o viu, Robyn também se surpreendeu.

- Robyn, o que eu tenho a falar não pode ficar para depois. - Começou, a voz ansiosa, preocupada. - Também preciso conversar com a sua irmã em Londres. Eu acho que Aaron se suicidou porque descobriu que fora infectado pelo vírus da AIDS. Aaron não esperaria testar positivo para HIV, então logo imaginei que se não conhecia a infecção, pode ter… - Daniel reparou na maneira como Robyn o estudava, sem se alterar. De alguma forma, para ela, Legrand não dizia novidade.
- Apenas fique calmo. - Ela o segurou pelos pulsos, num movimento muito delicado e sutil, quase imperceptível até ela tê-lo sob controle. - Você enxerga inimigos em todas as partes, mas é o único que levou uma pancada na cabeça e agora lida com as consequências. Eu expliquei `a Parker que, em vez de ajudá-lo, fez-lhe um mal ao procurá-lo. Você ainda está muito vulnerável, e seu raciocínio, confuso. Eu…
- E por que você se fez passar por "Simone di Sofia" com fotos da Mildy?! - Jogou a pergunta à queima-roupa, furioso, e Robyn mordeu o lábio inferior, igualmente chateada. - Se você se importa tanto, por que tinha fotos de Mildy e as usou para interpretar um papel?
- Porque me preocupo com seu bem-estar! - A resposta expressou perfeitamente a ignição por trás de suas escolhas e ações. - Também não suportei permanecer distante! Ia me deitar, e me perguntava sobre você, com essa sua cabecinha cheia de problemas… Não havia rastros na internet, apenas aquele blog idiota de resenhas de filmes estúpidos, onde costumava escrever abobrinhas até um mês antes do acidente de 2004! Ocorre que eu fui mais cautelosa do que minha irmã. Não deixei minha curiosidade fugir a meu controle, tudo permaneceu online e em conversas ao telefone! A Parker, por outro lado, foi te procurar em Elizabeth!
- Espere, do que está falando? Sobre blog…
- Não consegue perceber que não se lembra de quase nada? - Alegou, cheia de razão. - Você escrevia num blog, resenhas sobre uma porção de filmes de terror! Não sabe como voltei a seu site todos os dias, desde que se foi! - Robyn começou a se emocionar. - E desejei que postasse algo novo, qualquer coisa, e nada vinha! Há seis anos entro ali, devo ter decorado cada parágrafo escrito sobre aqueles filmes tão poderosos para sua cabeça impressionável!

Confuso, Daniel deixou o corredor a passos trôpegos. Queria chegar `a caminhonete e partir. Robyn não terminara, e o obrigaria a escutar até ao fim. Ele abria a porta quando a psiquiatra a chutou fechada agressivamente, impedindo-o de fugir. Ao se virar, Daniel a viu bastante diferente. A Robyn perante os olhos de Legrand vestia um bizarro uniforme negro de borracha estilo bondage, sadomasoquista, cheio de detalhes, os cabelos presos para trás, os olhos mais impactantes por causa do excesso de sombra, o rosto muito pálido em razão do pó de arroz. Fechou os olhos, angustiado e, ao abri-los, viu-a na sua "forma atual". Compreendeu que sua mente variava entre passado e presente, que a mente o instigava a lembrar-se de algo importante. Não conhecia as razões, mas sabia aonde ir: a velha diner da primeira curva para Cape May.

Tudo o que viera antes limitara-se à preparação. Conforme desejara, ia enfrentar a revelação sozinho. Se os amigos o tinham acompanhado até aquele ponto, seria sua a mão a puxar violentamente a cortina. Decorada por colares de pequenas lâmpadas que, vistas `a distância, faziam-na parecer mergulhada em borrões vermelhos de néon, a frente da diner estava tomada, jovens conversando e brincando, num surreal contexto a partir do qual vestiam fantasias. Timidamente, Legrand traçou para si o caminho ao interior, passando por três Carlitos, duas Bette Davis, três Cleópatras, e um montão de Marilyn Monroe. Ao alcançar o balcão, o barista apresentou-se já oferecendo uma bebida. Pelos canos cromados, os assistentes enchiam canecas e mais canecas de cerveja gelada para os felizes mascarados.

- Lamento, mas não pedi drinque algum. - Tentou devolver o copo, educadamente.
- Cortesia do cavalheiro de chapéu ali. - Elucidou, devolvendo-lhe a shot de tequila e apontando ao fundão. Daniel identificou o garoto que lhe acenava tirando o chapéu: era o próprio Daniel, a versão de Daniel Legrand antes do acidente de 2004. Na recordação, vestia o trench coat notabilizado por Humphrey Bogart em "Casablanca". Então, Daniel aos vinte e quatro anos de idade atravessou o salão, com ar de quem procurava uma pessoa. Como uma sombra, o Daniel de hoje empenhou-se para não perdê-lo de vista ao segui-lo pelos corredores e espaços da casa noturna. Obviamente, muita coisa estava em jogo.

Daniel viu a si mesmo abordar uma garota vestida numa fantasia justa preta. De costas, não pôde identificá-la, mas logo sua versão de 2004 sussurrou-lhe algo ao pé do ouvido, e o casal se pôs a caminho de um espaço mais reservado. Dada a oportunidade para vê-la melhor, percebeu que se tratava de Robyn, caracterizada com o outfit, os adereços e costumes pesadamente inspirados nos cenobitas de Clive Barker. As peças de borracha exibiam a olhos atentos uma riqueza de detalhes que tornava as costuras entre tiras - finas como cadarços nos dedos e na teia sobre o abdômen; largas sobre os quadris, ombros e coxas - uma extravagância sadomasoquista que a pintaria como dominatrix, não fossem as argolas que pareciam atravessar a carne do pescoço, as luvas de pontas cortadas, o decote em "V" exagerado e os restritores de couro curtido os quais começavam sobre os ombros, subiam pelos lados do longilíneo pescoço e só terminavam atrás dos lóbulos das orelhas, detalhes a tornarem-na mais fantástica que uma mera entusiasta de jogos de prazer: ali, Robyn verdadeiramente parecia uma cenobita. Ela vestia botas de saltos muito altos a subirem a pouco abaixo dos joelhos, e quando se movia mesmo para os gestos mais graciosos, os detalhes pareciam trabalhar num conjunto indissociável, obra-prima de caracterização que a deixaria muito `a vontade ao lado dos guardiões da caixa de "Hellraiser".

- Agora, não me diga que se vestiu assim por acaso! - Daniel brincou, os dois se sentando sobre a mureta rebaixada do canteiro, do lado de fora.
- Comecei a ler seu blog e me apaixonei por toda aquela mitologia de "Hellraiser" sobre a qual vive escrevendo! - Acabou por se revelar fã. - Aluguei os dois primeiros filmes e assisti, vi aquelas gravuras, e as levei para uma amiga entendida de montagens, para me preparar algo à altura. - Robyn se levantou, girou `a frente dele e abriu os braços. - E… Ta-Daaaaa! Eis o resultado!
- Sabe que essas argolas enfiadas no seu pescoço e a traqueotomia exposta combinam bem em ti? - Ambos deram gargalhadas. - Agora, venha aqui e se sente ao meu lado. Como vem se saindo, Robyn?
- Melhor agora. Conheci um cara legal. Ele se chama Allen. - Ao contar, os olhos cintilaram. - Recém-aprovado na magistratura federal!
- Que bom, querida! - Acarinhou os cabelos de Robyn. - Um homem de muita sorte. Foi mais rápido do que eu, esse danado! - Conformou-se, com um sorriso compassivo e caloroso, dando com os ombros. - Eu não me lembro de conhecer nenhum Allen, então suponho que não seja um colega em comum?
- Não, eu conheci o Allen Corliss através de papai.
- Mas me diga, porque me deixou curioso! Como chegou ao blog? - Robyn gostou da pergunta. Adoraria discorrer sobre suas habilidades investigativas.
- Você escolheu o pseudônimo "Cecil Thornton" para assinar o blog? Eu não custei a ver que não podia ser um nome real; era uma alcunha usada por um personagem de um filme idiota de ação dos anos 90! - Daniel riu, sentindo-se pego. Ela seguiu: - Quando comecei a ler, a realmente ler os artigos, percebi que falava muito sobre si nas entrelinhas.
- Não imaginei que me encontraria, ou melhor, que encontraria tamanha satisfação na leitura.
- Inicialmente, não havia muito o que me atraísse, pois não gosto de filmes de horror; contudo, fui lendo, estranhamente cativada, seus textos me prendendo. Gosto do que algumas concordâncias e observações me dizem de ti. - Daniel a tocou delicadamente no rosto, e os dedos de Robyn entrelaçaram-se aos seus. Forte o bastante para introduzir uma nova questão, Robyn perguntou. - Mildred tem tomado conta de você?
- Ela está doente. - Parecia querer desabafar, mas temia se enfraquecer. 
- Eu sinto muito, Danny. - Robyn o respeitou. - Você sabe que eu torço muito pela sua felicidade. Eu tinha ouvido falar sobre a piora de Mildred, apenas não compreendo por que não me procurou para conversar.
- Você não sabe? - Não acreditou, lágrimas mornas rolando. - Não sabe mesmo por que hesito em procurá-la?
- Apenas fale para mim. - Suplicou, com olhos marejados.

"Senhorita Cowan?", alguém pôs o rosto para fora, chamando-a. Ambos se voltaram sobressaltados. Uma das garçonetes avisou que havia uma ligação para Robyn. Ela prometeu não se demorar. Daniel a viu empurrar as portas dos fundos, voltando ao interior da casa noturna pela cozinha. Por alguns segundos, rumor de músicas e vozes chegou aos ouvidos de Daniel, para silenciar muito rapidamente, quando as portas pararam de oscilar e se encerraram. Sozinho, não tinha como afastar a sensação de que, `a meia luz dos postes, vinha sendo observado. Quando menos esperava, Aaron já se encontrava ao seu lado. O discurso confuso não fazia o menor sentido. Daniel pediu calma, e enquanto tentava tranquilizá-lo, saltou aos olhos o péssimo estado de higiene do rapaz. Ele pediu uma oportunidade para conversar, e Daniel o seguiu até `as cadeiras ao extremo do balcão, próximas `a cabine telefônica. `A medida que foi se acalmando, a marcha das palavras de Aaron reportou certo sentido, e o que ele trazia para contar era paralisante em horror.

- Você não é culpado, Aaron, não me tirou a Parker, ela escolheu partir. - Procurava suavizar o fardo sobre os ombros dele, porém nem mesmo isso parecia demovê-lo do frenesi.
- Estou pagando pelo mal que fiz! Fui eu quem pedi que chamassem a Robyn, precisava pegá-lo sozinho. Robyn armou uma cilada para me castigar! - A boca tremia, Aaron parecia um homem possuído. - Ela me passou o vírus da AIDS!
- O quê… Não compreendo… - "AIDS": um termo pequeno, que fazia suar frio.
- Ela me procurou em Washington para me seduzir. Eu morava com a Parker, e a Robyn não mediu esforços para conseguir a remoção ao Escritório de Representação da Guarda Costeira. Em algum momento logo após o fim de nosso namoro, ela se descobriu soropositiva, e resolveu se vingar de mim e de Parker ao mesmo tempo. Ela deve ter pegado de alguém quando esteve em Oxford! Robyn foi trabalhar em Washington para se manter atuante em minha vida. Nós nos encontrávamos em segredo, e eu acho que só paramos depois que ela se convenceu de que tinha me infectado com o HIV. O plano era atingir a mim e a Parker de uma só vez, e conseguiu! Eu fazia sexo anal com Robyn; fiz o mesmo a Parker.
- Você já contou isso a Parker?
- Eu não poderia. - Afundou desesperado o rosto nas mãos. - Não saberia explicar que transmiti HIV para Parker! Eu trouxe toda sorte de desgraças para a minha vida, mas Parker não merecia! Hoje, pode não significar muito para você, mas lamento ter azedado seu relacionamento! Jamais imaginei que seria pelas mãos de Robyn que encontraria meu fim!
- Se Parker não tivesse se afastado, eu não teria chegado a Mildy. E francamente, Aaron, não consigo imaginar uma vida sem tê-la conhecido, sem ter conhecido o orfanato... - Declarou, com muito amor e pesar.

Aaron chorava inconsolavelmente, mas, tão absortos pela diversão os jovens pareciam, era como se nem enxergassem o dramático encontro. Daniel tentou chamar a garçonete. Levantou a voz, sem sucesso, e pediu a Aaron para aguardar, pois lhe traria um copo d’água. Após conseguir uma garrafinha, não o encontrou mais ao voltar. Daniel tentou vê-lo no estacionamento, mas desconsiderando-se alguns gatos pingados a namorarem nos bancos próximos `a parada do bondinho, não havia sinais de Aaron. Com o estômago em revolta, Daniel segurava o ímpeto de vomitar. "Não pode ser", murmurou consigo, atentando-se ao fato de que, com toda a água que passara sob a ponte, ainda se importava com a saúde e felicidade de Parker. Custou a perceber que sobre os degraus da entrada, Robyn o observava, interessada. Ela se aproximou cautelosamente, Daniel boquiaberto e assustado, suas ilusões perdidas num jogo de minutos.

- É verdade? - Indagou, a expectativa da resposta o bastante para lhe enlaçar a garganta num nó.
- E se for? - Robyn devolveu. -Diga-me, foi verdade quando me disse que gostava de mim? -Daniel balançou a cabeça em positivo, bastante confuso. - Pois se gosta, qualquer coisa dita por Aaron não mudaria uma palha, certo?
- Parker precisa saber. - Anunciou, devastado. Robyn pendurou a cabeça, encarando-o mortificada.
- Você está me machucando. - Falou, com toda a seriedade do mundo, lançando punhaladas com o olhar. - Percebe?
- Não, Robyn. Foi você quem nos machucou. Eu preciso ir.

E foi assim que perdeu o passado e, consequentemente, o futuro: por força da violência psicológica do segredo de Robyn, e por pura brutalidade física daquilo que sofreria na pista logo mais. Executando apressadamente curvas pela avenida deserta antes das dunas, raciocinava como e quando conversaria com a ex-namorada para lhe contar tão abominável segredo. Reavaliava o filme segmentado da participação de Robyn na sua vida, e não podia crer que alguém a quem quisera tanto bem fora a executora de um plano tão demoníaco. Trocava marchas e ganhava velocidade, e quando a avenida se estendia numa longa reta descendente, pontuou, no espelho do retrovisor, o Porsche vermelho vindo em seu encalço. Primeiro, Robyn pareou com o carro dele, mas como Daniel não quis ouvi-la, ela arrancou para fechá-lo. Eles desceram de seus respectivos carros, e a discussão ficou acirrada. Daniel cometeu um grave erro ao dar as costas `a garota a quem secretamente amara, ao tentar retornar para a cabine. Robyn não podia simplesmente deixar que Daniel expusesse seu tétrico segredo e, num instante de puro desespero, apanhou um pedaço solto de meio-fio para usar como arma para derrubá-lo. Daniel caiu aos pés de Robyn, e Robyn caiu na real, no instante seguinte. Ela se ajoelhou ao lado do ex-colega de sala e o trouxe para dentro dos braços, cheia de remorso. Com os olhos vidrados, Daniel podia enxergar e compreender a extensão do que acontecia consigo. Lágrimas mornas rolavam sobre seu rosto, e não soube precisar se eram suas ou da garota. Duas bolas de luzes apontaram no alto da via, um terceiro carro, aproximando-se veloz. Robyn foi flagrada por Aramis, o qual, por um golpe do destino, descia a avenida justamente naquele ínterim. Ele estacionou no acostamento, e presenciou a cena. Com os olhos na indiferente noite estrelada sobre o Atlântico, Daniel somente conseguia escutar o diálogo entre Aramis e Robyn e, ao fundo, as marés quebrando. Dando-o como morto, ela conseguiu convencer o fragilizado colega a ajudá-la a forjar uma cena de suicídio. "Ele tem o motivo, a namorada está morrendo de câncer", Robyn insistia, gritando. Quando o carro foi empurrado com a marcha quebrada no limite e o velocímetro adulterado, o carro avançou com todo o seu peso morto contra a grade de proteção. Daniel ainda conseguia enxergar, pelo retrovisor, a duas figuras solitárias à margem da encosta, assistindo à corrida final, enquanto Daniel afundava no abismo do esquecimento. E então, escuridão.

Daniel caiu de joelhos, o peito afundado por uma absurda compressão. Parecia ter revivido inteiramente os segundos da apavorante descida. De volta ao presente, deu conta de ter se ajoelhado no exato ponto onde o drama se desenrolara. Max falou que Aramis fora morto numa briga estúpida quando Daniel ainda se encontrava em coma. Daniel pressentiu que a morte de Aramis guardava íntima relação com o flagrante na estrada; Aramis fora morto numa queima de arquivo tramada por Corliss. Finalmente, Daniel entendia a mecânica do segredo que custara sua memória: a condição de Robyn como portadora do vírus HIV e o macabro plano de vingança contra o namorado que ousara abandoná-la em favor da irmã. Da mesma forma que ocorrera seis anos antes, Robyn chegou à toda velocidade em seu carro, parando-o de modo a trancar a caminhonete de Daniel no acostamento. Ela desceu com o rosto abrasado.

- E então, consegue finalmente compreender? - Ela perguntou. - Se acha que foi difícil para você, vê o peso que tenho carregado sobre os ombros também, não é?
- Agora, entendo melhor. - Insinuou um movimento para abraçá-la, mas Robyn esquivou-se com um tapa no pulso. - Eu não a culpo, tampouco a Aramis. Eu imagino o peso de seu segredo. Está acabado.
- Se consegue se lembrar daquela noite em 2004, se recordará de que perguntei por que não me procurou para conversar quando Mildy voltou ao hospital por causa da reincidência da leucemia. - Daniel pareceu apanhado de surpresa, pego num segredo que preferia ignorar. - Desabafe, então! - Robyn exclamou. - Nós dois não temos nada mais a perder!
- Não, não... - Trepidou, mas Robyn rapidamente deu os passos que a mantiveram frente a frente a Daniel.
- Você me pediu explicações, mas não consegue exprimir o que se passa aqui?! - Deu-lhe um tapa no peito. - Qual é a verdade, maldição?!
- Eu te amava! - Gritou, furioso. - Eu não te procurei porque eu te amava! Mesmo com Mildy, percebo agora que jamais fui capaz de esquecê-la! Mesmo agora, com Parker... - Daniel lançou um forte murro contra a porta da caminhonete e sumarizou, exclamando ainda mais alto. - Eu te amava, e apesar de ter me esquecido de praticamente tudo, não fui capaz de me esquecer de você! E isso me enfurece!

O silêncio na estrada era ainda mais contundente por se seguir a um momento de explosão emocional tão brutalmente honesto. Interrompia-o somente o uivo da brisa praiana. Robyn o encarava como se estivesse para dizer algo quando o abraçou, comovida pela dor e o belo sentimento de Daniel, mesmo informado de seu papel no desastre que causara a perda de memória, mesmo sabendo que usara Aaron para se vingar da irmã.

- Eu posso omitir a maneira como Aaron pegou AIDS. - Barganhou, mas Robyn meneou calma e vagarosamente com a cabeça, em negativo. - Ela jamais saberia de seu papel, e poderia começar o tratamento mais cedo!
- Sei que me ama, e por mais perverso que meu coração lhe pareça, há um espaço onde seu sentimento foi correspondido. Eu apenas não posso permitir que seu senso de justiça deturpado o leve a escolhas das quais se arrependerá.
- Robyn, mesmo com todo o mal que procurou causar, não deixou de ser a menina que conheci "ao longo do caminho". Você sabe que sua condição de soropositiva não pesa como sentença de morte, não mais! Não permita que, para Parker, fique tarde demais para evitar a tomada da AIDS. Se não fizermos algo cedo, quando descobrir daqui a um tempo, acontecerá por causa de um diagnóstico tão horroroso quanto Sarcoma de Kaposi. Eu não vou envolvê-la, mas...
- Danny, você não entende. Eu nunca falei em AIDS, em HIV. Sim, ocorreu algo. Sim, existiu uma… Vamos chamar de "conversão". Estamos falando de algo ainda mais profundo e esquisito que AIDS. Eu não conseguiria te explicar. Eu sei que não me envolveria, mas não vai parar até descobrir como eu sofri minha conversão. E o que aconteceu ao garoto nas mãos de quem sofri a conversão. Olhe para mim. Olhe bem. Você nunca estranhou por que o tempo parece não passar, para mim? Por que eu jamais envelheci, após 2004? Pode lhe parecer que eu transmiti uma maldição à Parker; mas eu garanto, eu dei vida à Parker. Vida eterna.
- "Conversão"? "Envelhecer"? - Encarava-a com os olhos arregalados, numa expressão debilitada de dolorosa confusão.
- A palavra "AIDS" jamais partiu da minha boca, Danny. - Robyn batalhava para não fuzilá-lo com uma realidade que, pelo menos naquele ínterim, estaria a anos-luz de sua capacidade de compreensão.

Daniel pensou em Goldman Roehmer, nos seus pedaços apodrecendo no chão como expurgo de açougue. Robyn não queria que ele investigasse seus dois últimos semestres de medicina, em Oxford. E como pretendia tomar o primeiro voo para Londres, para aconselhar Parker a se submeter ao exame de sangue, Robyn vislumbrava a possibilidade de que, uma vez na Inglaterra, ele começasse a levantar novas questões.

- Se apenas não tivéssemos sido tão tolos! - Robyn lamentou, a voz embargada. - Se apenas tivesse ficado contigo, e não com Aaron, nada disso teria acontecido!

Daniel voltou a Elizabeth na mesma noite. Estupefato, soube dosar a ansiedade concentrando-se nas dezenas de quilômetros de pista à frente. Sabia que deixaria todos muito assustados – principalmente Lefty, que não esperava que deixasse Cape May tão cedo e sem se despedir. O tempo urgia, e ele pretendia chegar a Londres o quanto antes. Durante a jornada de volta, embora bem-sucedido ao manter sob xeque a ânsia de pôr seu plano em movimento, não pôde dizer o mesmo quanto à palpável impressão de que vinha sendo seguido. Pegava-se olhando pelo retrovisor, para verificar se algum carro vinha atrás, mas a imagem recorrente era a das duas figuras solitárias à beira da estrada, assistindo a seu carro afundar encosta abaixo. Quando chegou a Elizabeth, encontrou as luzes do alpendre desligadas. Consultou o relógio de pulso ao subir em saltos os degraus. Eram 03:00 da madrugada. Gladys acordou sobressaltada, os olhos muito expressivos em agonia. Ele teve de se preparar para uma boa conversa com a avó antes de começar a agir.

- Parker corre risco de morte. - Nem tentou mitigar o impacto da notícia, não existiam alternativas. - Quem passou o vírus a Aaron foi Robyn, por vingança, e é bastante possível que Parker tenha sido infectada, na época.
- Oh, meu Deus. Oh, meu Deus. - Gladys repetia, e era a primeira vez que Legrand via a avó tão impotente. Acostumara-se ao porto seguro, o qual encontrava nos sermões inspiradores dela, em sua inquebrantável fé. Agora, Gladys não mascarava seus medos.
- Eu temo que Robyn atente contra minha vida. Claro que a possibilidade coloca a senhora na linha de fogo. - Daniel sacou o celular e começou a discar o número de Giro. - Espere-me aqui.
- Giro esteve aqui até o começo da madrugada, Danny. Não se preocupe, ele e Suntee cuidarão de mim!

Gladys esfregou as mãos, ansiosa. A cozinha lhe parecia mais claustrofóbica a cada avanço do ponteiro dos segundos. Todo o seu empenho de seis anos para proteger a vida de Daniel das ameaças que os haviam expulso de Cape May de nada mais valia. Por mais que quisesse fazer aquilo ao alcance para protegê-lo, o neto julgava-se preparado para deixá-la de lado e intocada pelas implicações de seu vindouro duelo com Robyn.

- Falei com Giro, e ele está a caminho! Prometi que o esperaria, mas tenho de me despedir de ti, vovó! - Puxou uma Gladys petrificada e atônita contra o peito, e pediu desculpas. - Por favor, procure me compreender. Não há tempo a perder. Em breve, retomaremos nossa vida. - Agora, Gladys chorava, e Daniel começou a se emocionar também. - Por favor, cuide-se direitinho. Tome seus remédios, cuide do jardim. Antes de se meter no alpendre para a conversa com as comadres, cheque o fogão, hein? Giro e Suntee se revezarão, virão vê-la todos os dias!

Daniel guardou o passaporte no bolso do paletó. Em menos de meia hora, estava pronto para a partida. Iria na caminhonete e deixaria a chave com o pessoal da carga. Giro poderia trazê-la de volta, na manhã seguinte. Quem acordou mais cedo do que de costume para se despedir foi Cyrano. Metido com seus pensamentos, só foi se lembrar do gatinho quando ele tratou de se esfregar nas suas canelas, cobrando atenção. Daniel o ergueu no ar e, estudando a sua carinha achatada de olhos meio afastados, sempre rabugento e carente, disse:

- Não dê trabalho à vovó e comporte-se bem, pois quero encontrá-lo com saúde, quando eu voltar. Porque eu te amo e você é o meu melhor amigo. - Apertou a criaturinha inocente bem forte sobre o ombro e o beijou atrás da orelha. Avó e neto choraram, foi um lindo, tocante momento. Na hora de partir, procurou ser prático e rápido, mas não conseguiu deixar sem antes endereçar a relutância da avó, incerta na capacidade do neto de enfrentar uma adversária tão extraordinária, para além da compreensão. - Confie em mim. Eu levei seis anos para saber de que fibra fui feito. Não cairei sem uma luta antes. Depois que estiver resolvido, eu, você, Cyrano e Parker começaremos um novo caminho, juntos, como família. - Ele engatou a primeira marcha e, ao sair, reiterou, gritando pela janela. - Giro estará chegando dentro de algumas horas! Passe a notícia de minha viagem a Lefty & Suntee! Assim que o avião pousar em Londres, entrarei em contato! Eu te amo, vó!

Daniel sinalizou o agente da guarita com o pisca e entrou na área reservada sem problemas. No mirante, fez um curto lanche, coxinha de frango e café com leite, e abriu o MacAir para adquirir o bilhete online. O voo deixaria Jersey para a Inglaterra, com escala em Lisboa; o avião decolaria às 07:00 daquela manhã. Resolvida a pendência da passagem, distraiu-se com a televisão. Passava um filme de suspense de baixo orçamento, rodado para o Showtime Channel, do tipo que só é veiculado àquela hora pois poucos gatos pingados lhe dariam atenção, e porque o canal preferia manter o horário livre da poluição da publicidade comprada. Daniel apreciava aquele tipo de coisa – tinha a cara de sua adolescência, fitas de VHS baratas, filmes previsíveis mas divertidos que guardavam certo frescor, certo charme. Sustentavam o interesse até a conclusão. Histórias de cobiça, triângulos amorosos, assassinato. A velha rotina. Em dado ponto da madrugada, as pálpebras de Daniel foram pesando, até fecharem. Despertou vinte minutos depois, meio sobressaltado, sem saber exatamente por que o fazia; entretanto, quem deixava o elevador para o mirante eram Padre di Sofia e o agente Dieudonné, ambos vestindo expressões nervosas. Daniel deixou o torpor e foi cumprimentá-los.

- Consegui me lembrar! - Exclamou, orgulhoso, abraçando-os. - Não houve mesmo tentativa de suicídio! Robyn me acertou e montou um cenário forjado, sob a impressão de que eu tinha morrido. Ela não queria que eu contasse… - Ia discorrendo, entusiasmado, até se dar pelo tom de voz alterado. Carregou seus amigos, as mãos sob seus braços, até a um cantinho no mirante. - Não queria que eu contasse que infectara Aaron propositalmente, para acertá-la indiretamente quando ele a contaminasse! Havia um menino, na pista, o Aramis.
- Aramis era meu filho, Legrand. - Agente Dieudonné confessou, tomado por grande alegria: apostara tudo na recordação de Daniel, e ela viera. - Eu não lhe contei para ver se você falaria aquilo que eu já esperava, quando suas lembranças voltassem.
- Por que acha que um agente do MI6 largaria a carreira para vir aos Estados Unidos para segui-lo por quase dez anos, Daniel? - Padre di Sofia o ajudou nas explicações. - "Amor de pai", é a resposta. O filho, o Aramis, foi seu colega. Era uma questão pessoal.
- Ele nunca me contou a história completa. - Dieudonné lamentou. - Eu o notava profundamente angustiado, fazendo rodeios sempre que eu perguntava qual era o problema. Daniel, por favor, conte-me… Ele teve algum papel naquela pista?
- Senhor, não se preocupe. - Daniel ofereceu um sorriso cansado e solidário. - Aramis foi praticamente coagido. Calhou de ter passado naquela estrada exatamente quando a situação acontecia. Robyn não "pediu a ajuda" de Aramis, ela basicamente o ameaçou, exigiu que a ajudasse a empurrar o carro através do barranco para as pedras do estuário, antes da praia. Max me disse que ele morreu pouco tempo depois?
- Depois do acidente, Aramis ligou para mim. - Dieudonné começou a esclarecer. - Eu e a mãe éramos separados; ele morava em Cape May com a mãe. Falava apavorado, ao telefone, falando de ti e fazendo perguntas sobre as consequências de se testemunhar uma tentativa de homicídio. Eu não cogitei a seriedade, pensei que a ansiedade dele se devesse a... - Sacudiu a cabeça, com os lábios apertados, sem saber colocar em palavras. - Ainda pensei em vir para cá, mas não deu tempo.
- Aramis levou uma facada, numa briga mal explicada. - Giro retomou. - Por causa de boatos de que saía com uma menina que namorava um delinquente local. Ninguém sabe apontar a fonte do boato. - Os três então se encararam, cientes. Dieudonné meneou em afirmativo com a cabeça, murmurando: "Isso mesmo. Robyn Corliss".
- O que fará agora, meu filho? - Giro demandou. - Podemos te ajudar?
- Devemos! - Dieudonné vocalizou o termo correto. - Devemos! Precisamos ir contigo para Londres, Legrand!
- Chegará a hora para isso, minha gente, porém procurem compreender meu pedido, por ora, ao insistir na permanência de vocês: vovó sozinha em Cape May é um convite para que me acertem! Não posso deixá-la em perigo!
- Ele tem razão, Etienne… - Girolamo aceitou a explicação sensata. Depois, voltando-se ao rapaz, apaziguou: - Faremos rondas no loteamento, no mínimo três vezes ao dia. Vá em frente, filho. Faça o que for preciso!

O avião da American Airlines realizava a aproximação em círculos ao aeroporto de Heathrow às 13:00. O atraso na escala em Lisboa subtraíra uma hora da previsão original de chegada a Londres, e Daniel sentia-se extenuado. Os olhos pesavam de sono, enquanto assistia pela janelinha a alguns dos pontos mais famosos de Londres, como o Tower Clock, instalado nas cercanias das Casas do Parlamento, um intrincado esquema arquitetônico arejado por vários pequenos jardins circundantes aos pés da Ponte de Westminster. Para quem viesse a pé do outro lado do Parliament Square ao amanhecer, a vista era digna de reprodução a pinceladas nas telas dos melhores pintores impressionistas. Executando voltas lentas as quais custavam cerca de meia hora para fechar 360º, no topo da qual se enxergavam as principais atrações turísticas, uma das maiores rodas gigantes do mundo, o London Eye, com seus cento e trinta e cinco metros de altura, permanecia girando incessante. Com uma diferente, mas interessante forma arredondada, a prefeitura municipal de Londres também se localizava à beira do Tâmisa. O arrebatador átrio de luzes e espaços que comportava os grandes shows e eventos do ano, a Trafalgar Square, parecia uma joia incrustada a partir da qual raios coloridos emanavam para cima: à noite, assemelhava-se a um diamante dotado de palpitante vida própria, o coração de Londres cujo ritmo se sentia na variação de luzes e formas, passíveis de serem vistas somente quando chegava a noite.

Quando o avião pousou em Heathrow, Daniel realizou uma ligação para casa, para avisar que chegara bem, e que ficaria num bed & breakfast a quinze minutos de Londres. Precisava descansar e pensar melhor antes de qualquer coisa. Daniel conseguia escutar a voz de Giro, ao lado da avó, orientando-a a perguntar uma ou outra coisa. Ele ensaiou um pequeno sorriso de gratidão, ao perceber que o colega vinha sendo mais do que um pai na sua vida. Pediu à avó para apaziguar os ânimos de Padre di Sofia e Dieudonné, e que ambos soubessem aguardar. Lembrou-lhes que já haviam estado mais distantes da verdade, e tudo levava a crer que a aventura chegava à perna final.

Nova York. Robyn assinou os documentos de expediente daquela manhã, e se despediu mais cedo da staff médica. Diferente do que ocorrera quando Bobbi estivera em Nova York, ela pagou uma diária no Marriott sem reunião alguma em mente. Precisava de silêncio, do tráfego silente e minimizado pela distância, pontinhos a avançarem muito lentamente por artérias públicas, a movimentação implacável da metrópole, observada pela perspectiva da janela de um quarto a partir de onde tudo pareceria inofensivo e silencioso. Precisava pôr a cabeça em ordem. Ela pediu ao serviço de quarto uma xícara de café com leite e croissant. Liberta do cinto, os botões do blazer abertos e os saltos esquecidos na soleira do banheiro, Robyn deitou-se de bruços, e permitiu-se distrações, observando o carpete de madeira do teto. A mente estava à deriva, mas de uma forma ou outra, Daniel permanecia no enquadramento daquele grande oceano de ilações onde Robyn se perdia.

Ela só foi se ater a uma corrente de pensamento em especial quando reconsiderou a conversa definitiva às margens da grade de proteção, o diálogo o qual selara o destino de Daniel. Ele dissera que a amava e, pela primeira vez, Robyn parava para refletir o significado de um voto tão único e gratuito. Daniel exclamara com todo o ar nos pulmões que a amara mesmo naquela manhã na praia, em 1995, e somente agora, ambos adultos e amarrados aos compromissos assumidos, ela realmente compreendia as implicações da voluntariedade com a qual o inimigo a mantivera no coração e sempre lhe quisera bem; "levá-la ao céu", como ele mesmo dizia e, ao fazê-lo, a fazia chorar. Robyn foi se encolhendo, assumindo uma posição fetal. Por mais forte que se julgasse, viu que era tarde para evitar a tristeza prestes a assaltá-la como tempestade. Pela janela, o tempo subitamente virou com a mesma facilidade com a qual Robyn foi da reflexão para o arrependimento. Enquanto a precipitação castigava Nova York, a consciência a machucava por dentro. Robyn adormeceu com as lâminas de vidro trepidando dentro dos caixilhos.

Em algum momento do segundo semestre de 2002, Robyn tentara conversar com Daniel. Ela sabia que Mildy era sua nova namorada, então temia procurá-lo pelas redes sociais. Ouvira falar da saúde muito instável da garota, e já que havia mesmo um pequeno risco de magoá-la, preferia não abordá-lo de uma maneira tão direta quanto comunicação por perfis sociais. A outra forma de encontrá-lo só podia se dar ao telefone, e quando Goldman a decepcionara o bastante e a vida desregrada em Oxford lhe parecia girar em parafuso, foi a maneira encontrada para abreviar a saudade que Daniel e sua pureza invocavam. Ela estava sentada dentro da cabine telefônica, lágrimas salgadas misturadas à cerveja, nas maçãs, o rosto ardido e avermelhado de raiva. Quem atendeu o telefonema em Cape May não foi Gladys ou Danny, como desejava. "Olá?", Mildy insistiu ao não receber resposta do interlocutor. Intimidada, Robyn desligou.

O The Bear era o pub mais antigo de Oxford. Apesar de pequeno, havia algo em seus corredores apertados, nos espaços muito limitados, o qual atraia o público boêmio e alternativo da cidade universitária, seus usuais "colaboradores". Além do bar público, existia o saloon onde universitários se distraiam com partidas na mesa de sinuca ou com o quadro de dardos. Sobre um pequeno palco, o "music hall" franqueava a bandas menores um espaço para se apresentarem aos sábados, quando a demanda era mais concorrida. Robyn abriu a cabine e se sentiu um trapo ao colocar a cabeça para fora. Goldman conversava com duas meninas no bar; moças lindas, loiras e esbeltas, no mínimo cinco anos mais jovens do que Robyn, dignas de páginas de revistas de moda.

"Não me sinto bem", reclamou, falando baixinho ao ouvido do namorado. Ganhou de Goldman um olhar vagamente curioso. Ele voltou à distração oferecida pelas duas deslumbradas estudantes, e quando Robyn permaneceu no mesmo lugar, atirando adagas com os olhos, aconselhou-a a voltar para casa. "Não entende. Eu não me sinto bem mesmo!". Pela primeira vez num tempo recente, Robyn identificou algo parecido à preocupação nos olhos do namorado, um pouco de apego a sinalizar que ainda não se cansara de Robyn, por mais que fizesse sentir que não custaria a abandoná-la pelos prazeres mais mundanos e ilimitados da vida de artista pretensioso, atormentado e transgressor.

"Sim, ela está um pouquinho febril", o médico plantonista diagnosticou, enquanto tomava apontamentos na prancheta. Levantou os olhos por sobre os aros dos óculos e, como que conduzindo um inquérito, indagou-a sobre outras manifestações fora do ordinário que julgasse importantes. Robyn podia assinalar precisamente quando começara a notar as crises intestinais a prenderem-na ao banheiro nos momentos mais constrangedores: realizava pesquisas no salão da Duke Humfrey's, quando tivera de correr para alcançar o sanitário a tempo. A crise só lhe dera tempo para se compor até chegar ao banheiro. Robyn não notara os gânglios, descobertos apenas pelo plantonista ao apalpar o pescoço. Um hemograma completo revelou a resistência baixa, leucócitos em número inferior ao recomendável, e um segundo exame de sangue foi solicitado. Durante a internação de Robyn, Goldman comportou-se melhor. O distanciamento de semanas atrás deu lugar a um companheiro mais engajado; entretanto, ele insistia que o mal-estar só duraria poucos meses. Depois, ele jurava, a vida de Robyn verdadeiramente começaria, e jamais terminaria. "Eu lhe dei vida eterna", sussurrava, e ela não conseguia entender. Robyn começou a pensar na possibilidade de ter adquirido HIV; contudo, as palavras de Roehmer não conferiam com a situação de um soropositivo.

Essencialmente, Goldman, um hedonista avant-garde, não deixaria nenhuma premissa moral ficar no caminho da satisfação absoluta de seus desejos mais devassos e carnais, pelo menos até a chegada de Robyn. O artista se encantara pela americana e, em troca, mostrara-lhe um mundo rico em culturas obscuras e ideias perigosas, onde figuras boêmias e diferentes habitavam uma existência underground, lugar pelo qual apenas os muito ousados conseguiam transitar. Quando compreendera que viera a se importar com Robyn, a ponto de preferir perdê-la a lhe causar danos irreversíveis, procurara se distanciar. Após a separação de Aaron, Robyn jamais teria concordado com uma nova separação. Goldman deveria ter se atentado antes de arrastá-la a seu mundo de prazer sem limites; todavia, como na fábula do escorpião, não há como se burlar a natureza. Para recompensá-la, Goldman lhe deu "o presente", e quando Robyn começou a manifestar a "conversão", era tarde demais. As crenças mais fundamentais da vida da moça ruíram e, impotente, Goldman assistiu a tudo quieto e desolado. Incapaz de vencer o devastador impacto, Robyn não teve como confrontá-lo para perguntar a respeito da natureza de tudo aquilo. Ela juntou as coisas e deixou a casa georgiana do namorado sem se despedir. Para Goldman, a partida de Robyn soou como um presente. Durante certo período, o hedonista que desenvolvera consciência se viu livre do horror da responsabilidade pelas vidas de terceiros. Sabia que lhe dera algo valiosíssimo, mas demandaria tempo até Robyn compreender o que acontecera e por que ele o fizera. Não sabia então que Robyn presumira que o presente dado por Roehmer era o vírus da AIDS, e que ela voltaria, e quando o fizesse, viria com um machado de lâmina bifacial.

A sentença capital de Goldman fora apregoada, e ele nem sabia disso. Condenara-se a partir do momento no qual Robyn aprendera que sua casa, a única habitada num antigo quarteirão, não chamaria atenção, mesmo que ali dentro alguém gritasse a cada descida do cutelo sobre o crânio. Robyn retornou uma semana após seu sumiço da vida do poeta. Ela não se esforçou para apanhá-lo de surpresa. Goldman escutou quando Robyn quebrou o vidro na janela da porta para abrir a maçaneta por dentro, e também escutou quando ela subiu calmamente a escada em direção ao quarto, batendo a base da lâmina contra os degraus, num macabro presságio. Goldman chegou a parar no corredor para vê-la se aproximar vestindo uma máscara de Mickey Mouse, com olhos arregalados de quem só acreditaria no próprio terrível fim após o primeiro golpe. Ele levantou uma mão protetora para a frente do rosto, enquanto com a outra firmou-se na parede do corredor, antevendo o impacto. Manejando o machado como um taco de baseball, Robyn "rebateu" num sentido perfeitamente horizontal, decepando quatro dos cinco dedos da mão do ex-namorado. Sangue espirrou sobre o branco do corredor, e Goldman ainda teve lucidez de pensar o quanto parecia-se com groselha.

Ele não gritou. Como qualquer pessoa em choque, foi como se ao contemplar tamanha brutalidade, sua mente tivesse "desligado". Goldman conheceu uma novidade: pela primeira vez na sua existência, assumia uma apavorante postura submissa, resignada, qualquer luta existente dentro de seu espírito definitivamente drenada, e Robyn seguiu o decepamento dos dedos com movimentos mais violentos, de cima para baixo e, com a força extra do peso do cabo, a fratura da clavícula, esmigalhando escápulas e deixando os dois úmeros dependurados. Músculos, ossos e carnes foram devassados como se Goldman não passasse de um boneco de Judas. A cada ferimento infligido, o artista se mantinha bem consciente para compreender o caos a tomar conta de seu quase extinto corpo terreno. Mesmo após ter a cabeça separada do tronco, pelo menos por alguns segundos, o cérebro foi capaz de processar que aquele era o fim de linha para seu hedonismo. Foi somente ao concluir o trabalho, em algum momento ao fim da madrugada, que Robyn se deu conta da loucura cometida.

Em seu favor, o timing foi perfeito, pois há apenas uma semana, concluíra o último semestre e recebera os papéis na prefeitura do campus, antecipatórios à residência em psiquiatria, a qual poderia ser feito após seu retorno aos Estados Unidos. Robyn voltou a Cape May dois dias após o massacre. Todos em Oxford estavam muito assustados. Robyn sabia que não custaria aos investigadores chegarem para conversar; ela fora, afinal de contas, a última namorada. Bill & Gail acolheram a filha com amor, e nunca lhe dirigiram uma só questão a respeito do ocorrido. Para os pais, os vícios de Goldman o expuseram ao tipo de bizarrice que lhe custara a vida. Agora, estavam felizes por Robyn ter concluído a residência em Psiquiatria e voltado para casa, onde um futuro maravilhoso esperava por cachinhos dourados.

Foi uma época amedrontadora. Robyn mantivera sua falsa convicção de que pegara AIDS em segredo. Não queria fazer um exame de sangue detalhado, de jeito nenhum. Simultaneamente, imaginava que os investigadores chegariam para conversar sobre sua relação com Goldman a qualquer instante. Quem apareceu duas semanas após sua volta a Cape May foi a amiga Bobbi Chapman, a única com quem se sentia segura para conversar sobre absolutamente tudo. Era uma sexta-feira nublada quando, sob a desculpa esfarrapada de querer confidenciar um segredo, Robyn a levou `a mesma diner onde sua vida, e as de Parker, Daniel e Aaron, haviam passado. Com olhos muito vívidos e angustiados, contou os detalhes do assassinato. Bobbi não a julgou. Quando Robyn explicou que temia que a polícia britânica aparecesse em Cape May, arrastando sua família para a sujeira, Bobbi lhe respondeu que tinha o plano perfeito para desviar a rota das investigações, logo no início. A única coisa que queria de Robyn eram os detalhes: o machado utilizado e onde comprara a máscara de Mickey que, em razão do desespero, deixara na cena do crime, para a confusão do pessoal de perícia. Bobbi se despediu de Robyn um dia depois, com a promessa de que logo os detetives estariam à procura de um serial killer inexistente, e seria o nome de Robyn o primeiro a riscarem da lista de suspeitos. Robyn apenas não imaginava a que ponto Bobbi se dispusera a chegar em nome da amizade.

Agora, oito anos mais tarde, deitada solitariamente naquele quarto no Marriott, Robyn passava a história a limpo. Era engraçado pensar naquilo tantos anos mais tarde, e descobrir como se recordava da cronologia dos eventos. Bobbi a ajudara em 2002, e agora, em 2010, quando Daniel Legrand voltava com força total, ela a ajudaria novamente, pois Robyn precisaria do incondicional suporte da amiga, mesmo certa de que Bobbi era uma psicopata perigosíssima.

Daniel mal deixou a mochila sobre a cama, já a foi abrindo para sacar o MacAir. Ele se sentou na escrivaninha e, meio a contragosto, desfez a elegante arrumação na qual o computador fora encontrado. Com cuidado, empurrou de lado a charmosa máquina de escrever e uma pequena lousa para anotações menores, e acomodou o computador. Daniel encontrou facilmente o blog sobre o qual Robyn falara. Havia uma porção de resenhas, e embora seu verdadeiro nome não estivesse vinculado aos textos, e sim o de um tal "Cecil Thornton", não havia dúvida de que as resenhas haviam mesmo partido de sua pessoa. Tentava compreender o que Robyn dissera sobre ter aprendido sobre Daniel apenas por ler aquela porção de abobrinhas. Teria Robyn visto algo sobre Daniel que o próprio falhara em perceber? Como não tinha muito tempo, deixou os textos para a calada da noite. Tomou banho, vestiu roupas novas e foi colher informações sobre a melhor maneira de se chegar a Oxford.

A melhor forma de se chegar a Oxford, noventa quilômetros a noroeste de Londres, seria apanhando o trem da Rail Europe, na estação de Paddington. A viagem duraria aproximadamente uma hora, e ele teria de desembolsar dezoito libras, ida e volta; por conseguinte, deslocar-se entre a cidade universitária e a capital não ofereceria dificuldades. Cogitou procurar Parker em Londres; entretanto, certo de que seu cansaço apenas o atrapalharia ao tentar comunicar fatos tão assombrosos, resolveu começar a investigar em Oxford. Tentaria contatá-la apenas na manhã seguinte, quando se sentisse mais descansado e forte para encarar a difícil tarefa de lhe contar a verdade da forma menos dolorosa possível. Daniel reclinou a poltrona para descansar e, preparando o despertador do relógio para dali a quarenta minutos, não se preocupou quando as pálpebras encerraram por completo.

O relógio de nada lhe serviu, pois quem o acordou foi mesmo o copeiro do carro restaurante do trem. Daniel agradeceu a atenção, e desceu em Oxford arrependendo-se de não ter vestido algo apropriado para o absurdo frio britânico. A temperatura girava em torno de dois graus, e os ventos corporificavam-se em sólidas massas geladas, como hooligans invisíveis e agressivos. A diversificada cidade recebeu-o com um bom movimento, e Daniel encontrou as portas do comércio abertas. Enquanto externamente prevalecia uma melancólica e datada atmosfera, dos pubs e restaurantes emanava convidativo calor pela lotação. Foi perto do terminal onde tomou uma revigoradora xícara de café e recebeu a instrução de um dos estudantes a procurar informações turísticas na Broad Street, no centro da cidade. O americano teria sido levado a crer que precisaria de um táxi para chegar a Broad Street, mas percebeu que a simpática cidadezinha podia ser conhecida a pé, basicamente. A caminhada da estação ao centro não lhe custaria mais de vinte minutos. A partir da High Street, Daniel conseguiu um mapa de Oxford, e começou a perambular. Franquias das principais redes comerciais britânicas, como Tesco, podiam ser pontuadas ao longo do eixo maior.

Às margens do Rio Tâmisa, Oxford destacava-se dentre as demais do condado de Oxfordshire, pela honra de sediar a Universidade de Oxford, considerada uma das dez melhores do mundo, e revestir-se da arquitetura gótica de muitos prédios históricos, os quais mais lembravam castelos a faculdades. Apesar de a Londres caber o título de capital, fora em Oxford onde reis haviam sido coroados e o destino do país resolvido, em acalorados debates no parlamento! Existiam aproximadamente trinta e seis faculdades, instituições de ensino independentes, na verdade, algumas das mais antigas e conceituadas na Europa, a consagrarem a proposta universitária que não somente parecia impressa em cada estrutura fundante da cidade, como também ligada permanentemente ao ar ali respirado. Daniel encontrou uma infinidade de estudantes metidos em uniformes cujas cores variavam conforme a escola ou universidade a que pertenciam.

Escurecia, e o período noturno era excelente para conhecer os pubs onde o casal investigado devia ter deixado rastros de sua história de amor. O Bear Inn da Alfred Street, o recanto predileto de Roehmer, impregnara-se de história. Ao passo que fora o frio assemelhava-se a punhaladas, o interior oferecia a melhor cerveja da região, seu compromisso o de albergar visitantes por algumas horas, ou mesmo ao longo da madrugada se assim o desejassem: era um lugar de boêmios, afinal de contas, e não havia limites, até mesmo para se encerrar a porta. Daniel passou por entre as mesas esfregando as mãos e assoprando dentro da concha que formava com as mesmas. O barista, um senhor idoso calvo, também dono do lugar, esfregava diligentemente um trapo de lã sobre o balcão molhado. Nele, Legrand teria um cúmplice, o qual poderia ajudá-lo quanto à passagem de Robyn por Oxford, há quase dez anos.

O velho se chamava Soleil, e passara quase meio século tomando conta da casa; era um empreendimento que passara de geração a geração, na família. A notoriedade de Daniel Legrand, o herói da American Airlines, abriu portas perante o idoso, o qual imediatamente não opôs suspeições às suas perguntas. Desde o primeiro minuto, Daniel foi muito franco: não intencionava celeuma, não se encontrava lá para reabrir o caso de Goldman Roehmer. Até onde interessava aos conterrâneos de Roehmer, quem executara o poeta fora um serial killer, o mesmo das duas vítimas em Londres, antes de desaparecer sem ser pego. Ocorria, Daniel disse, que suspeitava que o verdadeiro culpado jamais fora investigado. A polícia britânica não lhe interessava, afinal, muito embora a questão passasse pelas vidas de três pessoas tão barbaramente massacradas, só lhe importava ajudar a namorada. Soleil se recordava da americana de cabelos loiros cujo sorriso iluminaria um salão de artes moderno. Entre goles de um álcool mais volátil e amaríssimo, o gosto abrasivo explicitado no cenho desenhado ao se forçar a engolir, Soleil explicou a Daniel que Robyn fora a única estudante capaz de fazer o poeta trocar marchas e reduzir o ritmo, mesmo que somente por dois semestres. Pesando a seu favor, Roehmer contava com óbvio talento natural, a fortuna e o suporte da família; entretanto, a boa fortuna não o impediu de se imolar em chamas até restarem cinzas. Como todo grande artista, conforme Daniel opinara à Robyn certa feita, Goldman fizera um brilhante trabalho em se sabotar.

Sua ascendência permanecia sacramentada nos registros de sua passagem por Oxford. No mesmo teor do restaurante de beira de estrada a caminho de Nova Jersey, o pub em Oxford também exibia uma variedade de itens num flanelógrafo. Além de vagas de estágio, fotos das distintas turmas formadas no campi ao longo das décadas, registros de festas, de momentos de alegria, flashes de uma juventude a qual perenemente se reciclava com rostos cheios de vida, e que portanto tornava aquele secular mundo universitário um berçário para aventuras onde apenas tijolos ou idosos como Soleil acumulavam poeira, pois, aos demais, somente existiam confetes e festas. Daniel se arrepiou ao identificar muito bem a Goldman com o braço nas costas de Robyn, sorridentes, numa época anterior ao azedamento do namoro. Era uma foto em grupo, Goldman, o ícone artístico, ao meio, abraçado à namorada. Nas mãos de Robyn, mesmo que de lado, Daniel enxergou parte da máscara do personagem de Walt Disney, encontrada nas cenas dos assassinatos atribuídos a "Mickey Lenhador".

Andando ao longo de passeios muito vazios e congelados sobre os quais se deitavam luzes mornas e um tanto quanto empalidecidas, as quais o faziam se sentir o personagem principal de algum conto de horror de Clive Barker, Daniel ainda não conseguia fazer sentido da situação, graças a uma lei da Física. Robyn matara, sim, o namorado artista e, fazendo transgressor uso de sua condição de soropositiva, aproveitara-se para, na mesma oportunidade, vingar-se de Aaron & Parker. Ocorre que o crime não tinha ainda como ser rastreado à Robyn. Ela havia voltado aos Estados Unidos quando "Mickey Lenhador" atacara uma segunda vez, removendo-a de uma lista de suspeitos cuja concepção mal começara, já fora abandonada pelos investigadores. Na mesma noite, Daniel apanhou um trem para Londres, e só foi chegar ao bed & breakfast no comecinho da madrugada. Exausto, não conseguiu nem mesmo se enxugar após o banho quente. Desabou pesadamente sobre o colchão, e ficou estudando o celular em mãos, por um tempo, procurando calcular mentalmente a diferença de fusos entre Inglaterra e Estados Unidos, quando acabou apagando.

"Olá, Lefty!Preciso de um favor!", a primeira ligação do dia foi para Cape May. O círculo se fechava ao redor de Robyn, contudo precisava saber até que ponto Aramis também fora vítima. Basicamente, Daniel gostaria que Lefty conversasse com o ex-colega autor do homicídio, para que soubesse das circunstâncias que os haviam levado a brigar. Daniel não tirara da boca a amarga sensação de que o homem cujas mãos tinham vertido o sangue de Aramis fora tão fantoche quanto o amigo, convencido por Robyn à beira da pista para tomar parte em jogá-lo encosta abaixo. Lefty prometeu que faria o melhor. "Tenha cuidado, filho", a senhora pediu, e Daniel tomou aquilo como sinal. Mesmo Lefty temia pela sua vida, e por mais que se julgasse preparado para fazer um julgamento dos riscos, ainda engatinhava em termos de compreender a extensão do que lhe fora feito por Robyn. Talvez os mais velho – Giro, Gladys e Lefty – soubessem melhor.

Daniel ligou para o hotel onde a equipe de filmagem se hospedara, por volta do horário de almoço, mas a namorada não voltara do passeio que fora dar no Hyde Park. Legrand pediu ao serviço de quarto que informasse à atriz de sua ligação. Ele voltaria a procurá-la em algum ponto à tarde. Sem muito a fazer, o americano comeu solitariamente num restaurante de pastas italianas, e foi passear no mesmo parque onde, pela informação da telefonista, Parker fora passear. Claro, Daniel não esperava encontrá-la, mas lhe apetecia a ideia de visitar o lugar onde Parker teria estado mais cedo. Sem pressa, observava os patos passearem sobre a superfície do lago, braços bem apertados contra si em razão do frio. Com um sorriso triste, prestou particular atenção à maneira como a pata cuidava dos patinhos. Um casal de turistas desviou sua atenção, com risadas que só apaixonados conseguiam produzir espontaneamente. Ele escutara a risadas semelhantes antes, não? O eco das risadas de um dia cada vez mais distante atravessou o coração de Daniel como poucos gatilhos o fariam, e assim sendo, sentado num banco do Hyde Park defronte ao lago, pôde começar a se lembrar.

Sim, foi mesmo no dia anterior `a partida de Robyn para Londres, no começo de 2002. Daniel e Robyn vinham conversando mais frequentemente, ensaiando uma aproximação, e rompendo com os encontros eventuais que, embora breves, revelavam muito sobre o quanto se importavam um com o outro, o quanto se gostavam. Era uma sexta-feira nublada e depressiva: até para se ir de um bloco para a lanchonete, já era arriscado se molhar. Por três vezes, colegas tinham chamado a atenção do rapaz, perguntando se algo o incomodava, e não era por menos. Sabia que Robyn partiria no sábado para a Inglaterra. Por mais que seus encontros parecessem eventuais, mesmo a possibilidade de perder raros momentos os quais permaneceriam consigo e o faziam reavaliar a finalidade da própria vida o enchia de angústia. Daniel deixava o bloco por um caminho ladeado por cortinas de árvores, com a cabeça perdida para estudos, voltada unicamente à partida de Robyn, quando a fantasia se tornou realidade. Ela havia aguardado pela passagem de Daniel próxima à fonte. Daniel sorriu, porém imediatamente as linhas comutaram-se numa máscara de dor. Robyn sabia que ele estava assim pois ela partiria no sábado.

- Você se sairá melhor do que mim. - Daniel previu, e Robyn não compreendeu. Ele elaborou: - Desde a época do colégio, você era tão mais inteligente e socialmente vívida, uma borboleta sociável. Desde os quinze anos, eu sabia que um dia trabalharia para ti!
- Ainda não concluímos nossos cursos, então é muito cedo para afirmar isso! - Robyn brincou, fazendo o melhor para animá-lo. Ela passou os dedos pelos cabelos de Daniel.
- É verdade, sabe? Não tenho sua desenvoltura. - Daniel insistiu, em tocante sinceridade. - Você se tornará uma psiquiatra, ajudará muitas pessoas.
- Bobagem, você é uma das pessoas mais inteligentes que conheci. Por exemplo, mesmo que tenhamos nos falado tão pouco de 1995 a 1999, quando nos encontramos em Nova York para celebrar minha vitória, e eu o beijei, só o fiz pois sinalizara muito bem que estava interessado, mesmo sem ter me dito algo.
- Eu temia ser muito explícito e magoá-la. - Daniel justificou.
- Viu? Você é mesmo uma das pessoas mais inteligentes que conheço!
- Achei que não a veria mais, e que sairia direto de Nova York para Londres. - Constatou, aliviado.
- Pois é. Precisava me despedir de você. Achei que o campus seria a oportunidade, pois eu te pegaria sem a Mildred por perto. E realmente não quero machucá-la. Eu sei que se estivesse no lugar dela, ficaria enciumada, e Mildred fez tanto bem para ti que não poderia desconsiderar seus sentimentos...
- Não, não. - Daniel a tranquilizou, esfregando as mãos nos ombros de Robyn. - Mildy não é apenas minha namorada, mas melhor amiga. Ela compreenderia.
- Não, Danny. - Robyn fez um muxoxo de desapontamento, e retrucou. - Ela pode ser uma menina cuja dor lhe deu discernimento, porém mesmo assim sei que cruzei a linha ao procurá-lo desta forma. Acontece que eu não poderia ir embora... Sem dizer adeus...
- Você não está me dizendo adeus! - Devolveu, um pouco assustado. - Não nos veremos por um tempo, e eu sei que sentirei sua falta, mas também que preparará seu futuro profissional e, quando voltar, colherá os frutos disso.
- E você também. - Robyn se sentia péssima ao ser lançada tão a frente por Daniel, pois seu ponto de vista não lhe franqueava a visão de um horizonte tão deslumbrante. De uma estranha maneira, era como se Legrand previsse o que estava para acontecer, dali a dois anos no futuro, em 2004, quando se reencontrariam.
- Eu espero. Prometo me esforçar! Às vezes, acho que devia deixar para trás a minha parte que continua aquele garoto em 1995. - Ele brincou, e Robyn riu, mesmo que timidamente. - Você apanhará o voo no...
- Sim, sim. - Ela parecia ter esperado pela oportunidade. - Apanharei o voo das 06:00 no Liberty. Deixarei Cape May nesta noite, e passarei a noite no Holiday Inn de Jersey, aguardando o horário do embarque internacional.
- Entendo... - Falou, baixinho.
- Se não nos vermos mais tão cedo, gostaria de agradecer pelo que fez por... - Falou, com a urgência da despedida, a voz embargada.
- Vamos nos ver mais cedo do que pensa, os anos tendem a se passar rapidamente. - Levou uma das mãos ao queixo de Robyn e docemente pediu. - Não deixe de me mandar e-mails, combinado?
- Holiday Inn. - Ela repetiu, antes de sair andando, com olhos cheios de lágrima. - Tomarei um táxi para o aeroporto às 06:00.

Daniel se viu revisitando a brevíssima conversa à sombra da fonte pelo resto do dia. Ela mencionara o hotel ao dar as costas para partir, e o sentimento de urgência a comprimir o peito logo após vê-la deixar somente se agravou com o avançar dos ponteiros. Até colocar a cabeça no travesseiro, não sabia se suportaria a tortura da espera. Dentro de algumas horas, Robyn deixaria sua vida, pelo menos por um ano. As poucas poderosas vezes nas quais tinham se cruzado, breves que o tivessem sido, justificavam a aflição a eletrizar seu corpo, embriagando-o com antecipação.

Aqui ou acolá, prenúncios do dia seguinte riscavam o céu estrelado da madrugada a que Daniel Legrand assistiria passar. A dor repentinamente se inflamou a ponto de não se resignar. Quando associou o fim da madrugada, sobras da extinta noite de estrelas, à imagem do avião da British Airways que viria a correr pela pista, levando consigo o "grande mistério" de sua vida, a pessoa a quem jamais completamente se declarara, mas que o mantivera com a mente sã e o coração esperançoso, resolveu agir. Precisaria se justificar à avó depois e, mais tarde, veria o que faria em relação a Mildy, mas se vestiu e pegou a estrada durante a segunda metade da madrugada, fazendo o carro vencer a distância de Cape May a Jersey, `a toda velocidade. Daniel encontrou o Holiday Inn baseando-se puramente em navegação visual, o letreiro da rede de hotéis destacando-se dentre tantos outros como os do McDonalds e do Burger King, um libertário e transitório mundo paralelo ao do aeroporto de Nova Jersey, entreposto para pessoas transitórias, um lugar onde ninguém era de ninguém e tudo parecia absolutamente possível. Eram 05:00, e Robyn já preparava as malas para apanhar o táxi. Meio sem jeito, Legrand se apresentou `as funcionárias da recepção e disse que procurava uma hóspede. Antes de a garota sacar o fone para contatar o quarto, Daniel deu pela presença de Robyn no topo da escada, de bermuda e blusa, enxugando os cabelos molhados, presenteando-o com o sorriso do qual viria a se recordar.

As malas de napa escancaradas exibiam roupas para frio, dobradas e bem arrumadas. Ela lhe ofereceu um copo de suco, e Daniel sentou-se na cadeirinha ao lado do criado-mudo. Robyn não fez nenhum comentário quanto `a visita; era o que quisera desde o início, quando detalhara onde se hospedaria e o horário da partida. Também não precisou de rodeios para abraçá-lo e levá-lo à cama. Uma vez deitados, porém, depois de Daniel abraçá-la, o carinho velado sentido um pelo outro tornou impossível ao rapaz deixá-la sair de seus braços. Robyn encostou a cabeça no peito, e Daniel começou a afagá-la muito cuidadosamente. Imaginou se ela choraria, pois pôde escutar os soluços muito baixos. Ele a comprimiu ainda mais, e Robyn se tornou manteiga, derretendo-se ao toque. Para além da janela, a manhã chegara a Nova York, e não existiam mais escuridão corrompida por estrelas, sob as quais pudessem se amar, mesmo que por um desesperadamente breve instante. Ficaram apenas abraçados. Do rádio relógio, vinha o The Deele, com "Two Occasions", a tão linda música característica da história de ambos; das ruas, buzinas, inicialmente apenas incidentais, ganhavam força, uma adorável manhã ordinária do ano, menos aos olhos de Daniel, que vislumbrava a mágica graças a um amor proibido e irrealizado o qual estranhamente o impelia para frente no tabuleiro do jogo da vida.

Gladys recebeu-o em Cape May com muita compaixão e solidariedade. Ela não fez perguntas inconvenientes e difíceis. Sabia quão duro seria para Daniel, agora que o grande mistério de sua vida o deserdava, e não havia mais jogos a manterem a mente afiada e astuta. O amor por Robyn terminava sem jamais ter deixado o plano do platônico, e talvez nisso residisse sua impressionante força sobre o imaginário do rapaz. Era sábado e, no fim da tarde, Daniel apanhou Mildy na casa da Lefty para levá-la para comer pizza num dos shoppings de Cape May. Passeando de mãos dadas pelas passarelas largas e movimentadas da praça de alimentação, divertiram-se com Legrand descrevendo com criatividade a beleza dos elevadíssimos arcos do firmamento interior. Foi só após se sentarem para sorvete, após a pizza, que Mildy o surpreendeu de forma positiva, e provou quão errado estivera nas vezes nas quais se tomara como um homem que, não fosse pela avó, tinha somente a si.

- Sei da Robyn. - Mildred subitamente falou, de forma mansa.
- Eu estou do seu lado, e sou grato a Deus pelos nossos momentos. - Foi a resposta de Daniel. Mildred meneou afirmativamente com a cabeça.
- O que você sente por Robyn não mudará a forma carinhosa como vejo você. Apenas não quero que minta para mim. - Ela segurou a mão dele. Daniel juntou sua mão livre sobre as duas entrelaçadas.
- Eu não vou magoá-la. Eu só quero ser um bom namorado, e retribuir o bem que fez a mim.
- Então procure acalorar o coração, não se permita ser avassalado por amargura. Robyn jamais te esquecerá, e retornará muitas vezes nos anos por vir. Proteja-se bem, Daniel. Psicologicamente, Robyn é uma garota muito ferida. E o instinto a fará tentar ferroá-lo como abelha. Cuide-se sempre, sim? Quando eu não estiver mais por aqui para lhe dirigir palavras de cautela.
- Oh, não! - Daniel balançou a cabeça, irritado e incrédulo - De novo, falando bobagens sobre morrer! Você me fere tanto quando vem com essa história!
- Tudo bem. - Minimizou, com um sorriso que reverteu a gravidade. - Apenas se proteja. Não se deixe arruinar apenas porque tem um grande coração, ou porque, diferente das pessoas, você ousou amar, com todas as dores envolvidas, pois amar é abraçar a cruz. Não é por isso, entretanto, que precisa apanhar a ponto de perder a clareza do raciocínio, Danny. Você sabe, no íntimo, o custo de amar; só quero que, ao fim, apesar das dores, esteja lúcido e de pé.

"Apenas duas libras, senhor", Legrand despertou das lembranças, cortesia de uma velhinha corcunda vendendo flores em Hyde Park. Daniel a recebeu com um sorriso carinhoso, pois lhe lembrou Gladys, e lhe entregou duas notas. Com o ramalhete em mãos, deixou o banco de madeira, e partiu sem destino pelos outros caminhos do parque, com uma nova consciência do amor que Mildred lhe confiara, o quanto desejava seu bem. Daniel chegou ao bed & breakfast no meio da tarde e depositou as flores sobre o travesseiro. Não havia recados. Abriu a caixa de mensagens; o e-mail que esperava receber de Parker também não viera. Daniel ligou uma segunda vez para o hotel; novamente, foi-lhe informado que a atriz não voltara do passeio. Ele disfarçou a apreensão, mas pela primeira vez no dia, a insistente ausência da namorada o deixou intrigado. Desceu em Leicester Square, no centro do West End de Londres, conhecido pelas baladas. Concentração de danceterias, pubs, bares, teatros e cinemas, a praça sediava as premières de filmes importantes, e o inspirado Daniel imaginou como seria emocionante ver o de Parker, sobre Louis Pasteur, abrindo num espaço tão exclusivo. À pé, não custou a chegar à Trafalgar Square, entre Charing Cross e Strand Street, com sua enorme coluna no centro da praça, cercada por quatro esculturas de leões. Quando Legrand sentou-se numa mesa de bar no Piccadilly Circus, já eram 19:00. Enquanto os olhos contemplavam um dos principais cruzamentos de Londres, sentiu-os um pouco ardidos em razão das luzes de neon a banharem as fachadas dos prédios na praça. Procurava tranquilizar-se, surgindo com uma porção de justificativas plausíveis para o atraso de Parker. Foi somente às 21:00, quando estudava fascinado a noite londrina do topo do London Eye, que lhe ficou perceptível a presença de uma moça muito bonita e misteriosa observando-o do outro lado da cabine. Fora os dois, havia mais cinco turistas munidos de máquinas fotográficas. Quando os olhos de Daniel casualmente passearam pela figura da moça, ela lhe brindou com um convidativo sorriso. Os passageiros guardavam uma fantástica vista da cidade, incluindo a Abadia de Westminster, o Palácio de Buckingham, a Catedral de St. Paul, o Big Ben e as Casas do Parlamento. Após o fim do giro, Daniel foi beber algo quente na calçada sob o toldo de um restô parisiense fortemente baseado em colunas em mármore, afrescos e grandes lustres. Havia esquecido o flerte com a estranha no London Eye, e examinava o corre de turistas apressados, decididos a não se molharem agora que uma garoa polvilhava a capital inglesa. Foi quando, de relance, encontrou a estranha uma segunda vez, duas mesas atrás da sua, estudando-o com olhos lânguidos, enquanto mexia o café com uma palheta.

Tão flagrante se desdobrava o flerte, não teve como ambos deixarem de rir quando seus olhares se cruzaram novamente. Com o sorriso, a moça se sentiu confiante para a abordagem. Ela se aproximou estendendo a mão e o cumprimentando. Daniel considerou que se tratasse de alguém familiarizado ao voo da American Airlines, mas não conseguiu afastar a sensação de já conhecê-la de outros tempos. Mesmo após se identificar como Bobbi Chapman, vocalista do Takin’ my Time, Daniel não ficou satisfeito. Sim, sabia da existência de uma formação musical chamada Takin’ my Time, porém cismara que já vira o rosto da moça muito antes da notoriedade artística. Bobbi vestia-se com a etiqueta de uma artista determinada a não ser reconhecida. As calças e a blusa de mangas compridas, muito escuras, coadjuvavam os óculos grandes em seu intento de tirar de si visibilidade. Naturalmente, Bobbi começou o elogiando por aquilo já cansativamente veiculado pela imprensa nos últimos meses. Daniel a agradeceu pelas palavras de carinho, e respondeu que jamais se habituaria a receber elogios de estranhos. Bobbi veio com a tréplica que aniquilou as incertezas, afirmando que não eram estranhos entre si, afinal tinham se cruzado noutros tempos,. Ambos tinham uma amiga em comum, em Cape May. "Aí está", pensou, para finalmente situá-la em suas lembranças. Bobbi cantara "Two Occasions" quando ele e Robyn se beijaram pela primeira e única vez.

- Consigo me recordar agora. Faz muito tempo! - Daniel observou, as cenas daquela noite muito bonita em 1999 repassando perante seus olhos num flash.
- Somos muito amigas, Robyn e eu. - Bobbi fez um sinal para o garçom; "Um suco de laranja", pediu sem efetivamente falar, apenas movendo a boca, sendo entendida pelo barista. - Ela sempre me falou muito de ti, mas acho que sabe disso. Ou talvez não. - Corrigiu-se, sem se levar muito a sério. - Creio que tenha problemas com suas recordações, não?
- Robyn contou isso para você, também? - Daniel a ferroou de volta, apenas para testá-la sob pressão. Bobbi simplesmente sorriu, convidando-o a continuar no ataque. - Ela tem contado muitas coisas, eu creio. Eu suponho que não tenha me encontrado por acaso.
- Robyn não me mandou aqui, Daniel. - Ela soou convincente, nuances de cinismo desaparecendo num olhar duro e sério. - Eu vim porque eu quis, porque acho que posso ajudá-la. Robyn conversou contigo, mas parece não ter adiantado.
- Se não foi a Robyn quem te mandou aqui, respeito o que procura fazer pela sua amiga. Se Robyn a mandou, então está mais doente do que eu imaginava, e quando digo "doente", refiro-me às faculdades mentais. Em qualquer caso, por mais ameaçada que se sinta, a vida da Parker está em jogo. E nada do que diga mudará o fato de que ela corre seriíssimo risco de morte, quando poderia ser evitado se...
- Eu não quero que tenha a impressão equivocada de mim. Acho que começamos com o pé esquerdo. - Bobbi se desculpou falsamente, mexendo o canudo dentro do suco que acabava de lhe ser entregue. - Eu tenho te observado desde que chegou.
- Espere. Vamos colocar tudo às claras, certo? Você está me seguindo? - Ele disparou, e a resposta de Bobbi foi ainda mais chocante em sua honestidade. Ela franziu a testa e meneou a cabeça em afirmativo, como que assumindo uma pequena travessura. O fato de tomar sua perseguição como mera peraltice fez os cabelos de Daniel arrepiarem.
- Ora, não reaja tão surpreso! Ambos somos adultos, e levando em conta as vidas envolvidas, não há espaço para comedimento. Sim, eu segui. Eu o vi fazendo perguntas e entrando em pubs, em Oxford. Posso saber o que faz no campus onde Robyn estudou há quase dez anos?
- Você não pode fazer muito pela sua amiga, Bobbi, a não ser convencê-la a não colocar o orgulho à frente da saúde da irmã. - Daniel fechou aborrecido a conversa, jogando uma nota de cinco libras sobre a mesa. - O que faz pela Robyn é notável, mas se você pensar nas minhas circunstâncias, compreenderá minhas razões. Ninguém merece morrer de AIDS quando se pode evitar.
- Ainda essa conversa de AIDS? - Ela girou os olhos, entediada, fazendo um estalido com a língua para demonstrar desprezo pela ideia. - Robyn não tem o vírus da AIDS. Ela tem… Algo a mais.
- Boa noite. - Finalizou.
- Ela é uma vampira. - Uma frase breve; uma frase louca. Não fazia sentido. "Vampiros" não existiam; entretanto, Daniel Legrand gelou, dirigindo-lhe um olhar profundamente perplexo. 

Ele foi deixando a mesa gentilmente, sem chamar atenção. À frente, da praça, emanava uma duma refrescante, molhada; podia-se sentir um clima de romance e aventuras na atmosfera. O céu, platinado, oferecia o contraste quase surreal e cinematográfico à cena. Vez que ficara relativamente tarde, o número de turistas e transeuntes foi se espaçando, até tudo se assemelhar a torcedores deixando o estádio após a fim de um grande jogo, os últimos a enrolarem as bandeiras no mastro em direção aos ônibus. Daniel seguiu no sentido do grande complexo ferroviário próximo, o Metropolitano de Londres. A estação de trem mais utilizada da capital inglesa, o Metropolitano tinha mais plataformas e áreas de passagem do que qualquer outra estação no Reino Unido. Pairando onipresente sobre os corredores, o Waterloo Station Clock, apontando a urgência para que Daniel buscasse o bed & breakfast. Passara de meia-noite, e o movimento no interior da estação era ainda menor do que lá fora.

Sentado solitariamente num dos carros do trem da Rail Station, Daniel considerou ligar novamente para o hotel, mesmo sabendo que Parker provavelmente não teria voltado, caso contrário, tê-lo-ia procurado. Daniel esticou o pescoço para enxergar a janela após o vagão, mas não parecia existir passageiro naquela linha. A edição disponibilizada justamente à meia-noite pelo The Observer pareceu trazida às suas canelas por força do acaso. Um vento mais forte, e o calhamaço abandonado seguira bailando espalhafatoso até chegar às suas mãos. Um gosto amargo subiu à boca, como se a acidez estomacal subitamente viesse num refluxo incontrolável e cáustico. "Atriz norte-americana desaparece após caminhada no Hyde Park. Serial killer Mickey Lenhador retorna após um hiato de quase dez anos". No paço do parque no qual fora vista pela última vez, havia sido deixada, quase como uma mensagem à polícia, a famosa máscara de Mickey. Num primeiro momento, suas pernas perderam a firmeza. Ele gostaria de se levantar para descer na próxima estação, mas os músculos não obedeciam ao comando. Os olhos, vidrados, sequer haviam começado a leitura das quatro colunas de letrinhas pequenas sob uma foto de arquivo da máscara descoberta nas cenas dos homicídios atribuídos a "Mickey Lenhador", fosse quem fosse o homicida por trás do mistério. "Não pode ser a Robyn, não tem como!", Daniel murmurava para si, o suor frio se formando nas marcas de expressão da testa ardida. "Robyn tinha voltado aos Estados Unidos, então mesmo que tenha matado Goldman Roehmer, uma segunda pessoa teria que ter matado aquelas outras pessoas. Mas para quê? Por quê?".

A não ser que "Mickey Lenhador" não existisse; fosse uma ficção criada única e exclusivamente com o intento de livrar Robyn da lista de potenciais suspeitos pelo massacre do poeta. Daniel vasculhou cuidadosamente o cenário em sua mente cansada: Robyn descobre que pegou AIDS de Roehmer e fica louca. Num instante de fúria passional, ela o despedaça, e foge para os Estados Unidos, para a casa dos Cowan. Ela sabe que, cedo ou tarde, a força britânica a procurará para prestar esclarecimentos, afinal de contas era uma pessoa de interesse; por Deus, Robyn fora namorada do cara! Para que seu nome se purificasse de quaisquer máculas, Robyn teria precisado de uma pessoa de confiança. Uma melhor amiga, por exemplo, que se encontrasse em Londres, enquanto Robyn estivesse em Cape May. Uma pessoa de confiança que a amasse a ponto de empunhar um machado para matar duas pessoas inocentes, apenas para encobrir o mito do "crime passional" - a tese mais acertada, seguida pela força britânica, tese que os levaria a Robyn – e criar a lenda do serial killer aleatório o qual, quisera o destino, fizera de Goldman a primeira vítima, e agora e soltara em Londres para deixar um rastro de matança. Com Robyn de volta aos Estados Unidos durante os novos homicídios, a teoria do "crime passional" não teria pernas, Robyn estaria livre, e a força metropolitana, à caça de um serial killer inexistente, criado apenas para mascarar a natureza da morte de Roehmer e o envolvimento da americana. Bobbi deslizou a porta de correr do vagão. Daniel se levantou com olhos aterrorizados, a conexão entre as peças finalmente conclusas, a verdade muito clara. Robyn matara Goldman, Bobbi viera em socorro da melhor amiga e empunhara o machado para encarnar um serial killer, apenas para arremessar a polícia numa falsa pista que a distanciaria gradualmente de Robyn. Bobbi podia ver nos olhos de Daniel que o americano chegara à verdadeira conclusão, e não havia mais oportunidades para diplomacia. Ela parecia angustiada, ambos pisando numa ponte pênsil decrépita prestes a romper sobre o abismo. Algumas vidas teriam de ser arruinadas.

- O que Robyn fez foi terrível, mas eu entendo. - Daniel murmurou. Ao lançar o olhar para trás, viu que havia dois homens a caminho do vagão pela traseira, obviamente o reforço de Bobbi para contê-lo, caso as coisas fugissem a seu controle. - Ela culpava Goldman pela infecção do vírus da AIDS. O que você fez, porém, exigiu frieza. Somente com muita frieza alguém executaria tão sumariamente uma porção de gente inocente, apenas para... Para...
- De novo? Ela não tem AIDS! Eu a amo, Daniel. - Bobbi respondeu, com um tom desolado, patético. - Se eu não tivesse criado "Mickey Lenhador", Robyn jamais teria escapado das consequências de seu ato tresloucado. Eu precisava criar o mito, serial killers matam pessoas. Eu precisei eliminar algumas pessoas para fazer a história colar, não se pode fazer omeletes sem se quebrar alguns ovos, hein? - Daniel começou a sacudir negativamente a cabeça, revoltado, e Bobbi a imitá-lo, com os olhos arregalados e cheios de desespero. - E poderia ter terminado com aquelas pessoas inocentes. Você tinha de começar a mexer no passado, não é, Daniel? - Bobbi se agachou para apanhar o The Observer. Exibindo-o a Daniel, lamentou: - Você tinha de evocar "Mickey Lenhador" de dentro de mim, e eis "Mickey Lenhador" em toda sua glória. Eu sou "Mickey Lenhador".
- Por quê? - Insistiu.
- Vida eterna. Robyn vai me dar vida eterna ao final de tudo. Do mesmo jeito que Goldman lhe deu, e ela interpretou errado no começo. - Bobbi deu uma risadinha, observando seus colegas, e voltou a se dirigir a Daniel: - Goldman não transmitiu HIV a Robyn. Você não entende que ele era um vampiro? Um vampiro numa linhagem de muitos, pessoas em posição de poder, dinastias cujos nomes você nem imaginaria, mas que escolheram a direção deste mundo onde nascemos. Robyn assumiu a mesma tolice que você, "vírus da AIDS”, e custou a ver a realidade, porém eventualmente entendeu.

Quando os homens estavam bem ao alcance para rendê-lo pelos braços, Daniel não hesitou. Ele atirou o braço com todo o peso acumulado sobre o ombro oposto, apanhando o queixo de um dos amigos de Bobbi com o golpe de direita. O outro o acertou com um chute no quadril, que o levou ao chão. Bobbi deu alguns passos cautelosos para trás, abrindo espaço para o duelo. Daniel conseguiu bloquear o segundo chute, agarrando o inimigo pela canela e o puxando com força. O trem corria suavemente, a toda velocidade, mas deve ter passado por um desnivelamento, comum a mudanças de túneis, pois, mesmo levemente, o trepidar dos carros o ajudou a fazer o inimigo perder mais facilmente o equilíbrio. Daniel o agarrou pelos cabelos e começou a enfiar a cabeça dele repetidamente no chão. Bateu com a cabeça cinco, seis vezes, até que o sujeito pareceu fora de si. Daniel vasculhou seus paletós. Ambos fortemente armados, foram-lhes tomadas as pistolas automáticas. Legrand examinou os pentes e guardou uma das armas na cintura. Quando se levantou, a seus pés permaneceram inconscientes os vassalos de Bobbi. Agora, eram só os dois. Apontou furiosamente o cano da pistola para o rosto da vocalista do Takin’ my Time.

- Parker está sob meu poder, Daniel. - Só precisou se valer disso para fazê-lo abaixar a arma. Com a passagem por uma estação vazia, as luzes de neon chegavam pelas janelinhas, iluminando a face de Bobbi como um arco-íris. - Se você me matar, jamais a encontrará. Ela morrerá de inanição no subsolo de algum prédio público abandonado da prefeitura.
- A polícia inteira de Londres entrará no caso. Você não percebe que não pode ganhar?
- Você tem algo que nem mesmo a força britânica inteira possuirá: informação. - Bobbi exibiu um bilhete dobrado entre os dedos indicador e anular, e elaborou. - Mais do que qualquer outra pessoa, merece um assento de frente para o desfecho dessa história, que não começou só naquela estrada abandonada em 2004. Ela volta muito, muito atrás. Em 1994, talvez, quando você e Robyn não passavam de adolescentes. E mesmo que tenha sido por Parker por quem tenha suspirado conscientemente, eram os casuais encontros com Robyn que o mantiveram afiado e ansioso e lúcido para o grand finale. Vamos pôr um ponto final nessa história, gato. - Ela entregou o bilhete a Daniel. - Ninguém mais deve saber disso. Esteja lá às 08:00, caso contrário, Parker entrará na lista de vítimas de "Mickey Lenhador". - Quando o trem parou na Oxford Railway Station, Bobbi apontou para a porta e disse. - Suponho que você deva descer aqui. Aproveite o tempo, Daniel. Até às 08:00.

Daniel regressou esbaforido ao quarto. "Senhor? Senhor?", a mocinha atrás da mesa da recepção insistia, sem que Daniel lhe desse qualquer atenção. Só foi atendida ao bater freneticamente à porta. Ela vestia uma expressão compungida, e segurava um exemplar do The Sun. O desaparecimento de Parker ganhara as primeiras páginas dos principais jornais do Reino Unido. Daniel sabia que era questão de tempo até Gladys e os amigos em Cape May saberem. A moça o convidou a realizar a ligação para os Estados Unidos pelo telefone na recepção, e assim Daniel o fez. Gladys atendeu sobressaltada, e o recado que Daniel precisou passar apenas a deixou mais aflita.

- Não queria que soubesse pela imprensa, vovó. Agora, deve fazer algo por mim. - Ia falando, enquanto procurava se manter atento ao aparelho de televisão que a recepcionista acabara de ligar. - Eu preciso que ligue para Bill & Gail e lhes conte que me encontro em Londres. Padre Girolamo e Suntee também terão um terrível choque, então quero que...
- Danny, Padre Girolamo já deve ter chegado a Londres! - Gladys revelou, a que Daniel ficou surpreso. Ela reiterou: - Sim, ele embarcou para Londres! Não suportou a ideia de deixá-lo sozinho na Inglaterra! O sr. Dieudonné se juntou ao Giro, também! Eles tiveram de obrigar o Suntee a permanecer aqui, já que você insistia numa pessoa a me checar durante os dias!
- Você lhes disse onde estou hospedado? - Indagou, já desconsiderando a possibilidade de que chegassem a tempo de ajudá-lo, principalmente levando em conta que tudo deveria estar acabado em horas.
- Sim. Lefty ligou. - Gladys soltou um palavrão irritado enquanto folheava o caderninho de notas. - A respeito do assassinato de Aramis, seu velho colega de sala de aula. Lefty conversou com o homem que cumpriu cinco anos de pena e encontra-se em liberdade condicional. Hoje, trabalha com recicláveis numa pequena firma de Cape May. Garoto prodígio, estudioso, tivera tudo para se tornar um grande homem, e acabou social e financeiramente arruinado após a tragédia.
- O motivo da briga, vovó! Lefty mencionou o motivo da briga!? - Daniel sentiu o nó acochar na base da garganta quando a notícia sobre o desaparecimento de Parker Cowan ganhou os telejornais da madrugada.
- Sim. Basicamente, alguém mandou um bilhete para o garoto alertando-o de que Aramis saía com a namorada. Veja bem, foi um grande desentendimento. O próprio rapaz se diz cheio de remorsos. Parece-me mais uma briga incitada por uma terceira parte que queria ver o circo pegar fogo.
- Foi Robyn. - Daniel declinou, claro como o dia.
- O quê? - Gladys não compreendeu.
- Preciso ir, vovó. A BBC começou a reportar o caso. Eu te amo muito. - Ele teve dificuldades para completar a sentença, talvez porque não estivesse certo da promessa a seguir: - Nós nos veremos em breve. Trarei Parker de volta! - E desligou, não lhe dando tempo de resposta, abreviando a tortuosa conversa.

O tempo não avançava a favor de Daniel. Enquanto esfregava as juntas doloridas sob uma ducha quente, procurava se aproximar do caos como se fossem bloquinhos de construção. Ele guardava certa noção de como seu "castelo" pareceria, uma vez que os blocos tivessem sido ordenados corretamente; entretanto, sua derradeira aparência, de tão perturbadora, ainda fazia com que o conjunto parecesse tão caótico quanto anteriormente à união das peças. Daniel vestiu botas novas, jaqueta para frio e luvas. Ele acomodou as duas pistolas sob o blusão de lã, e partiu sem nem mesmo fechar a porta do quarto. A uma marcha que estava a um sopro de virar corrida, ganhou a High Street, de Oxford. Do frio agressivo, não havia como se fugir. A High Street era uma das mais alargadas ruas que se podia conceber, e traçava uma gentil curvatura à beira de um lago, objeto de fotografias e pinturas de artistas inspirados pela leveza da visão. Ao longo do percurso, viu uma porção de construções da Universidade de Oxford, mas o único prédio a interessá-lo era a Igreja de Todos os Santos. Bobbi anotara o nome com o batom, e Daniel sabia que seria na Todos os Santos onde a guerra se daria. Sua corrida chamou a atenção de um grupinho de universitários na calçada da padaria. Em muitos outros lugares de Londres, pessoas faziam a mesma coisa, reunindo-se em frente à televisão par acompanhar o desenrolar do caso, ao passo que Legrand ia solitariamente em frente para resolver o impasse em pessoa. "E agora, a nossa principal história de hoje: acredita-se que Parker Cowan, atriz de filmes independentes, tenha sido raptada pelo serial killer conhecido como Mickey Lenhador; mais notícias chegarão à redação no decorrer da manhã, porém repito...". Os espectadores faziam um burburinho ao tempo no qual cenas de filmes de Parker dançavam pela tela. A Polícia Metropolitana devia apostar em peso em Londres como o lugar do provável cativeiro, e Daniel não alimentava expectativas de que seria ajudado em Oxford, o local onde o drama verdadeiramente se dava. Quando os policiais chegassem, para melhor ou pior, estaria tudo terminado.

Quando dobrou a esquina para a deserta avenida da Todos os Santos, os cabelos da nuca eriçaram; o sentimento de tragédia era iminente, palpável. Gárgulas encurvadas decoravam em admirável melancolia as partes mais salientes das calhas dos telhados nas duas altíssimas torres ocidentais da igreja, ladeadas por pedras bem esculpidas as quais representavam folhas estilizadas, encurvadas e repetidas, rematando as arestas dos pináculos. A impressionante postura só parecia possível graças ao arcobotante, os meio-arcos eretos na parte externa para apoiar as muralhas exteriores, repartindo o peso das paredes e colunas. O portal principal, mesmo intimidador em suas agressivas arquivoltas, apresentava-se semiaberto, e tudo o que Daniel precisou fazer foi empurrá-lo. A nave o recebeu em opressiva escuridão. Não demorou aos olhos de Daniel se acostumarem ao breu, e capturarem as elegantes, clássicas linhas arquitetônicas daquele medieval revival à parte. Nisso, foi ajudado pela réstia de luz do dia a penetrar através das janelas laterais mais altas e enfileiradas, na nave da igreja. O edifício era essencialmente vertical, corredores e mais corredores de rampas em interminável corrida ascendente até à abóbada, uma cobertura côncava e arqueada a qual parecia comportar uma pequena rampa, bem como galerias a levarem para o lado de fora - para aqueles que não tinham vertigens. Um pouco acima, a abertura circular preenchida pelo vitral horizontal a olhar para baixo, o qual combinava vários tons da mesma cor, a retratar Maria Santíssima com Menino Jesus nos braços.

Daniel andou cautelosamente através do átrio para bisbilhotar o interior. O lugar dava a impressão de esvaziamento, mas ele conseguia pressentir olhos ameaçadores sobre sua pessoa. Daniel não duvidava: sua chegada não passara desapercebida. Caminhando entre os bancos, parou bem no meio da nave semicircular e gritou "Aqui estou eu, Bobbi!". O eco reforçou o desafio duas, três vezes, reverberando nas superfícies de muralhas mais antigas que o século XX, até se perder na altura. E então, como que em resposta ao desafio, um vulto apontou entre as duas fileiras de bancos imediatamente anteriores a Daniel. Ele ainda encontrou tempo de enxergar a sombra do inimigo erguendo o rifle em sorrateiro movimento. Daniel se virou o mais rápido que pôde, agarrando o cano da arma e o apontando para adiante. Na luta, o gatilho foi apertado, e com o fortíssimo recuo da escopeta, ambos perderam o equilíbrio. Daniel conseguiu tomá-la, e acertar o rosto do inimigo com o cabo, deixando-o fora de combate. Dois outros homens apareceram por trás da pia batismal, abrindo fogo. O barulho dos disparos era enormemente potencializado pela grandiosidade do ambiente. Daniel desatou a correr, as balas passando muito rentes ao corpo. Arremessou-se entre duas filas e permaneceu agachado. Deu conta de que não tinha balas para a escopeta, e os homens logo perderiam o respeito que a potente arma inspirava. Não levou mais do que dois minutos, pareceram compreender que o americano não tinha munição para escopeta. Avançavam a passos relutantes, na direção correta, ainda sem distingui-lo entre os móveis arrebentados no tiroteio. Daniel tentou pôr a cabeça na passagem central, mas só agravou a situação. Eles o viram e começaram a atirar. Rastejando por entre as filas, sua cabeça estava tão confusa que só então foi se lembrar de que não precisava da escopeta. Recordou-se das pistolas que tomara no vagão, ao senti-las como volumes na cintura. Ele as puxou com muita delicadeza, segurando-as na altura do rosto e ao lado.

Serpenteando entre as filas, Daniel desferiu seu melhor chute num dos bancos. O móvel deslizou como uma carreta volumosa para a passagem principal da nave. Os homens se atrapalharam, um deles quase caiu. Era a oportunidade. Saltou do meio daquela porção de filas disparando as duas pistolas, e os inimigos não tiveram tempo para reação. Depois de derrubá-los, apontou para cada uma das muitas janelas que ladeavam a igreja, e as pôs abaixo, permitindo que o dia e o gélido ar penetrassem. Foi um instante indescritível, quando a escuridão foi atropelada pela triunfante claridade de uma manhã gloriosa. Empolgado, perdeu um pouco o foco, um erro. O homem que ele colocara fora de combate previamente tinha recobrado a consciência, mas se fingia de desacordado. Quando Daniel lhe deu as costas, girou um dos bancos sobre a cabeça e apanhou Daniel bem nas costas. Ele foi ao chão, e deixou as pistolas escaparem das mãos. Girando insistentemente ao longo do corredor, as armas agora estavam perdidas ao seu detentor.

- Ela assusta, mas precisa de munição para funcionar, meu caro. - O inimigo municiou a escopeta com projéteis vermelhos enormes, e fez mira no peito de Legrand. - Eu te saúdo, amigo.

O vilão não chegou a apertar o gatilho. Um misto de chamas e sangue grosso estourou de sua garganta num piscar de olhos. Tanto se resumira a uma fração de segundo, ele nem parecia ter recebido um tiro no pescoço. Era como se o projétil sempre tivesse pertencido a seu ser, tão suave e naturalmente o abate se desenrolara, bem diante dos olhos de Daniel. O homem caiu primeiro com os joelhos, e então desabou para frente, como um boneco de pano, como se tivesse se lembrado de um encontro urgente com o piso. Legrand tentou triangular de onde viera o tiro, mas não enxergou o autor do disparo. Quem ele viu, todavia, foi a vocalista do Takin’ my Time. De uma das curvas da interminável subida espiralada, Bobbi fez sua primeira aparição da manhã. Agora que o dia penetrava pelas janelas quebradas, Daniel guardava uma boa vista da inimiga. Ela puxou para cima a máscara de Mickey Mouse e acomodou sobre o ombro direito a sua besta com mira de ponto vermelho. Bobbi parecia uma sombra, seu corpo tomado por um ajustado outfit de borracha negra, como se fosse egressa de um clube gay sadomasoquista.

Daniel tomou a escopeta do corpo aos pés, mas quando a tinha em mãos para fazer mira, Bobbi já tinha sumido; ainda assim, apertou o gatilho, o disparo devastando um pedaço enorme do corrimão da subida. Nisso, nova surpresa: Giro e Dieudonné chutavam as cadeiras a atrapalharem a passagem pelo eixo central, Dieudonné com um revólver em mãos: fora ele o homem que salvara sua vida. "Fiquem no átrio, permaneçam no átrio!", Daniel ordenou, aos gritos, reunindo-se à dupla. Embora furioso, abraçou-os com carinho, grato pela presença. A emoção em especial no abraço dado a Padre di Sofia era idêntica a quando tinham se abraçado após a aventura no avião da American Airlines, a felicidade em se ter seu melhor amigo são e salvo após um grande risco.

- Oh, vocês dois! Não se emendam, hein? - Daniel se sentia engasgado, a cabeça embaralhada por muitos sentimentos. A presença daquelas pessoas a quem tanto amava trazia o melhor de dentro de si. Ao mesmo tempo, sabia que ainda não arrancara Parker das garras de Bobbi, e ao vê-la tão desenvolta correndo pelas galerias, nutria sérias dúvidas de que conseguiria. Precisava aceitar a ajuda oferecida por Giro e Dieudonné, por mais que se sentisse péssimo ao colocá-los na linha de fogo. - Eis o que preciso que façam: deixem a Todos os Santos e chamem a Polícia! Imediatamente! Digam que "Mickey Lenhador" foi encurralado na Todos os Santos, e que precisam fechar as saídas do quarteirão!
- Não há tempo! Não vamos deixá-lo! Escute-me, Legrand… - Dieudonné ia falando, enquanto sua vista tentava pontuar algo acima de suas cabeças. - Somos alvos fáceis aqui embaixo e…
- Aramis foi mesmo morto por Robyn, senhor, ao menos indiretamente. - Daniel balançou a cabeça, cheio de decepção e dor pela dura verdade que tinha para o agente do MI6. - Eu lamento. O autor do homicídio… Foi um crime idiota motivado por uma carta mentirosa deixada no armário do cara. Alguém quis a confusão, porque precisava se livrar do testemunho de Aramis.
- Oh, Deus… - Etienne abaixou a cabeça e se permitiu chorar por um minuto ou dois.
- Como souberam que eu estaria aqui?! - Daniel perguntou ao Padre di Sofia.
- Chegamos ao seu bed & breakfast, mas você já tinha partido. Encontramos um bilhete escrito a batom, e viemos. Daniel, eu não quero que...
- Giro... Meu grande amigo! - Observava-o com a consideração de um filho a olhar para seu velho pai. Daniel soube naquele momento o quanto o amara, o quanto sempre o amara, como se Girolamo fosse o pai. - Amigos, deixem-me partir. Tragam a polícia! Sou grato ao que fizeram por mim, e os amo, mas preciso fazer isso sozinho!
- Olha só, não aceitaremos sua recusa! - Dieudonné exclamou. - Nós vamos contigo, não vamos abandoná-lo!
- É isso mesmo. Aonde um for, os outros vão! - Giro sentenciou.

Daniel correu para a subida com os amigos em seu encalço, e as foi ganhando facilmente. Parecia não se preocupar com o fato de estar desarmado. Ocasionalmente, detinha-se para examinar os corrimões acima, à procura de um cotovelo ou mão à mostra, qualquer coisa a entregar a posição de Bobbi. Uma flecha subitamente rasgou a parte de cima do ombro, partindo-se ao se chocar contra a parede rochosa. Daniel não pôde precisar de onde viera o disparo, apenas concluiu que os três se expunham absurdamente, abaixo da arqueira. Continuaram correndo pela subida espiralada, sem se deterem mais. Daniel conseguiu escutar muito bem a mais dois estalidos da besta, e então a crepitação com a qual as flechas se partiam quando as pontas encontravam rocha nua. Novamente, não soube de onde vinham os tiros. Queria gritar por Parker, mas anteviu que Bobbi provavelmente a incapacitara com cordas e mordaças. Exclamar pela namorada apenas entregaria a localização. Agora, encontravam-se no último andar da Todos os Santos. Apenas corrimões muito velhos impediam a queda impressionante até ao magnânimo eixo central. Procurando não olhar para baixo para afastar as vertigens que o derrubariam tão bem quanto as flechas, Daniel foi vasculhando as galerias que fluíam a face externa do edifício, sempre cauteloso, seus punhos como únicas armas. Finalmente, grunhidos o levaram de volta a dentro, ao beiral, onde encontrou Parker com mãos e pés amarrados, e uma mordaça que a impedira de gritar.

- Você está bem agora, meu amor! - Tentou oferecer algum consolo. Parker encostou o rosto no ombro do namorado, e desatou a chorar. - Vamos, precisamos sair daqui antes que ela...

Bobbi esgueirava-se para fora de uma das pilastras, o lazer da besta fechando mira no centro do pescoço de Daniel. Ela estava a um deslizar de dedo para matá-lo, e o teria feito, não fosse pelo velho Girolamo, que gritou assim que os enxergou sob mira. Automaticamente, Daniel se jogou sobre a atriz, e os dois saíram rolando pelo beiral, parando bem a tempo de evitar uma queda, desviando-se da rota da flecha, que perpassou um pedaço de tábua de rampa e perdeu-se ao cair abismo abaixo. Bobbi virou-se furiosa em direção aos inesperados visitantes, e antes que Giro e Dieudonné pudessem se albergar, receberam os disparos de flecha: Giro recebeu um tiro que lhe atravessou o braço; Dieudonné teve uma flecha cravada numa das coxas. O agente secreto gritou, xingando-a, empunhando a pistola e abrindo fogo; as balas pegaram as pilastras, a assassina se livrando por um triz. Bobbi levou a mão à aljava, para procurar por mais flechas, mas ao ver Daniel investir contra sua pessoa como um trem fumegante, jogou-a de lado. De trás da coluna, ela reapareceu com um machado de aço de cano longo mais fino, extremamente letal. A lâmina chegava a brilhar ao toque dos raios de sol. Daniel evitou o golpe em vertical ao se jogar ao chão, e com a cambalhota, conseguiu recuperar a besta desmuniciada. Utilizando a peça como escudo, ele se livrou de mais três golpes desferidos por Bobbi, que então pareceu desistir e correr para a galeria acima, para a fachada.

Daniel e Parker ajudaram-nos a se deitarem melhor na rampa. Bem distante, vinha o rumor de sirenes, soando aos ouvidos como música. Sorriu brevemente ao considerar que a comoção na catedral, de alguma forma, chamara a atenção das pessoas. Ao passo que o machucado no Padre di Sofia tinha sido somente de raspão, Daniel precisou de cuidado no instante de ajudar Dieudonné. Ele extirpou a flecha, vagarosamente, para que a mesma não quebrasse antes de sair por inteiro da coxa. Sofrível que fosse, a breve cirurgia deu certo, e Daniel atirou a flecha de lado.

- Fiquem juntos! - Afagou a namorada, e então beijou o padre na testa. - Você vai ficar bem, Dieudonné. Você também, Giro. Não posso perdê-la agora!
- Para onde ela foi? - Giro indagou, os olhos fechados, os dentes trincados de dor, a mão no ombro cortado.
- Para fora, através de uma das galerias! - Ele apontou.

Daniel empunhou a besta pelo cabo como o faria a uma rudimentar arma tribal e, antes que começasse a alimentar novas dúvidas, tratou de correr para as galerias para alcançá-la antes que ela se suicidasse, atirando-se do alto. Não havia outro desfecho possível que não o duelo `a morte. Carros de polícia fechavam as vias de acesso a Todos os Santos, e estudantes aglomeravam-se contra os cordões costurados no entorno. Daniel percebeu que as galerias terminavam na saída para as torres e, assim sendo, forjou o caminho até alcançar as duas torres gêmeas as quais ladeavam a fachada principal, ligadas por uma estreita passagem murada. Daniel sentia tontura, as luzes do dia apanhando os olhos, livres dos filtros dos vitrais. Um helicóptero executava rasantes. De lá, a vista da multidão a cercar a rua era espantosa, tão extraordinária quanto a cena do avião da American Airlines tombado na cabeceira um ano antes.

Daniel movia-se com as costas rentes à mureta, atento para não escorregar pelas beiradas molhadas. Nas esquinas mais proeminentes, no topo da igreja, enxergava os baluartes, terraços pentagonais de duas faces, dois flancos e uma gola pela qual as gárgulas se prendiam à estrutura principal da catedral. Daniel alcançava um dos baluartes, quando enxergou a sombra de Bobbi sendo projetada diante de si, machado em mãos, acima da cabeça. Ele se esquivou a tempo, quase escorregando. Manejando a besta, Daniel foi se defendendo muito bem dos golpes desferidos por Bobbi. Ela parecia movida por uma fúria apaixonada. Cada rebatida reverberava nos ossos de Daniel. Tamanha a pressão, Daniel caiu com as costas para a mureta, que impediu uma apavorante queda pelo abismo.

- Tudo o que eu fiz... - Ela se explicava, arfando por oxigênio, apoplética. - Eu fiz por amor! Eu lamento, Daniel! - Ela levantou o machado acima da cabeça para desferir o golpe vertical que certamente romperia a besta e encontraria a cabeça do adversário.

Antes que desferisse o golpe de misericórdia, todavia, Daniel foi mais rápido: rolando para o lado direito, a descida da lâmina encontrou somente as pedras insculpidas. Quando Bobbi conseguiu arrancar o machado do muro, e se virou para tentar um novo golpe, ele continuou um passo à frente. Fortalecido pelo impulso, lançou uma voadora que a apanhou no centro do peito, e a jogou para trás, o peso do machado dando uma ajuda extra ao impacto. No último segundo, a cunha ficou presa à boca da gárgula. Bobbi se viu dependurada, nada a livrar o corpo da queda por vir, que não um pedaço de machado preso à boca de um demônio de dentes afiados. As luvas de couro agravavam sua precária situação, pois as mãos iam escorregando pelo entorno do cabo de carvalho. Daniel se esgueirou na beirada e estendeu a mão. "Por favor, por favor...", Bobbi suplicava, baixinho. Ele chegou a segurar uma das mãos da assassina, mas quando ela tirou a outra do cabo para tentar se agarrar definitivamente às de Legrand, perdeu qualquer ponto de apoio, e o peso do corpo terminou de entregá-la à gravidade. Bobbi despencou para a morte sem protestar. A gravidade virou-lhe o corpo de cabeça para baixo, e caiu de cara para a calçada, a força partindo a espinha como graveto, sangue pintando o cenário num impressionante raio de no mínimo cinco metros. E assim, "Mickey Lenhador" chegava ao fim da linha.

Daniel ficou ali, com as mãos na beirada do baluarte, chocado com o terrível resultado da queda, o corpo de Bobbi prostrado como um boneco de pano com as juntas entortadas em ângulos impossíveis. Os policiais invadiram a Todos os Santos, justamente agora que a batalha fora ganha, e existiam câmeras vindo de muitas direções. Parker veio por trás, lívida e pálida. Daniel a abraçou, o vento dando no casal com muita força, açoitando-os em seu frescor umedecido. Ele a consolou. Quando voltaram `as galerias, conseguiram pontuar os policiais alcançando o mirante da abóbada. Paramédicos atendiam a Giro e Dieudonné. Daniel e Parker se ajoelharam ao lado dos amigos, mas os médicos não lhes concederam mais do que poucos minutos, logo iniciando o trâmite de remoção dos feridos. Ao descerem os degraus para fora da Todos os Santos, o mundo parecia a festa após um jogo decisivo, impressionante contraste ao pesadelo das últimas horas. Sob o sol de uma deslumbrante manhã em Oxford, Daniel examinou os ferimentos muito superficiais de Parker. Quando a atriz se opôs ao pedido dos paramédicos para acompanharem-na ao hospital, a insistência de Daniel venceu a teimosia. "Eu a vejo logo mais, meu amor", e depois que ela se sentou ao lado das macas de Giro e Dieudonné dentro da ambulância, pediu: "Cuide bem de nossos amigos". Exausto, assistiu `a ambulância partir.

Enquanto oficiais tomavam anotações das lembranças de Parker da abdução, Daniel fora acomodado numa sala reservada no prédio da Polícia Metropolitana de Londres, em Westminster. Sua presença atraíra muita atenção, com direito ao sensacionalismo envolvido. Os fotógrafos e profissionais de tabloides não se intimidavam, mesmo mantidos afastados do prédio, gritando perguntas sobre "Mickey Lenhador", se ele fora finalmente apanhado. Uma oficial colocou a cara na porta, e o chamou para tomar o depoimento. Ela serviu café com leite e canela ao copo de isopor, na máquina, e o entregou a Daniel. Ele provou a bebida e espiou pela janela. Parecia conhecer aquele filme, do Natal no ano anterior. A mesma atenção, o mesmo escrutínio midiático, acontecendo novamente. Pela janela na porta, podia contar com uma vista aberta do interior da delegacia. Logicamente, os canais tratavam do mesmo assunto, e Daniel ficou feliz pelos pais de Parker, que já sabiam da libertação da filha.

- Não queremos fazê-lo passar por mais aborrecimentos do que o estritamente necessário. - A oficial iniciou, benevolente. Ela tinha um belo sorriso, maçãs proeminentes, as quais iam contra a gravidade, uma jovem Naomi Watts. - Nós pegamos nosso homem, ou melhor, nossa mulher. Bobbi Chapman é "Mickey Lenhador". A história confere. Ela é britânica, vivia em Oxford em 2004, quando as primeiras mortes aconteceram. O álibi de Bobbi? A fama. Quem suspeitaria de uma…
- Senhorita, por favor. - Daniel ergueu a mão, perturbado. - Eu não acho que seja tão simples assim. A primeira vítima, o artista, Goldman Roehmer… Eu acho que ele tenha sido morto por…
- Por Bobbi Chapman, certamente. - Ela completou, enquanto anotava alguma coisa numa folha de inquérito. - Bobbi transitava pela mesma turminha de Roehmer, Sr. Legrand. O pai de Bobbi é um homem forte da máfia local, e nunca conseguimos pegá-lo. Isso explica os homens que encontrou na Todos os Santos.
- E o motivo? - Daniel não gostava do rumo tomado pela conversa. Caminhava a passos largos para o arquivamento.
- Parker Cowan é a irmã de uma ex-namorada de Roehmer. - Ela respondeu, levantando os olhos para Daniel de maneira minuciosa. - Creio que Bobbi era apaixonada por Roehmer e, de certa forma, quis atingir a ex-namorada.
- Mas como pode afirmar algo assim com tanta certeza?
- Por causa disso aqui. - Ela soltou um invólucro plástico o qual continha uma carta. - Encontramos num bolso interno da roupa dela.

Daniel examinou a carta, basicamente uma confissão dos crimes de 2004 atribuídos a "Mickey Lenhador" e uma declaração de amor incondicional a Roehmer. Bobbi basicamente puxara para si toda a responsabilidade. Pela tarde, a televisão só tratava da chocante revelação da identidade do serial killer. Vestindo óculos escuros e um chapéu, Daniel conseguiu passear desapercebido por entre fregueses de um pub, e assistir `a transmissão direto de Oxford. Imagens de Bobbi com o microfone em mãos, liderando o grupo num show no estádio de Wimbledon, intercalavam as entradas ao vivo da Todos os Santos e da Polícia Metropolitana. Daniel fez sossegadamente o caminho por Londres Central, uma série de lindas construções anglicanas a acompanharem-no o percurso inteiro, expostas de variados ângulos. `A beira do Rio Tâmisa, deteve-se para ligar para Gladys. Daniel reiterou que as coisas corriam bem, e que estava a caminho para visitar Parker. Gladys contou que já conversara com Bill & Gail. Agora, com a saturação de informações de que Parker nada sofrera, haviam sossegado um pouco. Sob os protestos de Daniel, Gladys contou que tentara dispensar Suntee da obrigação de ficar de vigília, mas o adolescente se negava a voltar para casa e, de seis em seis horas, aparecia no alpendre para checá-la. "Vovó, deixe Suntee fazer o trabalho, tudo bem? A gente se preocupa contigo", Daniel contemporizou. Gladys ainda revelou que Robyn voltara com o marido para Cape May, para acompanhar os pais no delicado momento, e somente então Daniel parou para enxergar a eficiência do plano. Com a morte de Bobbi, qualquer ligação com o assassinato de Roehmer não existia mais. De uma maneira impressionante, Bobbi se colocara na cena do primeiro crime, e levara para o túmulo a mentira que livrava a cara da verdadeira culpada. Em menos de meia hora, ele chegaria ao St. Thomas Hospital, e ainda não pensara em como explicaria a Parker que ela corria o risco de ser portadora do vírus da AIDS.

Atormentado pelo dilema, o conflito foi dirimido quando sua mente buscou na adolescência os momentos com Padre di Sofia. Dentre tantas coisas que ele falara, Daniel jamais se esqueceria de Giro, ao conversar com sua versão aos quinze anos, e perguntar: "Você quer o céu para ela? Então você a ama, pois amar alguém é querer que ela vá para o céu". Livre do peso da responsabilidade de fazer a este ou aquele feliz, afinal nada no mundo poderia tornar outrem feliz, que não uma dura missão, Daniel considerou que na árdua tarefa de apoiá-la no dia a dia, perdoando-a pelas faltas e se deixando perdoar pelos seus próprios irritantes defeitos, estariam a caminho da felicidade. Quando se apresentou no serviço de recepção do St. Thomas Hospital, sabia como tratar a questão com Parker. Daniel dissociou o ocorrido na Todos os Santos da questão da AIDS. Ele decidiu proteger Robyn – e, portanto, o nome da família Cowan - ao repassar `a atriz a versão "oficial": apaixonada por Goldman, a falsa melhor amiga ressentira Robyn ao longo dos anos. Fora por ciúmes que Bobbi despedaçara o artista a machadadas, e iniciara a matança a qual assombrara Londres por duas noites no segundo semestre de 2002. Ela pretendera atingir Robyn através de Parker. Duas policiais da Força Metropolitana acompanhavam o reencontro do casal. Para abordar o assunto sobre Aaron, pediu-lhes delicadamente certa privacidade. Deixados `a vontade, Daniel segurou as mãos da namorada e se pôs a contar como começara a se lembrar do ocorrido naquela fatídica noite na estrada. Aaron se suicidara porque se descobrira portador do HIV. Fora por essa razão que o procurara naquela noite, na festa de máscaras: pedir desculpas pelo fim do relacionamento de Parker & Daniel, responsabilidade a qual julgava sua, e desabafar sobre os temores que até então vinha requentando solitariamente. Quando Daniel perdeu o controle na estrada, foi porque acabara de escutá-lo e precisava avisá-la com urgência dos riscos de ter adquirido o vírus também. Ela escutava a tudo, os olhos abismados, o rosto uma máscara de dor.

- Leva anos para se manifestar. Quando os médicos começam a investigar as causas pelas quais alguém apresenta diagnóstico de pneumocistose ou toxoplasmose, por exemplo, a pessoa já deixou a condição de portadora para a de doente de AIDS. - Invocar coragem para apoiá-la parecia ainda mais difícil do que lutar com Bobbi na torre da Todos os Santos, mas sabia que fazia um bom trabalho. - Seis anos se passaram, e existe a possibilidade de o vírus estar incubado. Quanto mais cedo descobrirmos, melhor. O HIV não é uma sentença de morte, Parker, mas se de fato for soropositiva, teremos de tomar os cuidados necessários para que nunca desenvolva a AIDS. Nós dois devíamos nos submeter ao teste.
- Oh, Danny. Oh, Danny. - Repetia, e Daniel escondeu as lágrimas, de rosto baixo. Os músculos de seus ombros doíam, esgarçados, as juntas o torturavam. Queria se mover, respirar ar fresco, mas não conseguia. Na cabeça de Parker, a primeira imagem a lhe ocorrer foi a de uma cortina muito escura sendo cerrada, de modo a impedir a visão tão esperada de um vale muito amplo: seu futuro.
- Independente do resultado, eu jamais me afastaria de… - Ele nem pôde concluir.
- Seria justiça poética, não? - Abraçaram-se, chorosos. - Eu te deixei esperando naquela parada, há seis anos, quando você estava por baixo. Agora, fará o mesmo por mim.
- Você não me conhece? - Rebateu. - Não seja tola. Eu não vou deixá-la. O que se passou, passou-se. Éramos muito jovens, lá atrás, Parker. Fomos vítimas.
- Fica comigo? - Perguntou, com um jeitinho cândido de criança. Daniel não soube precisar se a atriz se referira a permanecer no quarto, ou `a possibilidade de um resultado positivo.
- Fico, sim. - Ele subiu cuidadosamente na cama, e a abraçou.

O médico e as enfermeiras os atendendo eram excelentes. Daniel não precisou aprofundar-se no pedido. O médico cuidou dos detalhes para o procedimento da coleta de sangue, realizado pelo casal naquela mesma tarde. "O resultado sairá em cinco dias", o enfermeiro responsável pela coleta de material prometeu. Parker queria deixar o lugar na mesma tarde, juntar-se ao namorado no bed & breakfast, mas Daniel foi contra a decisão. Com muito tato, soube refrear a impaciência, convencê-la a permanecer no St. Thomas pelo período julgado conveniente pela equipe médica. Ainda alimentada por uma bolsa de transfusão de sangue, o doutor lhe deu uma pequena dose de sedativo que a ajudaria a passar melhor a noite. Daniel segurava as mãos da namorada, quando Parker adormeceu. Passou nos quartos do padre di Sofia e do Agente Dieudonné. Por exigência ferrenha, Giro conseguiu se livrar do hospital com um curativo no ombro e uma cartela de antibióticos, naquele mesmo dia; Dieudonné, por sua vez, precisara de uma cirurgia na perna, e só despertaria no dia seguinte.

Famintos, pararam numa cafeteria na estação de trem para comerem alguma bobagem, mas mudaram de ideia assim que viram imagens da Todos os Santos na televisão. Giro sugeriu comprarem lanches rápidos na Tesco, e embarcaram no primeiro trem a levá-los de volta ao bed & breakfast. A imprensa não sabia onde Legrand se hospedara, a staff do lugar foi solidária, mantendo segredo. Receberam-no com felicitações, e mesmo após instantes tão dramáticos ao lado da namorada, não pôde deixar de esboçar um grato sorriso diante da consideração que lhe dedicavam. Deitados na cama, detidos pela exaustão, confabularam sobre os acontecimentos. Daniel não conseguia manter por muito tempo o foco do pensamento. Se resolvesse revisitar o brilhante cenário preparado por Robyn, a mente logo começaria a ameaçá-lo com uma overdose de saudade, com recordações de dias mais simples em Cape May, manhãs de muito sol e jogos de vôlei na praia. Depois de algumas horas de conversa, meteram-se em silêncio. Giro fazia as vezes de cuidador de Daniel. Sentado num canto, observava-o atenciosamente, os dois absorvidos pela quietude completa. Quando a recepcionista o contatou no quarto, para lhe passar uma ligação dos Estados Unidos, Daniel imaginou que se tratasse de Lefty. A cor em seu rosto desapareceu ao reconhecer a voz de Robyn.

- Olá, Daniel. - A simplicidade do cumprimento soou irreal. - Obrigada pelo que fez pela minha irmã. Ela está bem?
- Foi um terrível choque. - Daniel se levantou para empurrar as janelas de madeira emperradas. Era estranho, observar o mosaico de pedras através do caminho do jardim do bed & breakfast. Com a noite, a névoa surgia para obscurecer o ar pesado e úmido entre os troncos. - Bobbi se voluntariou a morrer e levar consigo a fatura pela morte de três pessoas, apenas para livrá-la da responsabilidade pela morte de Goldman. - Nisso, Giro escutava à conversa com olhos assustados e ansiosos.
- Contou a Parker as razões que levaram Aaron ao suicídio?
- Eu me restringi a falar que ele estava convicto de que tinha AIDS. Eu subtrai seu papel na parte anterior do drama. - Daniel declarou. - Eu acho que Parker já sofreu o suficiente. Vocês já se perderam uma vez, ficaram anos sem conversar. Basta de cizânia e separação, Robyn.
- Obrigada, Danny. - Ela voltou a agradecer, com a voz baixinha e, por um ínterim, quase comovida. - Estou curiosa, sabe? O que disse em relação a...
- Como eu disse, eu não enfrentei a questão de como Aaron teria adquirido o vírus. Hoje, nosso sangue foi coletado por um enfermeiro. - Daniel sentou-se sobre a moldura da janela aberta. - Robyn, eu preciso te perguntar… Allen sabe de sua condição de soropositiva? Quanto a seus filhos…
- Sim, ele sabe de meus segredos. E você também sabe, mas o assume como algo inteiramente diferente. Quando vai entender? Eu não tenho AIDS, Daniel.
- Não, eu sei. - Daniel pigarreou, e corrigiu. - Você tem o vírus, e...
- Eu não tenho um vírus. Eu tenho outra coisa. - Uma pausa. Daniel podia pressentir o que viria a seguir. - Uma coisa que Goldman me passou. E então, assim como Aaron, atormentei-me com a ideia de que tinha o vírus. E arquitetei uma vingança. Eu o matei e contaminei Aaron e a minha irmã, indiretamente; entretanto, foi somente depois que veio a fome, que eu soube...
- Eu não a arrastarei para o mar de lama, Robyn, mas nós precisamos acertar as contas. A polícia jamais saberá, nem mesmo sua família. Ocorre que eu sei, e tudo o que peço é que sejamos sensatos. Pare com essa conversa, você me assusta! Já não foi suficientemente apavorante?
- A sede, Daniel, por sangue. No início, achei que tinha enlouquecido, mas era verdade. E fiz os exames. Fique logo sabendo: o resultado do exame da Parker voltará negativo. Ela não tem HIV ou AIDS; mas ela já vem sentindo a fome há alguns anos.
- A fome. A fome de sangue! - Disse, como se proferisse um absurdo, uma blasfêmia. Giro e Daniel se entreolharam, verdadeiramente terrificados. - E eu suponho que você…
- Não, eu não saio por aí mordendo as pessoas. - Uma risadinha glacial. Ela prosseguiu: - Eu nunca fiz isso. Há formas de se obter sangue dos principais hemocentros do país. Quando nos convertemos, Daniel, entramos para um clube exclusivo. Parker provavelmente sofre para conseguir, porque não sabe ainda que é uma vampira como eu, então deve se virar com bezerros ou carne crua; entretanto, ela logo saberá.
- Por favor, Robyn, não me diga isso!
- A conversão, Daniel. O sexo anal, pois envolve fricção, troca de fluidos e ranhuras... Sangue, compreende? Sua pureza o livrou.
- Meu Deus. - Ele disse mais a Giro do que a Robyn.
- Não que não tenha sido tocado por sexo corrompido. Você o foi, apenas não se lembra: uma mulher mais velha tirou vantagem de você, aos 9 anos ou menos, enquanto esteve longe de sua mãe e avó. Sua mente bloqueou o evento. E embora tivesse seu corpinho de criança in extremis, não é a carne o objeto do pecado. É a alma. E você não podia sequer compreender a experiência apavorante que aquele saco de preservativos imundos que era aquela cadela escrota realizou sobre você. Deve se perguntar como eu sei, não?
- Do que você... - Embasbacado, tentava concatenar certo sentido; porém se perdera completamente. 
- Saberá. Muitas coisas de sua vida, coisas perdidas de si, eu sei, Daniel. Eu soube do trauma. Eu soube do mel. Eu sei que ela chupou você e colocou na boca as bolas e o pênis simultaneamente, ela te esganou e te forçou a enfiar o seu bracinho rabo adentro dela, até a altura do cotovelo, como se quisesse te absorver. Ela torturou você e te humilhou, e após o estupro passou o tempo que tinha te ameaçando e desejando sua morte, pois morria de medo de a verdade escapar. Você saberá disso. e também verá que, quando o resultado do exame vier, virá negativo para HIV. Você já sabe, em seus ossos, que falo a verdade.

Após o fim da ligação, Giro esperou o amigo falar alguma coisa, mas os pensamentos de Daniel o levavam para longe. O padre lhe ofereceu uma garrafinha d’água. Daniel deixou as árvores em paz com a névoa, e lacrou a janela. Só a ideia de se sentar com Giro àquela hora para explicar o que Robyn insistia em dizer parecia para além de suas faculdades intelectuais para compor. Sem se preocupar com diferença de fusos horários, quis telefonar para Suntee e, ao fazê-lo, escutou-o canhoneando-o com palavrões, perguntando-lhe por que desligara o celular e demorara tanto a contatá-lo.

- Porra, não faça isso comigo, meu patrão! - Vociferou. Ao fundo, escutou a voz de Olívia, sugerindo outras perguntas. - Cara, eu não sabia como falar contigo, seria mais fácil uma audiência com o presidente!
- Desculpe-me, amigo, desculpe-me. - Deu uma piscadinha para Giro. Pela primeira vez naquela noite, a máscara retesada do rosto do padre desfez-se um pouquinho. - Terminou tudo bem, estamos fora de risco e nos recuperando: eu, Parker, o Padre di Sofia, o sr. Dieudonné. Escute, Suntee, você tem…
- Claro, meu patrão, tenho ido quatro vezes por dia para checar a dona Gladys. Sua avó e o gato vão bem, mas, porra, você precisa dar uma satisfação a ela, sua avó tá preocupada, ela tá...

Durante a conversa, Suntee sustou a pressão sobre Daniel: o cara mal acabara de sair de uma terrível situação de refém, vida ou morte, e não obstante devesse satisfações à avó e aos amigos, era compreensível que estivesse fora do ar. Satisfeito por finalmente manterem um diálogo, Suntee acabou se desculpando pelo tom exaltado. "Não se preocupe com a Gladys!", o jovem reiterou, "Vou dormir na casa a partir de amanhã". Ao oferecer-se a ficar com a avó enquanto Legrand não retornasse, Suntee sacou um dilema horrendo da cabeça do amigo, abrindo-lhe uma janela de oportunidade para cuidar das coisas mais prementes. A confusão não demorou a chegar. Era madrugada quando Padre di Sofia e Daniel foram despertos por uma ligação do lobby. Chamavam-nos no St. Thomas. Ao apanharem um táxi, os amigos pensaram que se tratava de algo relacionado a Dieudonné; entretanto, ao chegarem ao hospital, viram que o agente estava repousando, fora de risco e em recuperação. O problema fora Parker. Ao saírem em disparada pelos corredores muito brancos e iluminados, rumo ao quarto da atriz, depararam-se com uma macabra cena ao olharem através da janelinha, Parker sendo contida por quatro enfermeiras, com a bolsa de sangue rasgada na boca, a bolsa que ela mesma mordera. Repentinamente, pesou sobre o pé do estômago de Legrand que Robyn não mentira. "Meu Deus", balbuciava consigo, amparado por Giro, afastando-se momentaneamente do quarto, pasmado e confuso. Era todo um novo jogo, um novo terreno. Nenhum dos dois sabia o que dizer ou fazer.

Daniel teve de se recompor; somente ele teria como acalmar a namorada. Enquanto a afagava, deitado com Parker na cama, seus olhos vidrados fitavam o escuro através da janela enquanto a mente voltava a determinado ponto do ano corrente, quando, à época da reaproximação de Parker e antes da confusão, os animais do frigorífico de Elizabeth causaram celeuma ao aparecerem drenados por um predador desconhecido de passagem, de um dia para o outro. "Jesus misericordioso", Legrand pensou, "Fora Parker, tentando suprir a fome, sobre a qual Robyn falara". A presença de Legrand funcionou, e Parker conseguiu dormir com a ajuda de sedativos. No dia seguinte, deixaram o hospital. Giro e Parker foram muito bem atendidos pela Força Policial, que prometeu tomar conta de sua segurança pelo tempo durante o qual escolhessem permanecer em Londres. Parker foi recebida com carinho pela equipe de filmagem, capitaneada pelo companheiro de cena, Barclay Harrison, o mais consternado. O consenso era de que já em janeiro de 2011, o filme, ainda sem título, estaria pronto para lançamento. Parker agradeceu ao suporte dos companheiros, mas parecia decidida a se juntar ao namorado no bed & breakfast. Sendo assim, os três – Padre di Sofia, Parker e Daniel – estavam juntos novamente. A única falta a prendê-los a Londres era o resultado do exame de sangue, ainda pendente. Às vésperas do dia 28, mudando ligeiramente o foco do drama, a banca responsável pelo concurso prorrogou o prazo para a divulgação do resultado das provas, e Daniel e Suntee ganharam mais uma semana extra de expectativas até a publicação definitiva da lista de aprovados.

Na tarde na qual o casal foi chamado ao St. Thomas, Daniel soube que teria diante de si uma bifurcação: ou o resultado retornaria positivo para o vírus e teriam uma árdua caminhada adiante, ou a horrenda hipótese levantada pela irmã se confirmaria, e provaria quão pouco Daniel conhecia dos misteriosos caminhos e mistérios do mundo. Para a segunda possibilidade, Daniel não considerara uma forma de lidar com o desafio, era tudo tão macabro e surreal que sua mente não guardava parâmetros ou alicerces para avaliar o contexto no qual teria diante de si aquilo a que costumavam chamar de "vampiros". Sentados de mãos dadas, eles anteviram, no ato de entrada do infectologista, a resposta a qual tinha para dar. Ombros relaxados, movimentos ágeis, o homem tinha grandes notícias. Parker não era soropositiva.

- Com o tempo, ela se sentirá absolvida deste caos. Dê-lhe algumas semanas. - A maneira gentil e aquecida com a qual o médico falava minimizava até mesmo as preocupações de Daniel. - Parker retornará aos deveres do dia a dia, os eventos se tornarão coisa do passado. Daniel... - Ele pareceu relutar, incerto se invadia uma seara muito íntima onde não lhe cabia avaliações ou conselhos. - Apesar de eu não ter dúvidas de que ela gozará de uma vida plena e feliz, livre de uma doença tão pavorosa, você consegue me entender quando eu te lembro de que precisará aprender a conviver com uma pessoa cuja psique foi profundamente tocada pelo trauma. Você compreende onde quero chegar?
- Eu realmente a amo. - Respondeu, com tocante simplicidade, e apesar de sua declaração representar tudo o que o médico precisasse ouvir para dissipar os medos, Daniel continuou. - Os últimos momentos sobre a Todos os Santos só terá a importância que lhe dermos, e já adianto que para mim, não vale nada.
- Acho muito valorosa, sua escolha. - Ofereceu-lhe uma mão companheira sobre o ombro. - Desejo sorte e felicidade à nova vida a dois.

Uma gama de emoções e sentimentos antinômicos descendeu em peso como tempestade sobre suas cabeças. Eles choravam de felicidade, mas também de medo. "Meu Deus, Danny, no que estou me transformando?", soluçava baixinho, para que somente ele a escutasse. Daniel pôs um braço em torno da cintura dela. Encontraram um fim de tarde fresco e aprazível ao saírem pelo lobby do belo hospital, a calçada lavada pela inofensiva chuva recente, a qual fora embora deixando a atmosfera úmida para sustentar um adorável olor de terra molhada, emanado das árvores de Hyde Park. Transeuntes iam e vinham, e os dois atravessaram a ponte do parlamento para observar o Rio Tâmisa, desapercebidos. O rio refletia um sol diluído, porém ainda presente. Incerto quanto ao que fazer para recuperar o humor da atriz, Daniel começou a praticar as mais hilárias caretas. Assim que o notou, Parker estranhou. Na segunda, começou a abrir um sorriso. Na terceira, dobrava-se em gargalhadas. Daniel então a abraçou, e ambos começaram a chorar baixinho, tristes mas esperançosos de que, de uma forma ou outra, logo mais, o futuro lhes sorriria, pois se tudo ocorria por uma permissão de Deus, Deus sabia melhor, e sabia conseguir o melhor usando estranhos caminhos.

"Eu não quero que se vá, meu amor", a atriz pediu, às lágrimas. Padre di Sofia assistia à despedida, mais reservado nos seus receios, enquanto Daniel servia a mochila com suas roupas e as de Giro. Ele jurara que não custaria a se reunir a Parker. "Não se livrará de mim sob circunstância alguma", insistia, nas vezes nas quais ela o encarava com os olhos cheios de lágrimas. Daniel chegara à conclusão de que faria bem ao se adiantar. Sim, ele poderia aguardar o resultado do concurso já de volta aos Estados Unidos e começar a planejar um futuro para Gladys, Cyrano, Parker e para si, porém, principalmente, antes de encerrar aquele capítulo, precisava encarar Robyn e acertar as contas. Que ficasse entre os dois apenas. Sua ideia sobre a própria honra passava pelo encontro com Robyn, a subida ao ringue para o qual suas vidas haviam sido apenas uma crescente rumo ao grand finale.

Daniel deixou Londres para Nova York sem um plano. Ele chegou no "red eye" que aterrissou no Liberty às 06:00, o mesmo horário que o tornara herói, menos de um ano antes. A turma de carga se encontrava por perto quando Daniel apareceu para apanhar a caminhonete. Assim que o viram, fizeram festa, deixando os afazeres para recebê-lo com aplausos e abraços. Psicologicamente esgotado, Daniel agradeceu os companheiros, e deixou que o levassem ao refeitório para um prolongado café da manhã e bate-papo. Pouparam-no de esmiuçar detalhes, apenas gostariam de saber se Parker ficara bem após a aventura. Eles lhe falaram sobre a loucura que vinha sendo no Liberty, a imprensa rondando, perguntando se alguém sabia quando Daniel voltaria aos Estados Unidos.

Daniel não avisou a avó que chegaria, precisava ver a surpresa estampada no rosto dela, quando ele e Giro aparecessem. Ela parecia distraída, encostada no alpendre, apontando para a frente, orientando Suntee a regar corretamente as flores no canteiro, quando Legrand estacionou a caminhonete quase em frente ao portão de ferro. Os dois ficaram um tempão abraçados, bem sobre a terra remexida do canteiro, Cyrano saltitando e disputando a atenção do tutor com Gladys, Padre di Sofia e Suntee meio de lado, entreolhando-se, gratos por ter dado tudo certo. Giro fez o positivo com o polegar para Suntee; o jovem sorriu e falou, baixinho: "Tomara que as coisas se aquietem agora". Alguns vizinhos e moradores que transitavam pela rua no momento se detiveram para assistir ao bonito reencontro.

- Sei que maltratei você, vovó. - Daniel lamentou, com uma xícara de café com leite em mãos, encostado no fogão. O espaço da cozinha parecia mais arejado e iluminado. - Se eu pedir para me esperar uma última vez... Uma última vez... Você procuraria me compreender?
- Mas Danny... Você já sabe de tudo! O que há para...
- Não há nada mais a descobrir. - Respirou profundamente, flertando com os esboços muito primitivos do plano cujas primeiras linhas sequer rascunhara. - Trata-se de uma questão de honra. Eu preciso conversar com Robyn.
- Agora, você é um homem completo. Você reclamava e se dizia um átomo solto, sem passado, sem história. Agora, é o dono da própria história. Não procure se vingar, Danny. Eu temo pelo que essa moça seja capaz de fazer conosco. Eu sei que gostava dela; entretanto… Ela lutava, não é? Eu me lembro que você ia assistir a Robyn quando ela competia, estou certa? Ela pode te machucar bastante.
- Apoie-me somente uma última vez. - O pedido saiu num tom de súplica. Gladys fora pega em seu instante mais vulnerável. Daniel não partiria para Nova York sem seu consentimento.
- Apenas volte logo. - Não foi a resposta esperada por Legrand, mas tampouco a que temia. - Não temos mais tempo a perder. Os anos passam muito depressa. A hora de retomar a vida é esta, e se perder o cavalo selado, provavelmente não encontrará outro tão cedo. Não se esqueça de seu concurso, e de tudo o que tem a perder. Isso vale para você, mocinho! - Apontou para Suntee, que meneou em afirmativo, respeitosamente, como se sua própria avó lhe tivesse dito a instrução!

Antes de seguir para a arrancada final rumo a Nova York, Daniel e Giro visitaram a passarela do mercado, deleitando-se sob o sol ao atingir seu zênite. Com os olhos na malha ferroviária da Northeast, Legrand ponderava uma porção de cenários para o encontro com Robyn. Simultaneamente, dava-se conta de que o resultado das provas sairia dentro de dias, e se perguntava se, perante um resultado favorável, teria como encarar mais uma grande mudança na vida e deixar Elizabeth para recomeçar noutro lugar com um novo e melhor trabalho. No comecinho da tarde, Daniel e Padre di Sofia desembarcaram na Grand Station, em Midtown Manhattan, sem levarem nada consigo. Eles nem tinham raciocinado em como chegar a Robyn; entretanto, se a psiquiatra se encontrasse na cidade, no mais tardar naquela mesma noite, Daniel poderia confrontá-la e, depois, regressar para casa, para Elizabeth, com a paz de espírito que o permitiria se concentrar em Parker e no que faria consigo a partir dali. Ao caminhar pela grandiosa estação, sobre sua cabeça, caia como uma epifania uma amostra de como a vida poderia ter sido, dos 24 aos 30 anos, e, talvez mais importante, a responsabilidade em mãos para encaminhar o futuro no sentido desejado, para reparar os desvios de rota. Daniel fez um comentário nesse sentido a Padre di Sofia; porém, o amigo contemporizou: "Bobagem, filho, não entendemos os caminhos do Senhor", Giro insistia. Eles se sentiram acolhidos por Nova York ao descerem as belíssimas escadarias para confluírem diretamente no Main Concourse, com suas três enormes janelas de mais de vinte metros de altura cada, e a pintura do céu e constelações na ampla abóboda. No relógio de quatro faces salvaguardado por fachadas de colunas e estátuas de Hércules, Minerva & Mercúrio, sobre a central de informações, viram as horas. Precisavam encontrar um lugar modesto onde pudesse passar as próximas 24 horas.

Daniel escolheu o King's Hotel, o primeiro hotel barato encontrado na entrada do Brooklyn, para descanso. Por U$ 110,00, o lugar tinha seus encantos, um deles a localização, pois se encontrava a apenas três minutos da estação de trem da 9th Avenue. Daniel e Giro fizeram um breve lanche no restaurante do hotel, e procuraram dormir um pouco. O sono de Daniel era interrompido pelo inquebrantável estado de alerta do mesmo, que acordava de quinze em quinze minutos, para lembrar-se de que precisava se informar se Robyn encontrava-se ou não em Nova York. Ele sabia que o Hospital Monte Sinai se encontrava na Madison Avenue, mas não imaginava até a que horas Robyn se encontraria no prédio, ou como poderia abordá-la melhor. Seu sono foi definitivamente interrompido às 15:00 quando, tendo "pulado" os intervalos de quinze minutos, havia conquistado algo parecido a sono. Daniel despertou assustado, e quando puxou o celular, não ouviu nada que não respiração do outro lado da linha. Ele caminhou trôpego de cansaço e susto à janela e, com os dedos frios, abriu um pequeno vão entre as cortinas. A vida seguia normalmente pelas calçadas.

- Como sabe que estou em Nova York? - Disparou, certo de que se tratava de Corliss.
- Não há mesmo como demovê-lo da vingança, certo? - Veio a voz que Daniel aprendera a amar, por mais que pertencesse `a sua inimiga declarada. - Eu preciso provar a você que falo sério quando digo que vou destruir tudo o que ama, se quiser brigar comigo?
- Eu deixei seus segredos morrerem com Bobbi. - Daniel sentiu-se verdadeiramente ameaçado. Ele jamais pensara que Robyn atentaria seriamente contra sua vida, mas agora podia afirmar, sem sombra de dúvida, que ela o mataria, sim, se ela se sentisse ameaçada. - Mas você não pode se escusar de se resolver comigo.
- Tentei ajudá-lo. - Robyn desistiu de firmar uma trégua, e aceitou que o acerto de contas com Daniel encontrava-se a uma questão de horas. - Estarei hoje às 21:00 no Carnegie Hall. - Ela desligou. Daniel permaneceu com o celular no ouvido, pensativo.

Daniel não teria como saber; entretanto, enquanto ele e Padre di Sofia tinham dormido, Suntee sofrera um acidente ao deixar a casa de Gladys para ir pegar algumas camisas em casa, numa saída secundária do loteamento. Um carro saíra sem que o motorista se atentasse aos dois lados ao passar para a estrada; não fora um acidente violento, mas Suntee ralara as canelas e sofrera uma concussão. O motorista se assustara e se evadira da cena. Uma ambulância tivera de levar o adolescente ao hospital em Elizabeth, contra os protestos do mesmo, que perdera o celular e, portanto, um meio de se comunicar imediatamente com os amigos. Em Nova York, Daniel e Giro tomavam canja de galinha numa padaria com velhos ventiladores de teto que pouco adiantavam, quando veio o horroroso impacto: o jornal da noite abria a programação com a cara de Daniel Legrand, por mais que não se tratasse exatamente de sua pessoa a notícia. O volume estava muito baixo, mas bastou a Daniel ver, com muito horror, a inclusões de imagens do Natal de 2009, para compreender que algo ocorrera em casa. Algo na sua mente sofreu um curto-circuito. Meu Deus, Robyn atacara. Ele partiu o celular em dois, e bloqueou da mente qualquer sentimento de luto ou perda. A partir daquele ataque, o interruptor na cabeça o tornara uma máquina de vingança. Tomando a sopa com a cabeça baixa, Giro não captara nada da terrível confusão em andamento, mas soube que algo definitivamente ocorrera quando Legrand deixou seu lugar sem dizer nada e sumindo após o tilintar da porta. Ele olhou para trás, por sobre os ombros, viu imagens da casa de Gladys em Elizabeth engolfada por chamas e, embaixo, a legenda: "Avó do herói da American Airlines morre em incêndio doméstico causado por acidente de vazamento de gás; bombeiros debelaram as chamas". Padre di Sofia saiu correndo da padaria, gritando o nome de Daniel, em pânico por tê-lo perdido de sua vigilância.

Os ponteiros indicavam 22:00 quando Daniel apanhou uma das linhas que faziam a parada na 7th Avenue com 881, onde se localizava a sala de espetáculos Carnegie Hall. Em dado momento, três jovens baderneiros entraram no vagão de Daniel, fazendo galhardeio. Um dos garotos estacionou diante de Daniel. Ele conservou seu olhar vidrado e distante, ao visitante não concedendo qualquer amostra de emoção. Ele sacou o revólver para ameaçar Daniel a entregar a carteira. Legrand reagiu tão automática e ferozmente que o assaltante nem teve chance: teve o .38 arrancado da mão pela pretensa vítima, e Daniel enterrou o cabo com toda a força na face do rapaz. O impacto afundou a parte frontal do crânio. Os outros dois, que vinham aterrorizando outro passageiro, voltaram-se `a cena, imobilizados pelo terror. Daniel avançou contra ambos como uma locomotiva sem freios. Nocauteou o primeiro com a força do corpo pesado. O terceiro fez menção de querer sacar a arma no bolso da jaqueta, mas Daniel o golpeou com a parte de aço do revólver, esmigalhando a cartilagem do nariz. Ele caiu sentado, e Daniel continuou o trabalho com pisadas na cara, detendo-se apenas por causa dos gritos da passageira, histérica ao testemunhar a extensão do estrago. O assaltante perdera completamente a face, maxilares separados e partidos, o nariz dependurado por um fio de músculo.

- Robyn Corliss! - Daniel berrou. - Robyn Corliss! Vocês estão me escutando?! Podem vir para cima, eu não tenho medo! Estou indo pegar a chefe de vocês! Ela pagará pelo que fez à minha avó!

Daniel desceu na Penn Station coberto do sangue dos três assaltantes. Ele saiu pelas escadas a darem no Madison Square Garden. Precisava caminhar pouco mais de um quilômetro até alcançar o Carnegie Hall, e o fez com um único propósito em mente: encontrar a adversária. Ele recebeu olhares preocupados, mas não desviou a atenção ao que havia pela frente por um só segundo. Ao chegar às calçadas da quadra do Carnegie Hall, encontrou-o tomado por elegantes convidados. Táxis chegavam, e partiam no minuto seguinte, em levas, trazendo o público que prestigiaria o espetáculo da noite. A casa de espetáculos albergava três enormes espaços para performances – O Main Hall, com capacidade para quase três mil assentos; o Zankell Hall, para seiscentos; e o Weill Recital Hall, para duzentos e setenta. Naquela noite, Kylie Minogue se apresentaria no Isaac Stern Auditorium, e a nata da elite compareceria.

Não havia como não se impressionar com o Carnegie, um dos mais celebrados espaços culturais de Manhattan, originalmente erguido sem nenhuma estrutura de aço, apenas alvenaria. Daniel destoava de seu habitual público. Enquanto cavalheiros e damas impecavelmente vestidos abriam espaço para a sua passagem, o visitante traçava seu caminho folgadamente pelo foyer de gesso branco e pedra cinzenta, andando sob as aberturas em arcos do teto abobadado, e ladeado por pilastras coríntias, as quais pareciam reservadas ao dono da noite. Daniel tinha os cabelos desgrenhados e os punhos cerrados, pronto para a luta de sua vida. Um cavalheiro se aproximou para oferecer ajuda, e Daniel perguntou "Robyn Corliss, onde a encontro?".

Daniel seguiu acompanhado até ao Rose Museum, um pequeno museu voltado à preservação da história da casa de espetáculos, no segundo andar, tendo aos pés das janelas de bordas arredondadas a West 57th Street. Assim que o deixou às portas do museu, o cavalheiro partiu e os deixou em privado. Excluídos os dois, não havia mais ninguém. Robyn o recebeu com as costas viradas, a atenção para a avenida. Parecia distraída com o movimento na 57th Street. Apenas passava a impressão de entretida. Não precisava que lhe anunciassem a chegada de Daniel, simplesmente conseguia senti-lo. Robyn se virou, esfregando as mãos, um gesto o qual lhe devia ser usual, enquanto psiquiatra, ao dar um prognóstico que transformaria vidas.

- Você foi a responsável, certo? - Daniel não queria perder um só segundo.
- Eu nunca faria uma violência à sua avó. - Ela contra-atacou, sem hesitar. Sacudindo negativamente a cabeça, lamentou. - Insinue isso novamente, e quebro sua mandíbula.
- Você sabe por que eu vim, não?
- Não há como pararmos por aqui? - Suspirou, com os olhos fechados. Quando Daniel lhe respondeu "não", o rosto de Robyn contorceu-se, agônico. - Você conseguiu o que queria. - Robyn concluiu, virando-se para anotar qualquer coisa num guardanapo. A passos fortes que faziam as pisadas vibrarem sob o choque contra o piso de granito, passou ao seu lado e colocou o guardanapo dentro do bolso do paletó. - Não se esqueça de trazer gelo e analgésico, pois você vai apanhar muito.

No bilhete, o endereço de um lugar o qual Daniel não tinha ideia de onde seria. Viu apenas que não parecia distante do hotel onde se hospedara, pois se localizava logo abaixo da Brooklyn Bridge. Sob o endereço, Robyn estabelecera um horário: 01:00. "Gleason's Gym", anunciava o letreiro derrubado cujas luzes de neon não funcionavam mais para o segundo termo, "Gym". O local apresentava-se deserto, ao menos por fora. Ao atravessar a rua deserta para entrar, Daniel percebeu que havia luz no segundo nível da academia de boxe. Ele olhou através das vitrines de tintas descascadas do primeiro andar, mas não conseguiu pontuar coisa alguma, o primeiro piso tomado pelo breu. Chutou a porta, mas não precisava ter se dado o trabalho. Robyn franqueara a entrada a Daniel, deixando-a encostada. Ele subiu cautelosamente as escadas decadentes, guiado pelo tênue feixe de luz a se deitar sobre os degraus da escada, oriundo do segundo nível.

Robyn caminhava rente às cordas do ringue e, ao vê-lo, deu alguns passos para trás, recuando até ao centro. Ela vestia legging preto com cós e pezinho, um body muito justo de mesma cor, luvas de couro marrons nos punhos. Não havia nada mais a ser dito, apenas experimentado. Robyn parecia demovê-lo com o olhar; ela falara bastante sobre a direção a que os acontecimentos os levava mas, tendo chegado a hora, relutava. Daniel removeu calmamente o paletó e o atirou num canto. Até entrar no ringue, acreditou que trocariam algumas palavras; entretanto, conforme descobriria da pior maneira, não foi o caso.

Ele não teve a oportunidade de processar a agressão sofrida, tamanha a velocidade com a qual aconteceu. Robyn escolheu não perder muito tempo, e tirou imediatamente o equilíbrio de Daniel com um direto desferido com a mão de trás, que o apanhou em cheio no queixo. Instintivamente, ele levantou a guarda, e ao fazê-lo, Robyn lançou o cruzado que atravessou a linha frontal da guarda e o acertou no nariz, jogando-o contra as cordas com a violência do empurrão Apesar de confuso, Daniel não havia caído ainda. Robyn veio com o terceiro golpe, o upper, aplicado de baixo para cima, castigando o queixo uma segunda e horrível vez, e fazendo Daniel girar e cair de frente para a lona. Aturdido e patético ao se encontrar de quatro, aos pés de Robyn, levou as mãos ao nariz, e constatou com horror que estava quebrado. Sangue escorria, pincelando mãos e lona com um vermelho groselha. Daniel olhou para Robyn, com um olhar estupidificado de quem não compreendia, e ela ergueu um dos punhos à frente do rosto, exclamando:

- Não sou eu quem pus tudo a perder, foi você! Você sabe como funciona, passou por isso! Um dia, você é jovem e sonha, então quando menos espera, o tempo se esvai sem que seus planos se realizem, os sonhos simplesmente evaporaram! Você teve a oportunidade única de transformar essa realidade! Você vai jogá-la fora aqui! Não faça isso! Fique no chão!

Daniel conseguiu engolir a dor da cartilagem rompida e do malar fraturado. Os olhos lacrimejavam por causa do nariz fraturado, mas já podia enxergá-la melhor. Valente, fez um esforço galante para agarrar as cordas e se levantar. Robyn o esperou, mas não lhe deu oportunidade para recomposição. Encaixou uma eficiente sequência, afinal, atentando-se à posição de Daniel com a perna esquerda para a frente, o jab lançado por ela foi desferido com a mão esquerda, abrindo caminho para o golpe de direto com a "mão de trás", a direita, demolidora ao ser violentamente absorvida pelo rosto do adversário. Ele levou desesperadamente os braços para a guarda, protegendo melhor o rosto já claramente ferido. Robyn concentrou-se na linha de cintura, e veio com força para dentro. A perna de Robyn foi lançada com a força do giro do quadril, curvada e finalmente desdobrada no instante do choque, uma força de impacto absurda que quebrou algumas costelas de Daniel.

Ele cambaleou para trás, mas Robyn o segurou com as mãos na altura da nuca, e o golpeou com joelhadas, primeiro nas coxas, para fazê-lo se curvar de modo a receber a pior parte. Quando conseguiu o que desejava, Daniel encurvado, Robyn meteu duas, três joelhadas no rosto, as quais mancharam a lycra do legging com o sangue a correr em profusão da face. Quando ela soltou a nuca, ele caiu para trás, mas foi detido pelo corner. Deslizou com as costas contra o corner, e foi ao chão paralisado pelo choque. O olhar transtornado dirigido aos lados encheu o coração de Robyn de compaixão. Podia ser Daniel quem tomava a pior parte do castigo; porém ele não poderia sofrer mais do que Robyn.

Apenas agora Daniel entendia que dentre tantos obstáculos, via-se diante do definitivo. Assumiu uma postura defensiva, com Robyn no aguardo para o bote, o corpo na lateral, a guarda alta, os dois braços protegendo a face intacta, as mãos na altura do rosto, o quadril muito ágil num vai e vem inquieto que a qualquer segundo geraria momentum para produzir uma rajada devastadora de chutes. Robyn viu quando Daniel mexeu o ombro, e antes que lançasse o soco, já se abaixara para a esquiva. Ela girou no chão e o pegou com a rasteira em 360º, seu pé desequilibrando a perna de apoio do adversário e o devolvendo ao chão. Daniel caiu pesadamente com as costas na lona.

Daniel engatinhou para o corner, para se sustentar e se levantar a tempo. Quando ainda se via ajoelhado, as mãos nas cordas, Robyn veio por trás e pareceu ajudá-lo a se erguer. Ela fazia o oposto, entretanto. Daniel não compreendeu, mas logo tornou-se evidente. Agora, ela ganhara as costas dele e o tinha para si. Daniel esforçou-se para não deixar que Robyn encaixasse o estrangulamento. Os dois foram tropeçando, ambos de pé, Robyn sempre às costas, Daniel lutando para se livrar do abraço dela, ambos grunhindo desesperados. Quando Robyn finalmente o tinha prendido numa gravata perfeita, ele achou que morreria. Passou a viver segundo a segundo, os dedos cravados no antebraço usado por Robyn para estrangular a vida de seu ser. Os dois seguiram no impasse por muito, muito tempo, de treze a quinze longos, sofridos minutos, quando mesmo sob impossível pressão, Daniel compreendeu rapidamente que precisava de calma para escapar. Ele tentara cotoveladas, mas com o passar dos minutos e a continuidade de Robyn segurando-o por trás, as cotoveladas perderam a força. Daniel sofria por se ver segurado por Robyn; Robyn sofria pelo cansaço envolvido em segurar DanielRobyn finalmente falou, a voz pontuada pela agonia: 

- Você se esquece que eu sei mais sobre você do que você mesmo? Por quem era "secretamente" apaixonado na época da Guarda Costeira? Por mim. Qual a única pessoa que conhece sua tristeza mais secreta? Sou eu também. Eu conheço sua pior mágoa, ainda que não se recorde dela. Sua mãe está viva, Daniel. Gladys mentiu ao dizer que ela morrera. Sua mãe vive, e ela foi minha paciente. E ela me contou aquilo que Gladys gostaria de manter afastado de sua cabeça. Eu sei de todos os seus segredos. - Robyn sussurrava num dos ouvidos. - Desista, Daniel. Desista. Desista. Desista. Desista. - À beira do pânico, Daniel retomou as cotoveladas, apanhando os flancos de Robyn. Ela tomou os golpes com estoicismo, sem aliviar a pressão, sem soltá-lo. - Isso, bata mais, bata mais, bata mais. Não me faz cócegas. Bata mais, bata mais. - Falava, com uma apavorante calma prestes a romper sob a força da água massiva contra uma represa trincada. Ela verdadeiramente suportava as cotoveladas, mas se sentia exausta por vir segurando Daniel por trás, por tanto tempo. - Você era um menino quando o estupro aconteceu. E voltou para casa, com os olhos vidrados, urinando na cama, chupando o dedo. Sua mãe e avó souberam do abuso depois, você contou a elas. O abuso sexual foi o demônio que acompanhou sua vida, da infância à adolescência, a razão de sua autossabotagem. Em cada escolha de caminho, ainda menino, o estupro caminhava a alguns passos às suas costas, sempre o espiando atrás de um beco ou corredor ou multidão. E sua avó tentou protegê-lo. Quando você perdeu a memória em 2004, ela o levou de Cape May, para protegê-lo. Nesse tempo inteiro, você acreditou que sua avó tentava te proteger de mim. Ela quis protegê-lo da lembrança do estupro, Daniel. Ela sabia a natureza demoníaca do abuso sexual perpetrado sobre sua pessoa, quando ainda era um garotinho, e não queria que se recordasse de algo tão satânico. Amor de avó é amor de avó. Pare de lutar. Realmente não tem mais jeito.
- Não. - Respondeu, já a um sopro de desmaiar, veias do rosto pulsando no ritmo do coração descompassado. A claridade de um sol se introduzia perifericamente e, subitamente, foi como se centenas de pessoas, de colegas do Lower Township, ocupassem os assentos ao redor do ringue. 1995 novamente. Na sua mente, não se achavam mais sós; o mundo assistia à luta.

Daniel então encontrou a saída. Vez que não podia se soltar de Robyn sozinho já que ela se fortalecera tanto, resolveu utilizar o corner do lado oposto do ringue como vantagem. Daniel fez impulso e seguiu caminhando com muita agilidade, Robyn estrangulando-o às costas, levada junto em direção ao corner oposto. Quando calculou que se encontravam suficientemente perto, Daniel lançou os dois pés contra o corner e o atrito das botas lhe emprestou momentum para "escalar" rapidamente a coluna, usando a força de Robyn às suas costas como suporte. Daniel executou um mortal perfeito, desafiando as leis da física ao correr verticalmente pela coluna para se lançar num salto de ponta cabeça, bem sobre os ombros de Robyn, a superioridade física da adversária nada podendo contra a gravidade. Ele se libertara de Robyn; ela não morava mais nas suas costas, bem como não morava mais o "demônio" que o acompanhara a partir da infância, atravessando a adolescência e o atingindo até a aquele ponto na maturidade.

Aturdida pelo fôlego de Daniel, Robyn não teve como defender o único bom momento dele no combate, quando Daniel conseguiu conectar uma combinação perfeita na cara, a sequência idêntica a de Buster Douglas ao impor a Tyson sua primeira, amarga derrota aos pés de um adversário que não se deixara intimidar: Daniel desferiu a direita que a fez cambalear, e seguiu com a sequência de esquerda e nova direita, para atirá-la na lona. "Quero que se lembre desse momento, Robyn", Daniel disse, após o primeiro soco, para concluir após a finalização "Quero que jamais se esqueça..." Ele arfava para conseguir falar, o rosto uma máscara arrebentada, banhada por um rio de sangue de cor groselha, "...Do rosto do homem que você não dobrou". Daniel conseguiu derrubá-la, e foi sua única minúscula vitória. Robyn não tinha um único corte, muito embora tivesse perdido momentaneamente a compostura com a reação sobrenatural. A forte agonia provocada pelas costelas fraturadas, entretanto, dobraram-no, e Robyn aproveitou-se para se recompor.

Robyn se determinou a não lhe dar uma nova oportunidade para crescer. O pior golpe veio em seguida, a cotovelada que rasgou os supercílios e fraturou dois dentes molares. A força do golpe foi tão tremenda que Robyn sentiu a violência da conexão reverberar do cotovelo aos ombros. Ela sacramentou a vantagem com um chute frontal que o abriu para a agressão final. Daniel não podia mais erguer os braços, e Robyn precisava pôr um termo à luta. Ela partiu para cima com o arsenal inteiro. Vulnerável, Daniel foi devassado pelas demolidoras combinações com comovente resiliência. Havia entrado num estado de sublimação, para além da dor. Robyn o jogara para fora da pista em 2004 com a ajuda de Aramis e agora, sozinha, destruía suas chances de recobrar uma vida normal, com os punhos como ferramentas. Jabs, diretos, cruzados, ganchos... Daniel vazava-se em sangue. A lona, as cordas, o legging, o body de Parker e os assentos mais próximos eram pintados pelo vermelho da surra. A definição veio de uma estratégia: Robyn abaixou ligeiramente a guarda e se posicionou de lado, criando uma armadilha. Ao cair na armadilha, Daniel lançou um soco que o pôs para frente, exatamente como ela precisava. Quando Daniel o fez, o gancho de Robyn veio como um arco, como uma bola de aço de destruição de construções, de baixo para cima, acertando a cara e o atirando longe. Somente as cordas impediram-no de voar para os assentos. Ao fim do assalto, os olhos de Daniel viravam nas órbitas, ele prostrado entre elásticos, mantido de pé pelas cordas, numa postura de crucificação. Existia a corrida de um cronômetro num placar eletrônico suspenso sobre o ringue. Em menos de um minuto, o tempo se esgotaria. Daniel encontrou significado em ficar de pé até ao fim. Robyn aguardava uma palavra de capitulação. Em agonia, ele convidou: "Dê-me seu melhor!". Os golpes vieram em variedades e direções enlouquecedoras. Seu rosto foi rearranjado e desmontado, a vida virara uma lembrança. Existia a claridade de um sol inexistente sobre a arena, e a sensação de que todas aquelas pessoas de sua juventude aplaudiam e torciam para que ele suportasse. "Oito, sete, seis…", o cronômetro se avizinhava do fim. "Dê-me seu melhor!", ele gritou novamente, e a devastação seguiu sem que seu ímpeto refreasse. "Cinco, quatro, três, dois, um". Estava acabado. Robyn recuou três, quatro passos, incrédula em Daniel continuar de pé, sobre pernas bambas. Ele sobrevivera. Apanhara o tempo inteiro, sua saúde se fora, mas, nos últimos segundos, encontrara redenção. Era assim, na vida, não? Você às vezes apanha os 14 rounds, mas ganha o último. Mildy lhe dissera algo semelhante. E ele se encontrava lúcido, e feliz. Pela primeira vez, feliz. As pessoas, os rostos que haviam gritado e torcido e aplaudido tinham desaparecido, os assentos solitários e poeirentos. Então, Padre di Sofia se assomou, deixando a escuridão da arquibancada e aparecendo sob a luz à beira do ringue. Com olhos cheios de lágrimas, os homens trocaram olhares cheios de emoção. Giro tinha orgulho de seu menino. Reconhecendo o valor de Robyn, Daniel pousou a mão sobre o ombro dela. "Desculpe-me", ele sussurrou. Robyn abaixou o rosto, chorando. Ele passou ao lado dela, levantou as cordas para descer o ringue e encontrou o amigo na passagem entre as fileiras. Daniel e Padre di Sofia se deram as mãos e foram embora.

Nas primeiras horas após a luta, sentiu-se envolvido por uma névoa. Em algum momento da madrugada, ele sentiu Giro o conduzindo através de downtown Manhattan; entretanto, foi na Grand Station, onde, com a ajuda do amigo, sucumbiu nos braços de uma freira. Variando entre consciência e alucinações, a noção de tempo se perdera e, ao ser depositado sobre uma maca para a acolhida no Lower Manhattan Hospital, tão castigado parecia, não houve quem o reconhecesse como o herói do resgate da American Airlines. Imediatamente anestesiado, Daniel só foi despertar da sedação na tarde do dia seguinte, após um número razoável de cirurgias menores. Giro não se encontrava no quarto, no instante do despertar. Quando Legrand acordou, a aflição que a morte de Gladys causara foi tão imponderável que as enfermeiras não tiveram outra escolha, a não ser tratarem-no com uma dose cavalar de sedativos. Novamente, ninguém o reconheceu, e Daniel não fez questão de se identificar.

Quando despertou, foi por volta de meia-noite. Poderia ter se assustado ao se ver num quarto tomado por sombras, corrompidas pelas luzes de aparelhos os quais liam e monitoravam suas condições mas, de uma inesperada forma, o ambiente o deixou mais dócil face à agradabilidade aos olhos. Daniel se achou protegido, albergado pela escuridão, a qual convivia bem com as luzes e, melhor ainda, com o fulgor a emanar de Manhattan. De sua janela, enxergava a calçada do outro lado da avenida, e a faixa de pedestres ao término do cruzamento. A tranquilidade com que os nova-iorquinos navegavam pela vida amenizava suas agonias, e Daniel não custou a encontrar na contemplação do movimento da esquina a fórmula perfeita para se isolar da dor. Havia alguém sentado numa cadeira mais para trás, inteiramente coberto pelo breu. Um barulho de clic, e a fagulha de um isqueiro incensando o cigarro chamou a atenção de Daniel para aquela direção. O fogo revelou o rosto de Padre di Sofia. Ele deu uma profunda tragada, franzindo o cenho. Buscava as palavras.

- Olá, meu filho. - Girolamo arrastou a cadeira para perto da cama.
- Giro... - Com os olhos marejados, o confuso Daniel perguntou: - Não foi um sonho, correto? Vovó morreu?
- Infelizmente, sim. - Ela lhe tomou as mãos nas suas e se permitiu se comover. - Apenas procure se acalmar. Você consegue compreender o que aconteceu, não é?
- Sim.
- Foi um acidente com o gás de cozinha. No dia da tragédia, Suntee foi apanhado por um carro que saía do loteamento por uma secundária pela qual jamais passava alguém, a não ser o moleque, de bicicleta, naquele exato segundo. - O padre o apoiou com o braço nas costas e o ajudou a posicioná-la melhor contra o travesseiro. - Meteram-no numa emergência de hospital a tarde inteira, sem celular. Foi quando ocorreu o sinistro. - As lágrimas cintilavam ao gentil toque das luzes do monitor de batimentos cardíacos. - Ela respirou o gás e morreu disso. A casa se foi em chamas, mas Gladys já tinha ido a óbito. - Giro levou a mão à testa. Agora, ele soluçava, chorando escancaradamente.
- Oh, vovó. - Daniel fez um gutural lamento; foi como se uma flecha atravessasse o coração de Padre di Sofia; ele preferia que a dor fosse na sua carne, não na do menino. - Desculpe-me, vovó. A culpa foi minha, a culpa…
- Cale a boca, porra! - Giro gritou, levantando-se e dando um chute na cadeira. - Você não foi culpado! Ninguém tem culpa, porra! - Caiu na real e lutou para recobrar o equilíbrio. Foi ao leito e deu um abraço no amigo. - Danny, filho… Precisamos colocar nossas cabeças no lugar. Veja… Não tínhamos como saber! Aconteceu! E… - Ele relutou, os olhos indo de um ponto ao outro, atônito.
- O que há, Giro? - Diante da demora, Daniel demandou: - Vamos, Giro, conte-me…

O padre foi andando à janela. Com as mãos na cintura, olhou para cima, como se pedisse diretamente ao Senhor por auxílio. Mordendo o lábio inferior, voltou o olhar a Daniel e iniciou:

- Dois meses após o lance no aeroporto, Gladys me procurou. O acontecimento a deixara preocupada. Eu não sei se, àquela altura, Parker já havia aparecido em Elizabeth, mas ela me procurou para conversar. Sua avó tinha um monte de fantasmas na cabeça. - Padre di Sofia suspirou, esgotado, e se sentou no chão, com as costas para a parede. Em sua posição, as luzes dos postes e da vida exterior deitavam-se bruxuleantes sobre sua figura, num elegante efeito visual. - Falava sobre temer por ti, caso ela morresse repentinamente. Ela escreveu um testamento e confiou uma carta a mim.
- Uma… Carta? - Embasbacado, com os olhos bem abertos, na medida do possível, já que um deles inchara ao tamanho de um pêssego, ele repetiu.
- De certa forma, ela vinha se preparando para a morte, filho. Ela se preocupava em como ficaria, sabe? E, a meu ver, tratava-se de uma preocupação tola, pois você sempre terá a mim; entretanto, ela tomou alguns cuidados, e confiou a mim as orientações para a eventualidade do pior.
- Giro, você acha que…
- Um atentado? - Padre di Sofia fez que não, com a cabeça. - Nada poderia tê-la salvo, Danny. Foi um acidente com o gás de cozinha. É o mesmo que me perguntar se eu poderia ter salvo minha mulher e filha. Como eu poderia saber que um motorista bateria o carro e as mataria?
- Você não gostaria de alterar a história, caso tivesse a chance?
- Não, filho. Deus sempre tira o bem de um acontecimento aparentemente injusto. Naquele dia, o velho Girolamo morreu, para dar lugar ao homem de hoje. As surpresas guardam suas razões; tragédia seria não perceber o quê o Senhor espera da gente. Escute… - Apoiou-se no braço de uma poltrona para se levantar, o ombro ainda ridiculamente dolorido mesmo após uma semana da flechada na Todos os Santos. - Os calmantes o deixarão descansar. Eu preciso de tempo para voltar a Elizabeth, resolver as coisas… Quando vier te buscar, quero ter preparado tudo. Vamos, filho. - Deitou a mão sobre a testa de Daniel e realizou uma oração de bênção. Ao fim, Daniel se sentia mais apascentado.

Alguns dias vieram e se foram. Terrivelmente deprimido, Daniel agora era medicado com ansiolíticos. Padre di Sofia continuava a correr contra o tempo, resolvendo burocracias em Elizabeth; entretanto, Daniel não escutara nada dos amigos ou de Parker, tampouco podia: ali, era-lhe proibido celular, médicos haviam dado ordens de sua recuperação não sofrer turbulências inesperadas, a não ser pela volta iminente de Giro. A bem da verdade, a atriz estivera no lobby e exigira conversar com o namorado. Ao ser consultado, Daniel simplesmente se negara a recebê-la. Não quis vê-la, e não saberia explicar seus motivos. Numa manhã de muito sol, Daniel passava com o andador através dos corredores, no sentido do gazebo do jardim central. Ele esperava para usar a máquina de chocolate, de onde uma enfermeira colhia do mostruário uma barra de Reese’s. Ela sacou o item, sem se ater que o garfo mecânico trouxera mais de uma barra. Daniel se agachou para pegar a barra extra. Examinou o chocolate em mãos, com uma porção de pensamentos na cabeça, quando escutou o rumor de um canudo a sugar alguma bebida grossa, logo às suas costas: "Vou ficar aqui, caso precise de mim", a voz feminina determinou, e os pelos da nuca se eriçaram ao ouvir aquela melodia da qual tinha tanta saudade.

Daniel e Robyn ficaram se encarando por um tempão. Inicialmente compenetrada, ela deixou que um sorrisinho brotasse do canto da boca. Graças a um jogo de sobrancelhas que só Robyn sabia fazer (e que somente Daniel sabia ler), acreditou encontrar-se diante da mesma menina com quem conversara formalmente pela primeira vez nos jogos de praia de 1995, em Cape May, quando Robyn derrotara a outra menina no caratê. A primeira vez que haviam se beijado tinha sido em 1999. Onze anos mais tarde, machucados pelos esquisitos rumos de seus respectivos destinos, a transformação em suas almas parecia tão evidente quanto as manchas arroxeadas em suas caras. O amor, apenas o amor proibido não mudara, de 1995 a 2010. Provavelmente, jamais mudaria.

- Eu não conseguiria ficar longe de você. Você me ganhou naquele dia em 1995, quando tínhamos 15 anos. "Eu gosto muito de você", lembra-se de ter me dito? - Robyn indagou, e Daniel fez que sim, entristecido e emocionado. - Eu não poderia destruir a única pessoa que genuinamente gostou de mim. Eu não sei se se sente da mesma maneira hoje, Danny, mas não tenho dúvida que, naquele instante, sentiu-se assim. A "sabedoria de crianças", é o que dizem, e é verdade: nunca enxergamos tão bem as coisas quanto quando aos quinze. - Ela fez uma pausa. A eletricidade podia ser experimentada no ar. Robyn abreviou a expectativa. - Eu jamais machucaria sua avó. Eu precisava lutar contigo, e nós lutamos, mas jamais faria mal a sua família. Preciso que não tenha dúvidas disso. - Daniel chorou, e Robyn também. Os dois adversários de morte, que haviam trocado murros, estavam abraçados, unidos após a sangrenta batalha.
- Eu lamento por tudo, Robyn. Eu não queria ter feito de inimiga alguém a quem amo.
- Danny... Hoje, pusemos um fim à nossa briga. - Afirmou, vacilante. Para sua inestimável alegria, Daniel concordou, meneando em concordância. Robyn reparou em como ele parecia esgotado, mas logo soube como poupá-lo. - Todo mundo pode perder uma luta. Acontece, faz parte da vida. Aceitamos e seguimos em frente. Não é verdade? - Daniel fez que sim. - Não se preocupe com os próximos anos. - Robyn contou, prestes a recuar e deixá-lo descansar. Ela tirou algo da bolsa, e ofereceu ao paciente. Era um jornal. - Você e seus amigos da East Side deixarão Elizabeth em breve, Danny. - Robyn grafara o destaque com caneta porosa vermelha. A lista dos aprovados acabara de sair. - Parabéns pela aprovação. Sabe, perdemos tantas lutas quanto ganhamos outras. Na verdade, perdemos até mais. A vida segura uma pessoa pela camisa e bate até deixá-la no chão. A vida bate ainda mais duro do que eu bati em você, Danny. As coisas podem parecer incrivelmente injustas e cruéis, porém elas só o são parte das vezes. Mas a vida não é todo o tempo má. Parte das vezes, é maravilhosamente gentil. E você não pode desperdiçar a parte boa, remoendo a parte má. Pensar apenas na parte má tornará tudo mal. Entendeu? - Daniel abaixou o rosto, as lágrimas borrando as letras grafadas nas frágeis folhas do Courier Post. Robyn girou a maçaneta para o caminho de pedras que levava à saída, e a luz invadiu o corredor com um brilho ainda mais esfuziante. Ela ainda se virou, para dizer. - Danny... Eu gosto muito de você.
- E como... - Daniel balbuciou, embargado pela emoção. - E como se faz para esquecer a parte má?
- Você se concentra numa tarefa interessante o bastante para merecer seu foco. Torne-a hábito. Quando menos esperar, a vida parecerá maravilhosamente gentil novamente.

E assim, Robyn se foi.

04. Volte ao mundo.

Na manhã seguinte, Padre di Sofia veio buscá-lo em Nova York. Psicologicamente, Daniel havia sido estabilizado; fisicamente, sarara das pequenas cirurgias. Em Elizabeth, ficaria na casa de Giro. Gladys fora cremada; haveria uma cerimônia de despedida em Cape May, em cuja praia as cinzas seriam atiradas. Emocionalmente devastada pela recusa do namorado em vê-la, Parker não suportava mais o vai e vem entre Londres e Estados Unidos. Barclay Harrison, o colega de elenco, tornara-se um amigo de confiança e, diante da gravidade dos problemas, decidira acompanhá-la na volta aos Estados Unidos. Uma vez em Elizabeth, Suntee reencontrou o amigo assim que ele e Giro desceram do avião. Inconsolável, Suntee suplicava perdão. "Você não fez nada de errado, amigo", Daniel repetia e repetia. Giro tinha as mãos nas costas do jovem. Após muita insistência, a tempestade de sentimentos no rapaz feneceu. Em trio, foram para a casa de Padre di Sofia. À mesa, reunidos para o café, as emoções haviam sido amortecidas e podiam ir direto ao ponto das coisas práticas a serem feitas. Suntee recebeu de Daniel o jornal grifado de Robyn. Um pouquinho de sol para iluminar a tensão do encontro: seu nome e os dos demais constavam da lista de aprovados com pequenas diferenças de posição. O nome de Daniel Legrand surgia na 16ª colocação.

Após a homologação do resultado no diário oficial, só cabia aos vencedores a espera da posse. A Coordenação de Recursos Humanos começaria a receber exames e documentos na primeira quinzena de setembro; a cerimônia da posse aconteceria no dia 29 daquele mês. À noite, ao se recolher ao quarto extra preparado por Giro para sua estadia, antes de dormir, Daniel pensava em Parker, nas suas responsabilidades perante a namorada. Ele também revisitava a conversa final com Robyn, e quando se recordava de Corliss aparecendo no corredor para pegá-lo afanando a barra de Reese’s, sabia que ela tinha razão sobre absorver a parte má para não perder a parte boa. Ainda assim, algo na luta dos dois deixara um ferrão na alma. Ele recuperara o passado do qual não conseguira se lembrar, mas perdera parte da puridade que o ajudara a manter a mente clara, ao longo de todos aqueles anos no limbo do Aeroporto Internacional Liberty. Cabisbaixo e tristonho, Daniel olhava fotos da avó e falava em pensamento com Gladys. "Cyrano, Cyrano", repetia também, sorrindo ao pensar no gatinho no céu com vovó.

Antes da cerimônia de adeus à Gladys em Cape May, Daniel visitou o orfanato. Lefty não lhe deu nem tempo para justificar a demora: foi logo abraçando o homem como se o filho pródigo tivesse à casa retornado. Daniel e Lefty tiraram a tarde para relembrar... A primeira vez quando estivera lá para adotar o anjinho com trissomia, uma tentativa de recuperar a ex-namorada; as vezes seguintes, quando Parker começara a se tornar uma lembrança cada vez menos nítida, e Mildy, a nova namorada, passava a ocupar o espaço dela, nas tardes chuvosas, quando Mildy & Daniel assistiam ao pôr do sol sobre os avantajados telhados do gatil; Daniel descrevendo para a namorada o que sua visão capturava para os lados da praia.

- Levarei essas lembranças para sempre comigo. - A noite começava a riscar o céu estrelado sobre o Atlântico, a praia era aplainada pela brisa fresca soprando direto do mar. Daniel voltou da caminhonete com uma lembrança. - O álbum de fotos. Você é a mãe, e portanto ficará melhor em suas mãos. Eu não tinha verdadeira noção do que havia perdido, até rememorar os bons momentos com sua filha. Sem a Mildy, eu jamais teria voltado a olhar para mim, depois da separação de Parker. Sua filha me motivou a continuar, foi a responsável por eu ter conseguido me formar e, mais tarde, passar no meu primeiro concurso, na Guarda Costeira. Foi em nome de Mildy que estendi a mão para aqueles meninos da East Side, e hoje passo adiante o bem que sua filha fez por mim.
- Continue a passar o bem que alguém fez para você para frente; e o mal também, mas antes, converta-o em bem, e só daí passe adiante. - Lefty recebeu o álbum com lágrimas nos olhos, e o apertou bem forte contra o peito. - Porque, você sabe, os demônios, ou seja, as coisas más que nos perseguem e ocorrem, eles também são ministros de Deus. Eles O odeiam, mas o Senhor em infinita sabedoria tem um propósito até para eles, porque cada demônio que nos acompanha é uma oportunidade para nos reforçarmos no amor a Deus a cada vez que lhes damos uma negativa. Entende, meu filho?
- Toc, toc… - Giro anunciou a entrada, para a felicidade de Lefty. Os dois velhos amigos se abraçaram. Padre di Sofia se juntou a Danny, as mãos sobre os ombros dele. - Alguém precisa de um pai por aqui? Ou melhor, de um padre? Você já soube que nosso garoto passou no concurso?
- Gladys está orgulhosa! - Ela não continha a excitação. - Bem, os senhores sabem que vão jantar minha canja de galinha, certo?
- Yes! - Inusitadamente, Giro deu um salto com o braço para cima, e eles riram muito; um momento leve e revigorante em meio a emoções tão densas e complicadas. À mesa, a sensação de normalidade veio para debelar a insanidade dos últimos eventos.

Parker foi procurada por Bill & Gail Cowan assim que retornou aos Estados Unidos com Barclay Harrison ao lado. Os pais ofereceram a casa em Cape May para a filha e o amigo ficarem pelo tempo necessário, mas nada a demoveria de seu compromisso de reencontrar Daniel. O primeiro lugar no qual pensou foi na casa em Elizabeth e, agora em ruínas após as chamas que ela vira a consumindo pela televisão, a atriz testemunhava que pouco restara do lugar que lhe fora tão caro no último ano. O alpendre era a única parte remotamente semelhante a como fora. Barclay deu as mãos à amiga e eles fizeram o cuidadoso caminho entre destroços até o plano onde ainda existia a cadeira de balanço de Gladys, a mesma onde Danny Legrand sonhara tanto com ela, uma brisa de romantismo a qual ocorria uma única vez a vida inteira. Parker se sentou na cadeira e desatou a chorar. Barclay a abraçou por trás numa tentativa honesta e tocante de consolá-la. Eles combinaram que seria melhor seguirem para a cidade praiana; lá, os Cowan cuidariam bem da filha, Parker reveria a irmã, e Robyn poderia ter conselhos valiosos para enfrentar o intrincado período de luto.

Em Cape May, Daniel e Giro chegaram mais leves do jantar com a maravilhosa Lefty. Certo de que precisava agir agora, Padre di Sofia o chamou na passagem para a cozinha e forneceu ao seu filho espiritual a carta lacrada deixada por Gladys. "Não se cobre para lê-la", Giro avisou, com os olhos bem expressivos fixos nos do rapaz. "Naturalmente, quererá abrir o envelope para ler, e quando o fizer, faça longe dos outros". Reiterando seu incondicional amor a Daniel, o padre o abraçou e, dando-lhe socos na parte de cima das costas, insistiu que tudo concorreria para o bem. Ao repousar, Daniel ficou deitado de lado na cama de solteiro, examinando a carta fechada em mãos. "Vovó…", dizia, baixinho, e lágrimas mornas rolavam salgadas até a boca e narinas.

Uma data foi acertada para a missa em sufrágio à alma de Gladys, e ocorreria na praia, no próximo domingo. A cerimônia ganhou as bocas dos cidadãos da cidadezinha, estendendo-se de volta a Elizabeth, e Padre di Sofia compreendeu que haveria um comparecimento em peso, pelo fato da notoriedade de Daniel, afinal de contas, era o filho de Cape May que os deixara orgulhosos ao virar herói nacional um ano antes. Na semana antecedente à missa, Daniel sentia que os dias se escoavam mais demoradamente; todavia, sabia que não passava de força da ainda fragilizada imaginação. Por tantos anos, falara de Elizabeth como o limbo, e agora percebia que mesmo quando Elizabeth parecera a ilha onde passaria o resto da vida, no fim, não passou de um capítulo, um rito de passagem necessário ao crescimento Chafurdara tanto somente na parte má que se esquecera da parte boa, os muitos fins de tarde no alpendre quando Cyrano o caçador de borboletas arruinava as mudas plantadas por Gladys no canteiro, e ele se dobrava em gargalhadas, ou os momentos de descontração com a turma de carga do aeroporto. Uma tarde, Giro sugeriu que voltassem ao velho colégio abandonado, para a cobertura sobre a qual haviam conversado alegremente numa manhã de 1995. Assim eles o fizeram e, uma vez tendo diante de si a visão inabrangível da praia infinita, finalmente ocorreu a Daniel perquiri-lo sobre a vida de Giro antes do sacerdócio. Ele respirou fundo, provando que aguardara o momento. O entardecer acontecia deslumbrante, um amarelo de gema descendendo para trás do Atlântico para a chegada triunfal de uma noite estrelada.

- Eu fui um homem rico e feliz. À época, eu era mais jovem que você. Eu casara cedo, ela havia sido minha namoradinha do bairro. - Giro o conduziu com uma mão sob o braço a uma bancada da qual teriam como se sentar para assistir ao anoitecer. - Nós tínhamos muitas posses; entretanto, o mais importante, eu a amava, queria cuidar da Joy, cuidar da Simone. Uma vez, eu e Joy brigamos por uma besteira qualquer. Coisa de casal, sabe? - Ele indagou, procurando-o com um olhar. Daniel sorriu um pouco e fez que sim com a cabeça. - Havíamos passado um dia sem nos falar, quando a Joy levou a Simone para trazerem uma pizza de downtown Cape May. Eu escutei um barulho horrível, na saída do quarteirão. Simone morreu na hora, tentei conversar com a Joy, ela só disse que tinha frio. - Padre di Sofia apontou para cima. - Elas foram tiradas de lá e levadas de helicóptero ao hospital, mas não deu certo.
- Não foi sua culpa, Giro. - Daniel o amava tanto que tinha de amenizar a dor de Padre di Sofia de qualquer forma.
- Lógico que não, mas não importa. - Ele deu com os ombros e continuou: - Não consegui mais retomar a vida, simplesmente não havia mais prazer nos bens que haviam ficado para trás, uma vez que minhas mulheres tinham sido tiradas do meu convívio. Elas davam sentido ao resto da vida; sem elas, eu só tinha posses e, portanto, não tinha nada, pois posses não são nada. Eu entrei no seminário, meio tarde.
- Deus supriu o seu… - Daniel ia dizer, porém Giro prosseguiu.
- Não. Eu orava e me empenhava em levar uma vida virtuosa. Eu queria conhecer a Cristo. Eu ficava refletindo os mistérios aos pés da imagem de Maria Santíssima. Eu conhecia as orações, eu rezava a missa como se minha vida dependesse daquilo. E nada acontecia. Eu me sentia morto por dentro. - Os olhos de Giro marejavam. Seus olhos voltavam-se ao horizonte, no infinito, no recanto da alma de onde vinham as lembranças. - Sacerdócio não fazia sentido algum, aquilo me soava como uma perda de tempo. Até uma manhã, quando me tranquei na capela determinado a não sair de lá sem uma resposta; diante da cruz, rezei e supliquei a Cristo para me explicar por que tudo acontecera… O que ele queria de mim… Entende? Rezei e rezei. Naquela mesma noite, tendo adormecido diante do altar, fui despertado por batidas assustadas e curtas na porta. Era um menininho assim, Danny. - Giro elevou a mão a uma pequenina altura do chão para expressar o tamanho da criança. - Sujinho, assustado, pedindo para dormir na igreja pois não tinha onde ir. Eu deixei. Na noite seguinte, ele regressou, acompanhado de uma garotinha. - As palavras se atropelaram, Giro embasbacado, chorando. Daniel abriu a boca, espantado, dizendo, num sopro: "Meu Deus, a Mildy?". - Uma menininha cega, Danny, isso mesmo, a Mildy. Cega após tomar uma surra do pai. Novamente, suplicava por um lugar onde passar a noite com a amiguinha. E, de repente, quando eu nem tinha me dado conta, eu havia construído o maior orfanato na história dos Estados Unidos. Você me entende? - Padre di Sofia se levantou e ficou sobre a mureta da cobertura. Agora, a lua atingia o centro da tela que era o céu estrelado. - Ou seja, a resposta para minha vida veio na esteira de uma oração. Você quer uma resposta? Você precisa rezar, filho, não importa se não crê. Reze! Peça sua resposta.

No meio da semana, Daniel deu uma desculpa esfarrapada a Giro e Lefty, dizendo-lhes que passaria a manhã caminhando na praia. Intencionava visitar o espaço onde, antes do incêndio, a casa da avó existira. Ele não teve problemas em chegar a Elizabeth e, àquela altura, o assédio midiático sobre o lugar recrudescera. Uma réstia de névoa prevalecia suspensa sobre as ruínas, como um manto meio translúcido, mesmo em sua densidade bege. Caminhando à beira dos destroços, Daniel hesitou em se aproximar do alpendre meio perpendicular a ainda preservar sua função de servir à cadeira de balanço, como se nada tivesse ocorrido. As flores e gramas tinham virado as cinzas crepitantes sobre as quais caminhava. Pensou na jornada de Giro, e embora recalcitrante em fé, fez uma prece silente. Pediu a Deus para ajudá-lo a pinçar o que se esperava de sua pessoa a partir dali. Jamais teria como se ordenar padre, pois, diferente do ocorrido a Giro, a janela de tempo de Daniel passara; entretanto, o Senhor poderia falar a seu coração. Ele se segurou à cerca e passou por cima, atravessando os escombros no sentido do alpendre. Seu coração ficou minúsculo, como o cintilar das estrelas admiradas por ele e Padre di Sofia na cobertura do Lower Township, na outra noite. Teria julgado a visita uma perda de tempo, até aprender que Deus dava no silêncio as melhores respostas. Um movimento mais ao lado de onde existira o quarto da avó chamou a atenção, e então, uma cena terna e encantadora o fez cair de joelhos e chorar de felicidade. "Cyrano!", ele gritou, ao ver o gatinho preto, mais magrinho e um pouco assustado, indo aos braços do tutor. "Cyrano, você escapou!", exclamou, beijando-o no focinho achatado. "Nunca mais vou te deixar, garotinho. Nunca mais!", e o embalou nos braços, na altura dos ombros. Legrand não sabia ainda, mas a resposta fora dada, por mais que a ficha só fosse cair mais tarde. Eram 14:00, uma tarde nublada, quando voltou ao orfanato, para o alívio de Lefty e Giro. Padre di Sofia ia começar a amolá-lo com reclamações paternais, até vê-lo descer da caminhonete com Cyrano nos braços. Giro colocou as mãos fechadas na cintura, seu olhar severo de pai se transformando num sorriso triste e grato. Estendeu as mãos para receber o gato. "O senhor precisa de ração e sono num lugar quentinho, esse seu tutor é maluco!", Padre di Sofia dizia, encarando o anjinho, enquanto voltava para dentro pela passagem que dava para a casa paroquial. Com a compreensão de mãe, Lefty deu um tapinha no rosto de Legrand, e o apanhou pela mão: "Fico feliz que tenha dado certo; vem, vamos entrar, você também precisa comer. Sua namorada tem ligado para cá".

"Ele não quer falar comigo, mas não fiz nada!”, Parker vociferava com olhos arregalados e indóceis, parada no corredor de casa, enquanto os pais tentavam consolá-la. De braços cruzados, apoiado na porta do terraço, Barclay Harrison se segurava para não se intrometer num momento indevido, e apenas observava. Tendo tentado tranquilizar o coração da filha, Gail falhara; mas a deixava esperançosa o fato de Robyn vir para a casa dos pais por ocasião da missa para Gladys. Ela chegaria a qualquer momento daquela tarde, com Allen e os sobrinhos. Quase da mesma idade, as duas irmãs se compreenderiam; Robyn conhecia as palavras certas a chegar no cerne de Parker. Barclay e Bill se entreolhavam. Como homens, havia um ponto a partir do qual era prudente deixar uma mulher descarregar a emoção. Os pais desceram à cozinha, Gail se voluntariando para preparar um chá para a filha, restando somente Parker e o colega no terraço da mansão praiana.

- Ele passou por muita coisa, e agora perdeu a avó, você precisa… - Ele se aproximou, segurando nos joelhos as mãos da amiga. - Olhe para mim. Não há conversa quando as duas pessoas não desejam diálogo. Eu vim para cá por sua casa. Eu me preocupo contigo.
- Eu sei, Barc. - Chamou-o pelo nominho carinhoso que insculpira para o solícito amigo. - Eu amava a Gladys, como acha que ficou meu coração? Ele me julga responsável? Seria isso?
- Não, nada disso. Provavelmente passa por uma severa crise existencial, Parker. Convenhamos, as coisas pelas quais esse cara passou! - Argumentou, com a testa franzida.

Subitamente, anunciou-se o rumor de pisadas em porcelanato, muitas pessoas chegando pela sala de estar no térreo. A algazarra infantil indicou a presença da irmã com a família. Parker e Barclay trocaram sorrisos, ambos agradecidos pela entrada da sempre forte Robyn num necessário momento. Na casa dos pais, Robyn virava a mocinha que sempre fora a princesa dos Cowan, e se comportava como a soberana do lugar. Beijou os pais nos rostos. Bill e Gail abraçaram os netos e fizeram festa. Vestido em um suéter amarelo, Allen chegou para abraçar os sogros por trás; era como uma cena perfeita de um filme de Frank Capra. Robyn tirou os saltos, ficou descalça, e subiu correndo as escadas para o terraço. Ao empurrar a porta de correr, Robyn deu-lhes um sorriso sensível e curtinho. Parker retribuiu, mas imediatamente sua curiosidade adquiriu tons de intriga ao notar os roxos num dos olhos e no canto da boca da irmã. Robyn abriu mais o sorriso e foi se achegando, brincando:

- Um ligeiro acidente no caratê. Devia ter visto a cara do… da outra menina. - Então, apontou com o indicador para o olho direito, fez uma pose como uma modelo fotográfica, e continuou: - O que acha, meus machucados novinhos caíram bem em mim? "Robyn guaxinim"? - Parker e Barc riram.
- Obrigada por ter vindo, maninha! - Levantou-se com o braço oferecido por Barclay. - Cadê o Allen e as crianças? Papai e mamãe os raptaram?
- Meio cedo para usar essa palavra. - Ela fez a piadinha. As irmãs se abraçaram. - Fique calma, você terá sua chance, nós o pegaremos no domingo, ele não vai ter para onde fugir da gente.
- Eu só queria que ele me contatasse! - Com urgência, lutava para se explicar. - Por que Daniel se intrigou comigo?
- Ele é um menino sofrido, você sabe. Não lide com Daniel como se falasse de alguém como Allen, como o Barclay. Ele não pensa ou se comporta como um homem crescido e normal, querida, não é um homem mentalmente desenvolvido. Eu não queria falar assim dele, mas...
- Oi, Robyn! - Barc colocou a mão no pescoço da irmã de Parker e a beijou na face.
- Oi, querido, gostou de voltar para casa? - A psiquiatra indagou, a que Parker deu alguns passos para trás, para vê-los melhor.
- Voltar para casa? Vocês se conhecem? - E, olhando para o amigo, perguntou: - Você já esteve em Cape May?

Nisso, as crianças irromperam no terraço. Fazendo festa, Parker se ajoelhou com os braços abertos para acolher os sobrinhos; Barclay e Robyn abriram espaço e assistiram à terna cena com humor e cumplicidade. Os pais e o marido de Robyn chegaram ao pé da passagem naquele segundo; Robyn e eles se entreolharam, e ela deu uma piscadela, como que prometendo que, a partir dali, os ânimos melhorariam. Ela viera para ajudar. Robyn sentou-se no chão, com as pernas dobradas, ao lado da irmã, e prometeu que sairiam naquela noite para relembrar a adolescência mágica de ambas à sombra dos coqueiros e ao sabor das marés.

Daniel se entretinha, ao entardecer, caminhando pelas calçadas do bairro do orfanato. Cyrano descansava ao pé do fogão da Lefty, após ter enchido a pança com porções de whiskas, ou "uísquis", o jeitinho engraçado com o qual Gladys, em vida, referia-se à comida do gato: "Meu filho, não se esqueça de comprar a ‘uísquis’ do Cyrano!", recomendaria, ao deixar o alpendre para pegar a caminhonete para a Walmart. Quanta saudade! Daniel queria assistir ao pôr do sol da cobertura do Lower Township. Antes que desistisse, pois seria uma longa caminhada, a torre do relógio já fora enquadrada no seu campo de visão mais amplo, protuberando por trás de uma manta de coqueiros. Faltava muita caminhada, mas não demoraria a alcançar o conjunto de prédios abandonados que um dia fora o colégio onde deixara suas melhores recordações. Involuntariamente, foi bater no jardim de uma casa abandonada. O estado das lâminas de vidro jamais teria indicado o abandono do imóvel, pois apresentavam-se limpas e perfeitas; bem como não o teria indicado o esmero com o qual o jardim perdurava como uma visão de frescor e correção, cuidado pela gente da construtora que adquirira o imóvel. Daniel soube que o local fora desocupado pela placa fincada pela imobiliária. Chamou a atenção uma gata cinzenta idosa no parapeito externo de madeira da janela, olhando para dentro, com um olhar perdido e preocupado.

"Ela foi deixada para trás", uma menina, que saia pela porta de trás da propriedade do outro lado da rua para pôr o lixo fora, disse-lhe: "Foi morar na rua, mas todas as tardes volta, talvez esperando encontrar as portas ou janelas abertas novamente, os antigos donos aguardando na cozinha. Quem entende os gatos?". Ela deu com os ombros e voltou para dentro. Daniel abriu a portinhola e foi se sentar nos degraus a darem a um deck cuja margem ficava suspensa sobre o jardim. Ele deu dois tapas na coxa, chamando a nova amiga. Sem vacilar, a gata foi andando esguia entre vasos de jarro até chegar ao lado de Legrand. Ela acomodou a cabeça na perna de Daniel, e ele começou a acariciá-la. A gata ronronava ao toque. Há muito tempo, ninguém se incomodava a lhe dar atenção, carinho... A noite chegou, luzes radiando de dentro para fora através das janelas das residências, a agradável rua numa sintonia de famílias que conversavam ao redor de suas mesas após o dia de trabalho, e Daniel permanecia com a gata. "Cinzentinha", ele resolveu chamá-la. Ao se aperceber que chegara ao ponto de escolher um nome, entendeu que Cinzentinha pertencia a ele tanto quanto Daniel pertencia à gata. Sentia a dor do animal abandonado, e compreendia que, mesmo distintos, eram semelhantes em suas esquisitas jornadas pessoais. Daniel decidiu cuidar da gata e levá-la para a paróquia. Logo após a posse, se fosse removido para outra cidade, Cinzentinha se juntaria a Cyrano. Ao fim, não ocorreria exatamente daquele modo, mas bem parecido: em pouco tempo, a resposta que Deus lhe dera ganharia nitidez para lhe mostrar seu novo caminho.

Giro e Lefty comoveram-se ao escutar a narração emocionada através da qual Daniel explicara seu sentimento ao vê-la solitária no jardim da casa à venda. Não custou a Cyrano pôr a cabecinha para fora da porta, para ver a razão da conversa no quintal. O gatinho pareceu se encantar pela amiga felina. Ele chegou meio ressabiado, querendo cheirá-la, Cinzentinha sacudindo a cauda, aguardando a próxima cartada do pretinho. Quando Cyrano foi meter a cara na tigela d’água, Cinzentinha deu um pulo nas costas que fez o gato enfiar atrapalhado o rostinho no pote. Cyrano disparou contra Cinzentinha, e os dois acabaram brincando e se divertindo no chão da cozinha. Logo ali, Daniel começou a se sentir um pouco melhor. A cena daquele animal de rua há poucas horas perdido e assustado interagindo agora com uma nova família, à vontade por se ver num meio onde seria tratada com dignidade e amor, desatou um nó na sua garganta. Respirava melhor, mais oxigênio corria pelos pulmões, os nervos reconheciam novamente a eletricidade da vida, da mágica mascarada por trás do amanhecer, da beleza de se estar vivo e poder fazer coisas como subir à cobertura de um colégio abandonado para contemplar, por um ínfimo espaço de tempo, as incontáveis maravilhas do universo infinito, mesmo que houvesse infinitos maiores do que os outros, do Atlântico a ditar a cadência da vida em Cape May ao mundo interior de complexidades e contradições de Daniel. Toda a parte má a qual o assolara e o impedira de encontrar paz, todavia, só o deserdou completamente mais tarde, naquela mesma noite, quando, após o jantar, levou os sacos de lixo para os coletores da calçada. Lefty, Orlando e Giro já tinham se recolhido e repousavam, Cyrano & Cinzentinha inclusive, ao pé do fogão na cozinha quentinha, quando Daniel se lembrou dos sacos na cozinha. Ele deixou a casa segurando os sacos e, após acomodá-los nos coletores corretos, ao retornar pelo caminho da porta dos fundos, pelo quintal, deparou-se com a gata acordada, no último degrau, o terceiro, da entrada, esperando sua volta. Ela precisara de um só gesto de carinho para que devolvesse a Daniel incondicional suporte. Ele tomou a gata no colo e voltou para dentro. Balançando-se na rede, com a atenção no estrelado céu de uma noite fria absolvida de precipitação, começou a rir ao pensar na traquinagem de Cinzentinha ao enfiar a carinha do Cyrano no pote. Risos se tornaram lágrimas, vertidas no curso da colagem de imagens a alternarem a brincadeira entre os animais com os momentos mais difíceis da vida – a solidão, o amor não correspondido, inicialmente por Parker; posteriormente, por Robyn, Mildy morrendo de leucemia sem o namorado sentado ao lado, pois se encontrava em coma após a confusão na pista, em 2004, os últimos anos, a se sucederem sem que conseguisse fazer algo substantivo para si ou por Gladys, Robyn o segurando por treze, quinze intermináveis minutos, sussurrando-lhe as coisas sobre uma mulher mais velha que o teria violentado quando bebê, longe da mãe e avó. Daniel revisitou as celas onde seus demônios o tinham aprisionado. Chorou e chorou a ponto de se curvar de dor; entretanto, quando acabou, as portas haviam sido abertas. Tendo perguntado ao Senhor o que Ele esperava de sua pessoa, Daniel soube que voltaria aos seus gatos. As linhas de sua vida definitiva começavam a tomar forma.

Parker se escusara da mesa. Ela deixara Robyn, Allen e Barclay na diner, jantando um peixe frito, afirmando que precisava ir ao banheiro. Ela o fez, todavia não quis voltar. Do outro lado da pista, dava para ver a praia a partir da margem da primeira curva. Às costas da atriz, o rumor típico para uma casa daquela natureza, um ponto de encontro, um lugar para amigos, para comemoração. As gargalhadas, as vozes altas em conversas, faziam bem a ela, pois, ao passo que se sentisse esvaziada por dentro, era um lembrete de que a alegria sempre se encontrava ao alcance. Robyn apareceu alguns minutos depois, mas se aproximou com um olhar amável e solidário. Ela não a fuzilou com perguntas. Abraçou-a por trás, na linha de cintura, e encaixou o queixo no ombro da irmã. Elas se entreolharam e, em dado instante, começaram a rir.

- Muitos pensamentos nesta cabecinha? - De dedo em riste, Robyn o encostou na testa da irmã. - Eu sei que ainda se sente confusa, maninha, mas vai melhorar.
- Logo após minha libertação… - Ela introduziu, pausando um minuto como que evocando as recordações mais nitidamente. - Daniel falou de Aaron, sobre os motivos do suicídio. Você sabia que ele tinha AIDS?
- Ele não "tinha" AIDS. - Robyn fungou. - Ele poderia ter adquirido o vírus HIV, mas certamente não teria a doença e, a bem da verdade, não tinha vírus algum. Ele acreditava ser soropositivo, e o desespero o fez saltar daquela ponte em São Francisco.
- Pois bem. - Parker quis ficar frente a frente com a irmã. Os cones de luz do faroleiro iluminavam periodicamente a costa, a brisa marítima uivava ao encontrar a curva da pista. - Eu também não tenho HIV, mas…
- Eu sei que está confusa, maninha. - Sorriu timidamente, solidária e triste. - Tem medo de me dizer, certo? Você tem outra coisa. A mesma coisa que eu tenho, e eu estou aqui para te ajudar.
- Robyn, você também?
- Nós éramos muito novas, maninha. Nós nos antagonizávamos por causa do Aaron Lang, era um troféu para a gente. Eu… - Robyn meneou negativamente com a cabeça e falou: - Eu sei quem foi o primeiro da cadeia. Você se lembra de Goldman Roehmer? Ele me agraciou com um presente extremamente raro e, ao voltar para cá e competir contigo por Aaron, terminamos compartilhando a exata mesma condição.
- O que… Qual o nome que se dá a isso? - A atriz parecia genuinamente aterrorizada.
- Você não envelheceu um único dia desde a conversão em 2004; jamais envelhecerá. Olhe para mim, maninha. - Robyn se afastou um pouquinho e abriu os braços. Pela maneira como a luz irradiada pelo faroleiro corria pela pista e a apanhava em cheio, o cardigã azul escuro de mangas longas vestido por Robyn parecia reforçar a fala dela: - Eu não lhe pareço a mesma Robyn do começo da década? Claro, refiro-me à aparência. Eu… Eu mudei, aqui. - Apontou para si, o indicador e o anelar contra o coração. - Eu não sou mais a mesma Robyn selvagem, há as crianças, o Allen…
- Robyn, o que eu vou fazer? Então essa é a resposta? É por isso que eu vim fazendo coisas insanas ao longo dos últimos anos? Atacando bezerros na calada da noite, qualquer coisa para não fazer o mal a uma pessoa inocente? - Parker não conseguia vocalizar, por mais que lutasse. A irmã a ajudou.
- Não, maninha, você não vai se transformar num morceguinho, nem vai trepidar diante da cruz. - Neste exato segundo, as duas riram um pouquinho, minimizando até onde possível a absurda tensão. - Nós não usamos esse termo que quase saiu de sua boca. Uma vez dentro do clube, você se torna parte daquilo que chamam de "Os Legisladores". Metrópoles inteiras nasceram sob a sombra dos "Legisladores", Nova York inclusive, os rumos do mundo são escolhidos e ditados pelos "Legisladores". Nenhum mal virá de encontro a ti, maninha. E, ademais… - Robyn a segurou, colhendo-a com um braço sobre os ombros. - Eu vou ensiná-la a se alimentar. Não precisará fazer mal a ninguém. Temos acesso aos hemocentros, então…
- Meu Deus, quanta loucura, quanta loucura!
- Parker, não seja infantil! Não vê a sorte? Você não conhecerá doenças, não conhecerá a velhice, a morte… O mundo é um playground para pessoas como nós! - Ela justificou, mas o tremor na voz indicava que Robyn não tinha tanta certeza que imortalidade e uma existência livre de tristezas e dores eram uma bênção.
- O Daniel, ele… - Novamente, pensamentos de Daniel Legrand a atravessavam como lanças. Parker sentia saudades da doçura, do amor, da pureza daquele tão peculiar solitário à margem do mundo face às circunstâncias do destino o qual os unira.
- Eu me preocupo com Daniel, perco noites de sono pensando nele. - Robyn o definiu pelo ponto de vista conferido pela sua dolorosíssima ausência: - Ele foi meu maior adversário, pois as coisas lindas que disse a mim iam tão de encontro a quem sou hoje que ofereciam o contraste perfeito para que eu me enxergasse novamente através de olhos puros. Eu e ele sempre estaremos conectados pelas nossas diferenças, e precisamos um do outro. - E então, após se abrir tão singelamente, Robyn novamente controlou um pouco o peso de tão pesadas revelações ao brincar um pouquinho, indicando o olho roxo. - Por mais que ele tenha me dado este presente! Mas não se preocupe, ele apanhou mais, eu o derrotei!
- Robyn, por Deus, vocês… Vocês brigaram?
- "Brigar" não descreveria muito bem; no nosso caso, lutamos mesmo.

Ocasionalmente, escutava-se o ziguezaguear de carros passando em velocidade na estrada e só ao fundo o rumor da festa na diner. As duas se voltaram para trás ao se atentarem a pisadas de sapato crepitando sobre o gramado do outro lado da pista. Era Barclay, parando um pouco à beira para olhar para os dois lados, antes de atravessar a pistas. Parker reagiu com um susto, dada a conversa; Robyn parecia estranhamente à vontade, como se se tratasse de um momento acordado anteriormente entre ambos. Houvera um minuto durante a chegada da irmã à casa dos pais no qual eles haviam se cumprimentado como se já se conhecessem, ao menos fora essa a impressão. Agora, ela teria certeza, e por razões que mal teria imaginado.

- Venha para cá, Barc querido. - Robyn estendeu o braço e o mexeu os dedos da mão, convidando-o com um sorriso. - Eu e maninha atingimos o ponto a partir de onde não há retorno. A verdade, quando começa-se a contá-la, deve ser dita até ao fim. - Barc se achegou, timidamente, e só naquele segundo ergueu os olhos à Parker, ligeiramente embaraçado. - Estávamos falando de você, não é, maninha?
- Como assim, Robyn? - Completamente perdida, viria agora a ter a surpresa definitiva.
- Olhe bem para seu amigo, seu colega de elenco, Parker. - Robyn foi para as costas do homem com as mãos nos seus ombros, e continuou: - Você não fez a associação entre os rostos porque é demasiadamente extravagante; entretanto, recorde-se: a partir do momento da conversão, não se morre, não se envelhece. O que acha que ocorreu a Aaron quando ele saltou da ponte?
- Eu saltei da ponte, Parker, e descobri, após ter sido levado à margem, que mesmo após um afogamento eu continuava a existir. - Barclay Harrison descerrou as cortinas para a revelação. - Eu não morreria, mesmo que tentasse.
- E então, os "Legisladores" vieram. - Robyn retomou. - Aaron não poderia continuar a ser Aaron; civilmente, deixara de existir. Cheryl e Adam enterraram um caixão vazio. Deram-lhe uma nova existência, uma nova identidade. Realocaram-no. Uma vez que você é convertido, você se torna um dos senhores deste mundo, maninha. Nada é impossível, principalmente desaparecer sob uma nova identidade.
- Para minha nova vida, precisava voltar como ator. - Aaron sentia uma enorme gratificação ao contar: - Eu sabia o valor das artes, na sua vida, e, como artista, teria uma janela para voltar, mesmo que tivesse de esperar tantos anos para isso. E mesmo que… - Pareceu golpeado nos rins, ao fechar os olhos com força, em agonia. - Mesmo que eu não pudesse visitar papai e mamãe, vê-los, abraçá-los, dizer que nunca deixei de amá-los… Eu voltei, Parker, mas para algumas pessoas Aaron Lang continua sob as águas do Golden Gate de São Francisco.
- Meu Deus… Aaron. Eu não quis ver! - Com as maçãs do rosto banhadas de lágrimas, ela falava, freneticamente. - Quando o vi no set, na primeira manhã de filmagens, ocorreu-me, "Já o vi antes".
- Você vê como eu amadureci? - Indagou, com entusiasmo nos olhos. - Quero dizer, consegue nos imaginar um dia conversando a três? Depois de todas aquelas confusões e trapalhadas de nossa juventude?! - Perguntou, insistente, e os três riram, um suave, belo momento, sinal de que não havia nada fora de alcance da misericórdia do destino maturado. - Eu mudei, Parker. Eu tenho vergonha de tê-las ferido. - Apertou a mão de Robyn e, então, a de Parker. - Se eu puder fazer um pedido, Parker, eu gostaria de que me deixasse provar que não sou tão horrível quanto a figura da qual se lembra, nos anos 90, no começo dos anos 2000. Eu mudei. - Apertou a mão dela, comovido, reiterando: - Eu mudei, nós mudamos. Hoje, a Robyn é uma mamãe. No meu caso, cresci sob o molde da amargura de me resignar a ver meus pais à cautelosa distância, definhando, sem poder me aproximar para lhes contar o quanto os amo e estou bem. Nós somos melhores, agora.
- Parker, há coisas sob o céu para além de nossa capacidade de compreensão, e somos uma mostra desse milagre. - Robyn a sacudiu com leveza. - A partir de agora, sua confusão vai fenecer, você se sentirá melhor. Cuidaremos melhor um do outro.
- E Danny, pessoal? - Sua voz chorosa exigia saber. - E Danny?
- Maninha, você custa a enxergar pois está muito envolvida emocionalmente. Eu sou uma psiquiatra e meu olhar pode ser clínico quando quero. Ele não é o homem para você. - Robyn apertou os braços cruzados contra si, com frio. Ela estava emocionada, olhos marejados. - Se você o ama, deixe-o ser ajudado, mas não lhe exija a maturidade que se esperaria de um cara normal como o Aaron ou o Allen. O senso de Daniel, seu senso de realidade é alterado e hipersensível, o que era de se esperar de um sobrevivente de abuso. Houve o estupro sofrido nas mãos de uma mulher. A avó Gladys tentava cegamente protegê-lo de tanta ferocidade, foi por isso que o arrancou de Cape May assim que ele perdeu a memória. Ela não queria que o neto se atormentasse, lembrando-se, mas agora ele sabe.
- Então, Robyn, se ele sabe, ele pode melhorar… - A defesa de Parker faria o asfalto chorar de pena; verdadeiramente precisava salvaguardá-lo, mas a realidade se materializava muito rápida e implacavelmente na fria sensatez da irmã mais centrada e forte.
- Ele não vai melhorar tão fácil assim. É um menino admirável e amável, mas burro feito uma porta. Não sabe se cuidar, não sabe o que é melhor para si. Eu lhe dei uma surra mas ele continuava a voltar para levar mais, Parker. Ele não é uma pessoa normal. - Subitamente, Robyn girou os olhos, fitando o céu, e explicitou a ironia no impasse: - E olhe que somos três vampiros falando do cara. Vampiros afirmando: "Esse cara não é normal". - Os três deram sorrisos pela metade, meio ressabiados, meio entretidos.
- Eu quero conversar com Danny na missa da Gladys. - Determinou, tremulando minimamente com a cabeça.
- Ele não terá como fugir da gente. Vocês conversarão. - Robyn a abraçou de frente, Aaron as abraçou em seguida. - Ora, ora. Quem diria, hein? Dez anos depois, a "gangue" reunida.

Parker e Aaron teriam um momento exclusivamente para si mais tarde, após terem regressado para a casa dos Cowan. Robyn desceu com o filho no colo; Allen, com a garotinha. Quando Aaron e Parker iam abrindo as portas do banco traseiro, Robyn pôs a cara na janela e pediu que aproveitassem para conversar, entregando-lhes a chave do carro. Aaron tomou o molho de chaves no mesmo segundo; era-lhe imperativo conversar mais intimamente com a ex-namorada. Ele e Bobyn trocaram olhares cúmplices; Parker permanecia enrijecida, enlutada. A psiquiatra afagou a irmã com as costas da mão e lhe explicou que a hora de os dois se entenderem chegara. "Boa sorte", murmurou para Aaron antes de se virar para entrar em casa com a criança. Atrás do volante, Aaron ligou o som e guiou vagarosamente o carro através do portão. Correndo através da avenida que riscava o litoral de Cape May acima do estuário, antes da praia à vista pela janela do lado, Aaron tinha em mente um lugar para mostrar à ex-namorada. Quando Parker entendeu aonde o ex-namorado a levava, seu coração se estilhaçou. O pobre Aaron, agora Barc Harrison, dava-lhe uma prova de sua dor ao estacionar do outro lado da rua que dava para a mansão praiana dos Lang. No som, uma balada triste e romântica chamada "Who do you tell", de Tamia.

- Aaron, pela graça de Deus você vive! - O carinho com o qual se inclinou para abraçá-lo na linha do peito detinha uma inédita qualidade fraterna. - Nós éramos selvagens, mas nunca quis seu mal.
- Eu faria tudo diferente, se pudesse recomeçar. Eu não as teria ferido. - Então, pensando melhor, Aaron foi mais exato: - Na verdade, não machucaria ninguém. O tempo é mesmo o senhor da razão, Parker. De um jeito estranho, ele nos transforma.
- Eu sinto muito pelos seus pais. - Uma lágrima solitária escorreu e se alojou na covinha.
- Eu gostaria de fazer algo, mas dentro das circunstâncias, meu nome é Barclay Harrison. Aaron Lang morreu na Golden Gate naquele 2004. E é melhor assim. - Fez um gesto com o rosto em direção à casa dos pais. - Eu não imagino o transtorno à cabeça deles, caso reaparecesse com minhas razões. Minhas inexplicáveis razões. Você realmente não me reconheceu em momento algum durante as filmagens em Londres?
- Talvez a "semelhança" tenha cruzado minha mente; entretanto o absurdo da possibilidade me sacava a ideia da cabeça. Estranho, não é? Eu e Robyn vivíamos brigando por você; hoje, saímos para jantar com as crianças da Robyn. Meu Deus, o tempo… Para onde vai, Aaron? Para onde vai o tempo?
- Temos o tempo do mundo agora. - Um inesperado, luminoso sorriso trouxe o velho, belo Aaron de volta à vida. Se Robyn tivesse visto aquele olhar durante as filmagens em Londres, ela o teria reconhecido na hora! Ele falou: - E se já somos melhores em menos de dez anos, imagine daqui para frente. Parker… - Ousou segurá-la na mão. - Eu imagino o quanto ama Daniel. Apenas me prometa: se não der certo, pode me dar uma outra chance? Para retomarmos de onde deixamos? Será melhor agora!
- Oh, Aaron! - Ela soluçou, lágrimas correndo e borrando a maquiagem. Eles se abraçaram. Durante a tempestade de emoções, Aaron a segurou delicadamente pelo queixo, para encará-la. E então, o beijo aconteceu, ao som daquela bela música. Parker se recompôs, ambos meio constrangidos, mas aceitou o abraço do ex-namorado.

O domingo chegou glorioso, um gracioso dia de sol, uma verdadeira manhã de praia, codornas trinando nos coqueiros, um ar quente e saboroso amanteigando a atmosfera com um convite à vida; todavia, predominava um admirável tom solene face à missa a acontecer nas próximas horas. A cerimônia tivera a estrutura montada numa parte mais aplainada da praia. Daniel se recordava do lugar, pois certos troncos de coqueiro que um dia tinham servido como pilares às barracas perduravam ali. Sim, fora naquele lugar, em 1995, onde Robyn lutara. Padre di Sofia conduziria a missa e, antes de saírem da casa de Lefty em direção à praia, Daniel se admirou na forma com a qual Giro preservava certas posturas e modos com os quais se recordava dele, ao pensar nas conversas sublinhadas pela ventania forte sobre a cobertura do Lower Township, na primeira metade dos anos 90. Padre di Sofia lhe dera um terno para a ocasião, e Lefty encontrara um jeitinho de colocar um sorriso, tímido que fosse, no seu rosto cansado e ainda marcado pelos golpes de Robyn. Giro recebeu as cinzas de Gladys numa urna. Preparara-se uma rampa de madeira sobre o píer de onde as cinzas seriam atiradas às marés. Daniel se afligia, preocupando-se com o que fazer caso esbarrasse com Parker, e pensava nesse detalhe quando o inevitável ocorreu. Parker se pôs à frente de Legrand quando ele descia a rampa para a parte de dentro da barraca, para atravessar à passagem para a arena onde se daria a missa. A atriz vinha ladeada por Robyn e Barclay. Allen se punha alguns passos atrás, de mãos dadas ao casal de filhos, um menininho e uma garotinha. Parker ia abrindo a boca, trepidante, os olhos injetados de um vermelho típico a quem vinha chorando a dias. Daniel abaixou o rosto e tentou passar ao lado; porém Parker foi mais rápida e o segurou pelo pulso.

- Você vai falar comigo agora! - Parker demandou, seu tom de voz subindo alguns nós. - Eu não fiz nada para feri-lo, por que me ignora?! Quem pensa que é? - Daniel conseguiu se desvencilhar e, trôpego, desceu através das mesas e cadeiras da barraca, para fora, para a praia aberta. Estupefata, Parker procurou pela irmã. Robyn mantinha os olhos tristes e angustiados nas costas do perturbado ex-adversário. - Robyn, pelo amor de Deus, o que eu faço? Eu não sei como lidar com isso! - E a abraçou, desesperada. Se alguém poderia socorrê-la, era a irmã; Robyn não apenas lidara com Daniel, ela o vencera.
- Então não lide com isso agora, querida. Barc… - Robyn sinalizou ao ex-namorado, apontando para a irmã, como se dissesse: "Não tire os olhos dela, cuide dela". - Tudo a seu tempo, deixe-o ir, deixe-o ir, ele está muito perturbado. 

Padre di Sofia saudou os presentes. A sociedade de Cape May comparecia em peso, as pessoas profundamente sentidas pelo calvário de Daniel, pois tinham vindo a conhecê-lo e admirá-lo pelas boas ações. Sentindo-se deslocado em roupas tão elegantes, ele estava posto um pouco atrás de Giro e dos acólitos, acompanhando a cerimônia de um lugar mais elevado ao lado do altar. Num fugaz momento, Daniel ousou erguer seu rosto, revelando-se a imagem do abatimento; foi quando, ao visar a multidão à frente, distribuída nos bancos, pontuou a Robyn. Ela o vinha observando, atenciosamente, e quando eles se encararam, esboçou um curto, desolado sorriso no canto da boca. Robyn realmente parecia devastada. Daniel sorriu entristecido, lembrando-a de que, por mais confuso que se sentisse, era um homem grato por vê-la ali. Nos borrões púrpuras já meio diluídos em suas faces, o segredo que os unia e o qual só os dois, mais Padre di Sofia, conheciam. Robyn e Daniel haviam lutado ferozmente; ninguém o conheceria mais tão intimamente quanto Robyn depois de um acontecimento tão definitivo.

- Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém. Queridos irmãos, tomo emprestado um evangelho pascoal por caber tão bem às perguntas que a despedida de nossa irmã Gladys Legrand, que nos deixou para se unir à felicidade completa no Senhor, deixa-nos na sua esteira. Jesus nos fala hoje desta realidade de dupla face do mistério pascoal: tristeza & alegria, morte & ressurreição. Vejam, essa dinâmica, a passagem de morte à ressurreição, não é algo opcional, não se trata de um rito a que possamos escolher. Se você quiser nascer de novo, ser verdadeiramente filho de Deus, algo precisa morrer. E aí somos chamados a mergulhar na realidade do Cristo que morre e ressuscita. Aqui, Jesus se encontra na última ceia e se refere `a tristeza dos apóstolos. A tristeza se dá quando perdemos algo que amamos, não? - Giro parou para olhar para trás, buscando Danny. Robyn notou o instante, e se arrepiou. - Os santos padres nos recordam: Deus nos deu a tristeza de presente, porque sabia que o homem podia pecar, de tal forma que, tendo perdido a Deus com o pecado, pudesse, na tristeza, cair em si e retornar para a casa do Pai. Aqui, os apóstolos vão perder o Cristo, pois Ele vai morrer, e ficam todos entristecidos porque sabem que aquele a quem amam partirá. Mas Jesus promete, "Vossa tristeza será transformada em alegria", e usa esta comparação extraordinária para explicar a dinâmica do mistério do sofrimento, a comparação de uma mulher no parto. Vejam, nós, infelizmente, vivemos numa sociedade na qual, muitas vezes, as mulheres preferem um parto cesariano e indolor. Vamos perdendo contato com essa realidade tão natural e tão bela. A mulher sofre, a criança sofre. Mas, logo em seguida, esse sofrimento se torna alegria. Nós também somos chamados a viver as dores do parto do nascimento do homem novo, da mulher nova dentro da gente, e é exatamente aí que enxergamos a farsa do atalho do "Vamos evitar o parto natural, vamos para o parto cesariano, um parto indolor, analgésico". Muita gente precisa forjar um atalho, mentindo para si de que pode viver um vida no Espírito Santo, uma vida movida pelo Espírito Santo, sem passar pelas dores do parto envolvido em matar o homem velho, a mulher velha. Não, filhos, não há vida no Espírito Santo feita somente de alegrias. Não é possível, faz parte de uma dinâmica desejada por Deus, porque Deus, que nos criou sem nos pedir nossa opinião, não quer nos salvar sem nossa colaboração. Sim, Deus quer matar o homem velho, a mulher velha, o egoísta dentro de mim, mas a redenção não virá sem que eu de fato abrace a cruz e queira, queira entrar nesse caminho difícil, porém cheio de alegria e esperança, afinal não estamos sozinhos. O Cristo virá conosco, estaremos verdadeiramente juntos a Ele, e o Espírito Santo nos dará força, pois movidos pelo Espírito Santo daremos morte ao homem velho para viver a vida nova. E durante as dores do parto, conduzido à vida nova, assim como cada criança que, dada à luz, chora, também choraremos "Aba, Pai", como nos ensina São Paulo na carta aos Gálatas. Não temos um espírito de servidão de escravidão, mas um espírito de filhos, que querem clamar "Aba, Pai". Seremos filhos de Deus, no Seu filho Jesus, e o Espírito Santo nos dará vida nova. Portanto, coragem, não tenham medo, nossa tristeza se tornará alegria. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.

No momento de jogar as cinzas nas marés, Daniel teve de vencer a inércia da dor e timidez para liderar, indo à frente com a urna em mãos, com Giro, Lefty e Orlando vindo logo atrás. Com dois movimentos, Gladys foi completamente atirada ao leito, carreada pelas marés menores e espumosas, colhida a um mar de um azul perfeito. Após a conclusão da missa, Daniel não tinha um destino certo; obviamente, não desejava voltar imediatamente para a casa. Giro respeitou o estado de espírito do amigo. As pessoas conversavam e se solidarizavam, já transitando e se encontrando no calçadão para cima da praia, quando Robyn o enxergou subindo pelo caminho de lâminas de troncos que davam firmeza e conforto à subida através da areia para o calçadão. Daniel a enxergou também, e se viu numa encruzilhada. Por mais machucado que se sentisse, não conseguiria simplesmente passar pela Robyn. Ela sabia de sua força sobre o coração do ex-adversário. Face a face, encarando-o duramente, ela falava baixinho:

- Por favor, Danny, não faça isso com a Parker. - Ela o fisgou, os dedos no queixo, para obrigá-lo a ficar com a cabeça levantada. - Não é muito justo, você não concorda? Você pode estar bravo comigo, eu entenderia, mas…
- Eu não estou bravo contigo. - Abreviou. - Jamais ficaria bravo. Robyn, eu amo muito você. - Afirmou tão diretamente que lhe tirou o fôlego.
- Eu quero muito bem a você. Eu estou preocupada. Eu não quero seu mal.
- Você fica comigo? - Agora, ele falava como o Danny de 1995, o Danny de 15 anos, o garoto confuso em relação aos próprios sentimentos, que esbravejava xingando-a quando Robyn não o deixava escapulir com um chocolate furtado do Walmart, mas que também por ela devotou amor ao vê-la naquele dia de sol na praia durante os Jogos Escolares. - Eu amo você. 
- Danny, você não sabe o que diz. Você está muito confuso. É normal, a cabeça ficou embaralhada. - Em resposta à fala de Robyn, Daniel começou a recuar, com os olhos cheios de lágrimas ressentidas, sacudindo a cabeça como uma criança magoada e maltratada. Sim, era como se fosse o Daniel Legrand de 1995, aquele que se recordava muito bem da violência sexual perpetrada sobre sua pessoa. Robyn não queria perdê-lo e continuava a vir ao encontro do rapaz, tentando segurá-lo pelos pulsos. - Venha, deixe-me ir contigo para casa, quero conhecer seu quarto, quero conhecer seu gatinho, o Cyrano… - Daniel arrancou o braço, livrando-se do controle de Robyn, e ela o olhou insultada, devastada. - Danny, não faça isso comigo! Vai continuar a me tratar como sua inimiga? Daniel, estou falando contigo! - A voz de Robyn ganhou urgência; entretanto, Daniel saiu correndo, chorando. Ela quase tentou correr atrás, mas quando começava a tirar os saltos para conseguir correr, ele já dobrara na primeira quadra do outro lado do eixo principal a ladear a praia.

À deriva, Daniel seguiu vagando, assombrado pela presença de Robyn às suas costas, ela que fora o grande mistério norteador da jornada, a ponta da bússola a indicar a direção para onde deveria se lançar, fossem as praias de Cape May, fosse o ringue onde ela finalmente o derrotara. Ainda na primeira metade do domingo escaldante, ao prestar atenção, os olhos marejados distinguiram nitidamente o faroleiro. Ele vencera a enorme distância da costa ao faroleiro abandonado. Ao fazer força com um dos ombros, não necessitou de mais de três tentativas para arrombar a porta de madeira para ganhar o ambiente interior. Subindo a escada em espiral, desejava alcançar o topo da torre, na qual tinham sido montados os espelhos refletores do aparelho ótico, como se pela força com a qual orientavam as naus no meio das trevas, pudessem lhe apontar o caminho. Ali em cima, desabotoou os botões da camisa e se livrou do paletó, agora abarrotado por ter atravessado uma tapetada de vegetação arbustiva da restinga, pouco antes do farol. Sentou-se com as costas na mureta, como um soldado da 2ª Grande Guerra a se proteger nas trincheiras, neste caso, do sol inflamado a grelhar as pedras lajinhas da torre. Seus olhos injetaram-se de um sedutor cansaço ao capturarem o azul ardósia a declamar a pureza e cristalinidade do Atlântico. Mesmo sob o sol, seu rosto deslizou pelo muro e ele foi caindo até se deitar de lado e dormir.

Daniel em uma versão menor de si: ele via claramente que se tratava de sua pessoa; entretanto, assistia a si como um terceiro independente, naquela sala escura onde havia Daniel minúsculo e inocente, e uma mulher loira. A mulher, Daniel não saberia descrevê-la bem, mas ela tinha cabelos loiros, rosto afinado, um elemento de penetrante e violador no olhar. Repentinamente, Daniel deixava a condição de espectador independente, de "mosca na parede". Agora, habitava novamente o corpo físico no qual experimentava a vida neste mundo pelo ponto de vista do ego. Adotara o tamanho, a simplicidade e uma mente pura e imaculada, e a mulher, o demônio de sua vida, avizinhava-se em círculos como uma leoa para devorar filhotes abandonados de uma ninhada que não a sua. Ocorria conforme Robyn lhe contara, tendo o apanhado num estrangulamento, durante a luta. Robyn descrevera perfeitamente. De fato, a estranha mulher punha testículos e pênis de uma só vez na boca grande, pois era fácil abocanhar a genitália inteira. Ele revivia agora o estupro sofrido décadas atrás, Daniel sabia disso, e enquanto ela o devorava, outras vozes pareciam vir para conversar com sua mente inocente, avassalada pela depravação de uma pedófila. Quando ela se contorcia fisicamente para proporcionar uma penetração absurda e extravagante de punho e braço através do ânus e o primeiro segmento do intestino baixo, era como se o indefeso, pequeno Daniel estivesse sendo sugado para o interior dela, e o interior do anjo decaído fosse um vácuo, um buraco negro pontuado por estrelas cintilantes gélidas e longínquas a aspirar sua alma para a diluição. "Baixo para cima, baixo para cima", ela ensinava, rangendo de dor e prazer enquanto o braço de Daniel investia à força e contra sua vontade através do tubo digestivo baixo, que o cingia com a força de uma jiboia esmagadora. "Vivez la merde, embrassez la merde, dissolvez-vous dans la merde", a voz afeminada de um demônio gritava entre risadinhas histéricas, e a mulher, tendo adotado a posição de uma égua no cio, abria a boca até onde as articulações da mandíbula permitiam, para expressar o prazer de ser arrombada de dentro para fora, e olhava para cima, prestes a explodir. "Meu Deus, ajude-me", sua versão pequenina perscrutava o coração em busca das orações ensinadas pela avó para que o mal jamais o possuísse, mas nada lhe ocorria. "Mergulhe mais", ele estava às portas do inferno e se segurava nas grades para não cair. O inferno nada mais era do que a mente inclinada ao diabólico. A vadia uivava como um lobo, e a cena adquiria a característica de paródia satânica. Como não sabiam criar, demônios macaquearam coisas criadas tão perfeitamente pelo Senhor. Na forma daquela criatura, os anjos provavam-se mais do que anti-cruz: eram ferozes anti-feminino, anti-Maria. A pureza e grandeza do parto era atirada à lama do profano na sucção que o engoliria, devolvendo-o para dentro do interior da mulher/demônio. Mais do que o devorarem, interessavam-se em estabelecer uma relação íntima com Daniel. "Venha brincar na merda conosco, Danny. Quero apresentá-lo à minha irmã; ela é o demônio do fetiche sexual por pessoas com membros amputados", declarava, pontuando com gargalhadas curtinhas e histéricas. E então, como se a todo tempo jamais o tivesse deixado, Daniel dava pela aparição de uma cruz entre seu corpo minúsculo e o corpo feminino grande e absorvedor a servir-se de quatro à frente, com o rabo levantado. Agora, a cruz afastava as presenças angelicais decaídas; primeiro, os dois demônios que, de alguma maneira, faziam-se sentir nos seus flancos, segurando-o para a violação sob o jugo da mulher; depois, a mulher de quatro que quase o engolia por trás, afundando no colchão e perdendo o domínio sobre seu braço e corpo pequenino. A voz afetada e pegajosa insistia, pois não se conformava em perdê-lo, "Mas estivemos presentes durante sua existência, Danny, somos uma parte de ti"; entretanto, à medida que a envergadura da cruz abria-se em luz, a efusão iluminada afastava as trevas dos anjos perversos decididos a violarem-no até ao suicídio. A vadia loira, - o demônio a levar o braço no rabo, - que até o momento permanecera, de maneira geral, quieta, finalmente olhou para trás, para encará-lo bem firme nos olhos, sorrir sensualmente e sussurrar: "Eu caminho contigo desde os cinco, seis anos. Poderíamos dizer que o vi crescer, ao menos por um tempo. Você é meu. Meu nome...", a voz da vadia falhava em razão da prazerosa dor de ser devassada por dentro. Daniel reconhecia: "Eu sei quem é! Você foi... Você foi...". Ela o cortou, ao se apresentar definitivamente: "Isso mesmo. Mas pode me chamar de 'Capitã Estupro'", e olhava para cima, numa poética agonia de orgasmo. As vozes afeminadas iam se anulando, suas forças viraram um fiapo, podiam ser desmontados com um sopro de tão patéticos sob a sombra da cruz redentora. Retiraram-se na esteira de uma corrente de xingamentos frustrados. E, num segundo, não havia mais nada – nenhum demônio, nenhum anjo decaído – naquele espaço. Daniel não era mais a sua versão pequena, era o Daniel adulto. E ele despertou.

Quando Daniel Legrand acordou da experiência, eram 15:00; significativamente, o horário no qual Cristo morre na cruz. Ele chorava, resfolegava e vomitava bile, e sentia o calor na testa como se lençóis úmidos quentes o tivessem estapeado de muitas direções. A impressão podia ser descrita como se saísse de um banho profundo; a respiração fluía mais facilmente, o oxigênio, mais abundante, capilarizava as veias aos pulmões, era um novo homem que sentia o esvanecer da névoa na mente, e a despedida definitiva das entidades que claramente haviam incutido palavras de loucura e suicídio ao ouvido. Daniel Legrand era um recém-nascido; simplesmente, rompera com seus demônios. Poderiam até recorrer numa ou noutra lembrança, porém, enquanto presenças reais, haviam ido embora. Colheu uma lâmina de pescador deixada pelo acaso, ou talvez  providência divina, ao lado do sinaleiro e, sem hesitar, seccionou a palma da mão num movimento em diagonal que fez sangue espirrar. Com o sangue, escreveu na mureta: "Setembro de 2010. Rompi com os demônios. Entrego minha alma para Jesus; servirei Jesus todos os dias de minha vida até ao fim".

Alguns dias se passaram. Ao passo que a tensão era tremenda, no que tangia à relação estremecida entre Daniel, Robyn e Parker, pairava um estranho, agradável senso de uma força maior atuante, mascarada por trás das circunstâncias, a conduzir o desfecho para o fim que se provaria melhor para todos. O suspense advinha do dia 29 de setembro a se avizinhar: se desejasse dar à vida a definitiva guinada sobre a qual falara tantas vezes, Daniel teria de preparar-se para a estrada a frente, pois precisaria subir na caminhonete para voltar a Elizabeth e se apresentar para a posse no concurso onde fora aprovado. Nova York o esperava, uma vida mais financeiramente confortável, gente nova… Era só voltar a Elizabeth e, de lá, a Nova York para a assinatura do termo junto aos amigos. Uma noite, enquanto jantava com Padre di Sofia, Lefty e Orlando, Giro lhe contou que sua mãe se encontrava em Cape May. Daniel parou de tomar a sopa. Giro revelou que a mãe, agora uma mulher idosa, desejava ver o filho; a vida lhe fora péssima e, consoante Giro, envelhecera para além de sua real idade. Aproveitando a chance, o padre também quis falar de Parker: "Ela esperará por ti na diner do próximo dia 28 de setembro, meu filho", Giro acrescentou, numa toada. Daniel respirou profundamente, afinal, ao tempo no qual lhe chegava a possibilidade de reencontro com a mãe, dividia-se entre a vida pretérita e a construção de uma existência diferente sem conexões com sua história pessoal, uma história nova ao lado de Parker. A namorada conseguira dar uma palavrinha com Daniel, ao telefone, dias atrás; a bem da verdade, só ela falara, mas fora perfeita na sua entrega: "Daniel, temos construído algo especial entre a gente. Não deixe que nada ou ninguém fique entre a gente. Nós dois somos muito melhores, quando juntos. Precisamos passar por muitos problemas para nos merecermos, e agora que está tudo acabado, não posso aceitar a ideia de perdê-lo. Não há nada que você possa fazer que me causará dor, porque eu te amo e mesmo que passe o resto da vida me evitando, não mudarei a forma como passei a enxergá-lo. Se você não aparecer, eu compreenderei. De todos os meus filmes e realizações, você foi a minha melhor performance. Eu te amo". Daniel, por conseguinte, via-se diante de uma encruzilhada.

- Sr. Legrand! - Uma voz feminina exclamou, de uma direção fora da casa . Lefty e Giro acompanharam-no para ver. Daniel ofereceu um honesto sorriso ao reconhecer a pessoa de Olívia à porta. - Fico muito feliz em revê-lo!
- Estou orgulhoso de vocês, querida. O que faz em Cape May? - Afagou-a um pouco acima dos ombros, como se parabenizasse a uma filha. - Acho que deve ter ouvido muito meu nome nos últimos dias.
- Sim. - Ela concordou, meio embaraçada. - Suntee está louco para conversar com o senhor.
- Não quero vê-la com esse olhar preocupado. - Sorriu, confortavelmente comportando e dirimindo os temores não verbalizados da menina. - O que passou, passou. Agora, temos motivos para celebrar. E celebrar parece o melhor a fazer para afastar a expectativa até o dia 29!
- E por que não começar essa noite? - Foi Suntee quem apareceu como se se materializasse do ar, para completar a reunião. Daniel gostou da ideia de uma noite acompanhando o casal a uma pizzaria da orla, mas quando saiu um pouco mais para a calçada, viu o pequeno ônibus estacionado no outro lado. De dentro, os amigos da East Side, agora aprovados, apareceram para abraçá-lo. Lefty e Giro testemunharam a tocante cena à distância. Daniel acenou para os dois, mas logo foi segurado pela garotada, que tratou de suspendê-lo para lançá-lo ao ar sob os gritos de Hurra!

A manhã raiaria em menos de uma hora quando a turma retornava da noite de pizza na orla, para deixá-lo na paróquia. Para a galera, seriam muitas horas de viagem, afinal regressariam na mesma ocasião para casa, para Elizabeth. Antes que tomassem a rota para o orfanato fundado por Padre Girolamo, Daniel pediu ao motorista para lhe fazer um favor ao deixá-lo no antigo, hoje abandonado Lower Township, o local de suas maiores alegrias num tempo mais simples, como a presença cotidiana da jovem Robyn. O coração palpitou docemente sob a imagem de Robyn na sua mente e, a caminho da cobertura, quase se emocionou. Era uma abóboda gloriosa separada pela linha do horizonte, a qual prenunciava a vinda da manhã; naquele ínterim, Daniel puxou do bolso da calça a carta deixada por Gladys. Examinando-a ao toque, notou-a meio grossa. Havia mais do que uma carta, no envelope, e ele abriu. A letra da avó o estimulava a pensar nas palavras cruzadas e passatempos que tantas vezes a vira diligentemente preencher, no alpendre. Assim, mal havia lido a primeira linha, já chorou. Viria a chorar muito mais ao encarar a mensagem final a lhe ser estendida além-túmulo:

Danny, quando ler essa carta, não posso imaginar a distância que vencemos nesses últimos dez anos até chegar ao ponto no qual abriu o envelope. Escrevo a mensagem após uma semana de sua ação no aeroporto; agora, sua vida está para mudar, um novo mundo se abrirá no seu horizonte. Eu penso bastante em você, Danny, no passado do qual, neste momento em que redijo a carta, não consegue se lembrar. Eu te imagino na prisão que se tornou a sua memória. Tento sublimar o oceano de tristeza entre nós dois, e então explico a Deus em orações como gostaria de puxar para mim a maldade que fizeram a você quando criança, para que não precisasse sofrer. E eu te vejo… Tentando adormecer na casa dos outros, no escuro, mas com medo de dormir e urinar na cama, prisioneiro de adultos que o odiavam e não o queriam por perto. Eu o imagino a milhares de quilômetros, longe de minha casa, a casa de sua avó, quando ainda era um menininho, e mesmo hoje, contigo crescido, ainda desperto chorando na madrugada, chamando seu nome na escuridão. Você sempre será meu menininho. O garoto que encontrei a brincar com os gatinhos no quintal, naquela tarde se setembro; você era a criança mais adorável que eu já havia visto. O cara que dividia todas as posses com as outras crianças, o cara que tiraria a própria camisa para dar a um completo estranho. O cara que me ensinou a amar. Eu te amo, Danny.

Então, filhinho, deixo tudo para você. Isso mesmo: diferente do que eu lhe dizia ao longo dos anos, a velha casa em Cape May jamais foi vendida. Deixei-a preparada para sua volta, após minha morte. Agora, será completamente sua, e o imóvel deverá ser o suficiente para que se mantenha de pé, principalmente nesta nova fase de empenho nos estudos. Eu não sei o que deve fazer, Danny, apenas encontre seu caminho! Eventualmente, sua mãe te procurará. A esta altura na qual lê a carta, deve saber que ela não morreu. Você se revoltará e desejará maltratá-la, chutando-a de escanteio por julgá-la responsável por tê-lo atirado, mesmo inconscientemente, a predadores. Quando o mundo se abrir diante de seus olhos, após ter entendido perfeitamente seu passado, começará a correr atrás de uma felicidade que o mundo te prometerá e, num primeiro momento, sua mãe será a última coisa a preocupá-lo. Atente-se para não cometer um erro, meu filho. Este será o conselho mais importante que terá na vida.

Danny, para te ajudar, precisamos fazer uma reflexão sobre este novo elemento na sua vida: a busca pela felicidade. O que é a felicidade? Você foi abusado sexualmente por uma mulher mais velha, quando esteve longe de mim e de sua mãe, mas isto que vou te dizer vale para qualquer pessoa. Eu queria que entendesse que o drama que vive é semelhante ao drama de todos os outros: todos nós, seres humanos, marcados pelo pecado original, temos sempre um canto de sereia. É, trata-se de uma tentação, uma tentação, perversa, demoníaca, que diz assim: 'Seja feliz. Procure a felicidade aqui nesta terra'. É buscando essa felicidade que o alcoólatra se embriaga, que o drogado se entorpece, que a prostituta se destrói, que o adúltero acaba com sua família, que o sobrevivente de estupro mendiga afeto de relação em relação. É buscando essa felicidade que nós vivemos uma vida de tantas desventuras nesta terra; no entanto, Cristo não prometeu felicidade para ninguém aqui. Ele prometeu, sim, felicidade no céu. Ele disse: 'Eu vou preparar-vos um lugar. Na casa do meu Pai, há muitas moradas'. Na casa do pai há muitas moradas, Danny, porque diversas são as cruzes que cada um tem que carregar. Haverá uma morada para você também. Danny, deixa eu te dizer uma coisa: existe um lugar no céu com teu nome escrito. E eu gostaria que esse lugar não ficasse vazio. Eu gostaria que você chegasse lá, meu filho. Eu gostaria que você chegasse lá. Por isso, vamos nos ajudar mutuamente: você reza por mim daí, e eu rezo por você de onde estiver. Por mais que vá caindo ao tentar a santidade, você se fortalecerá pois é através do cair e levantar que se chega lá. A diferença do bom católico para o pecador não é que o católico nunca peca; e sim que o católico odeia o seu pecado. E eu vejo, desde sua infância com os animaizinhos, que você tem um coração profundamente católico. Que você odeia o pecado. Mas se você odeia o pecado, odeie também a mentira que te leva ao pecado, ou seja, a ilusão. É necessário que você combata essa palavra ilusória do demônio que te promete a felicidade com o realismo da cruz, a cruz crava nossos pés no chão. Não olhe para o mundo como um lugar onde todos vivem o paraíso e só você, pobre você, desventurado, não consegue o paraíso aqui na terra. Danny, em que mundo você anda? Eu não vejo esse paraíso para ninguém. Os heterossexuais não vivem em nenhum paraíso. Os heterossexuais vivem a dureza do matrimônio, a cruz do matrimônio. O matrimônio não é um paraíso. Pobre do cônjuge que acha que fará do outro alguém feliz, ele não vai fazer, ele não dá conta disso! Por quê? Porque a felicidade é no céu. Esta terra, este mundo onde vivemos é um tira-gosto. Sim, tira-gosto é uma coisa boa. Deus fez este mundo para a gente viver com alegria. Mas esta é somente uma vida, que no Evangelho de São João, Jesus chama de 'bios'. A vida que Ele nos promete, entretanto, é uma outra vida, é a vida com 'V' maiúsculo, 'zoé', uma palavra em grego, para dizer que a vida verdadeira vem lá; aqui é o tira-gosto, o banquete é lá no céu. Se nós nos aproximamos de uma mesa de tira-gosto com pretensão de banquete, qual o resultado? Frustração. Sim, pois tira-gosto é gostoso na boca, mas pesado no estômago. Você quer encher seu estômago com um tira-gosto muito pesado. Você precisa, ao contrário, entender que esta vida não vai preencher o seu estômago, ou seja, o seu coração. Não vai te dar essa felicidade que você quer. A vida é boa, bela, vale a pena ser vivida, mas é marcada pela cruz. Jesus não prometeu o paraíso para ninguém aqui na terra, o que Ele disse foi 'Renuncie a si mesmo, tome a sua cruz dia após dia e me siga'. Você tem diante de si, Danny, a alternativa entre o falso novo mundo sem dores ou o verdadeiro caminho da santificação, através do velho caminho tortuoso que pode ser ganho através do carregar a cruz do dia a dia e de amizades genuínas e desinteressadas. Pelo caminho tortuoso, você pode, sim, alcançar aquilo que todo cristão quer: a santificação. Veja, a igreja pede e quer de todos os seus fiéis a castidade. Existe a castidade dos casados, que devem carregar a cruz de um casamento heterossexual, com seus filhos, onde não encontrarão felicidade perfeita aqui, mas que terão de se suportar e se amar mutuamente, perdoando-se no dia a dia, para encontrar a felicidade no céu. A igreja pede também de você, Danny, que não tem condição de viver o matrimônio, que viva a luta da castidade. Lutar, sim. Lute. É possível, é possível. Se você cair, levante-se, levante-se, pare de ouvir o canto da sereia, pare de ouvir uma palavra mentirosa e substitua isso pelo ouvir da palavra de Deus. Mas é necessário que seja a palavra de Deus com os pés cravados no chão. Ou seja, não caia também nestes outros cantos de sereia, de igrejas que prometem paraíso aqui na terra, 'Pare de sofrer, Deus vai resolver todos os seus problemas, Deus vai fazer um paraíso aqui', isso não existe! Não há paraíso aqui, não há terra sem males neste mundo, o que existe neste mundo é a graça de Deus que nos ajuda a ter a força moral no dia a dia para combater o mal dentro e fora de nós até ao último dia. Então, filho, concluo esta carta com a história de um monge, muito sábio. Um dia, perguntaram para ele: 'O que vocês fazem lá no mosteiro? O que vocês fazem lá dentro'. O monge então coçou a barba, e disse: 'Lá dentro? Lá, a gente cai, levanta, cai, levanta, cai, levanta. Até o dia em que Nosso Senhor voltar. E quando Ele voltar, vai ver que caímos e estamos acabando de levantar. E vai nos levantar definitivamente'. Eu tenho certeza que se você perseverar as quedas diminuirão. Seja paciente consigo mesmo. Mas é necessário uma vida de ascese, de carregar a cruz do dia a dia. Se você rejeitar a cruz, cairá no canto da sereia. Mas se você abraçar a cruz e enxergar que a cruz é de todos… Que você não é um pobre coitado, a única criatura na terra em quem Deus se vingou, atirando uma cruz nas suas costas. Nada disso! A cruz é um mistério, e Deus veio carregar a cruz conosco. Nós não estamos sozinhos, Danny, você não está sozinho. Jesus carrega a cruz contigo.

Eu te amo, meu filho. Eu não posso mudar seu passado, mas seu passado não pode mudar o meu amor por você.

Gladys
.

Ao correr os olhos pela última linha, o dia amanhecera. A resistência do envelope se devia a fotos, muitas delas, colocadas por Gladys, para que o neto conhecesse sua origem, seus pais. Sorriu afetuosamente ao passar a vista pelo maço de fotografias, sendo apresentado ao pai e a mãe "pela primeira vez": nas fotos antigas, a mãe, ainda jovem, fazia-o pensar numa jovem Ashley Judd; apreciou também a parecença do pai com Fulton Sheen, eles eram idênticos. Divertiu-se por um tempo, manejando as fotos como se fossem cartas do baralho, ou cartas daquele velho jogo que sempre lhe parecera imbuído de agridoce, comovente bom humor, quando adolescente, o "Jogo da Vida". Ele se levantou e só soube que sempre quisera ir à beira quando sua mão segurou o mastro da bandeira, firmando-se melhor na altura de onde guardava sensacional vista. Passarinhos trinavam alegremente da copa das árvores do estacionamento, e não obstante o colégio tivesse sido abandonado há uma década, ele não só soube em seu âmago que o lugar, enquanto registro histórico de 1995, permaneceria erguido para ser visto por seus olhos de modo a jamais esquecer de onde viera, também entendeu que qualquer destino longe da praia e dos gatos seria uma fuga à realidade imperativa à sua jornada pessoal. "A cruz é um mistério", sussurrou consigo, com os olhos marejados, e as palavras lhe fizeram tanto sentido que, ao descer as escadas para voltar, sabia exatamente o que tinha de fazer com o resto da vida. Helena se encontrava sentada no sofá da humilde, confortável e acolhedora casa de Lefty; Giro e Lefty faziam parte da reunião, servindo-lhe um café durante a espera por Daniel. Um dia, Helena fora mesmo igualzinha à jovem Ashley Judd; ali, entretanto, muitas décadas após as fotografias, era uma mulher idosa que parecia até mais velha do que Gladys, a avó. Houve um momento, quando Daniel se aproximou, que ela reagiu como se se encolhesse, temerosa de levar um tapa, sem saber que o filho se aproximava por uma razão diferente. Daniel abraçou a mãe idosa e cansada. Agora, eram só os dois.

Na noite do dia 28, Parker tomava sua quarta xícara de café, sempre com os olhos mirando baixo, levantados somente para consultar as horas ou pedir qualquer coisa à garçonete. Filha de Cape May, mesmo quem a reconhecia preferia deixá-la à vontade, e Parker não poderia pedir por melhor cortesia. À noite, a temperatura vinha caindo muito, mas Parker sabia que o frio o qual a levava a esfregar as mãos não se devia à chegada de outono, mas à tensão envolvida na próxima hora. Quando faltava meia hora para o encontro na frente da diner, Parker retocou a maquiagem no banheiro, pagou a conta e deixou o lugar com os braços cruzados contra o peito. Bem no instante no qual deixava o restaurante, um grupinho de adolescentes farristas chegava fazendo algazarra. Observando-os de relance, recordava-se com remorso de quão estupidamente usara as janelas de oportunidades da juventude. A seus pés, folhas secas e amareladas deixavam o rastro até à estrada erma. Ela a atravessou e ficou do outro lado da calçada, no canto onde Daniel esperara pela sua pessoa há quase dez anos. Parker ergueu o rosto e esperou que o Atlântico lhe acariciasse com a brisa. A ventania não avivou. Outono tinha seu jeito de conjurar frio sem a precisão de brisas ou chuvas para tanto.

Parker nem quis ver o tempo passar. Sentada num banquinho, limitou-se a fechar os olhos e esperar que os minutos escoassem mais rapidamente, até a chegada de Daniel. Quando os abriu, viu que eram 21:30. Depois, deu 22:00, sem sinal de seu convidado. Ela não podia realmente culpá-lo. Trouxera a situação para si, não por maldade, é certo; entretanto, na época, era tola e inconsequente, e quando somos jovens, já somos "imortais" antes mesmo de "virarmos vampiros", nenhuma atenção ou gentileza a aqueles que verdadeiramente nos amaram. Mesmo tendo conservado um olhar mais grato e generoso para as reviravoltas tomadas pela vida, reconhecia a chegada da hora para deixar de lado o orgulho e chorar. Ajudaria a lavar a alma, a aceitar a decisão de Daniel de modo a não se remoer amargamente, mais tarde. Parker chorava, com os olhos na pista, quando repentinamente escutou passinhos. Inicialmente, nem pôde imaginar de onde vinham, mas então Cyrano apontou para fora de um arbusto e tratou de marchar em direção à atriz. O gatinho fora preparado com uma gravata vermelha. Cyrano sentou-se logo à frente de Parker e a estudou com olhos tristes e pidões, pendendo a carinha de lado. Daniel surgiu em seguida, como mágica, de algum lugar às costas dela. As lágrimas da atriz irromperam com a força de uma represa sabotada. Pareceu muito natural a forma como se adaptou aos braços de Daniel. Existia uma outra presença no encontro, vindo atrás de Legrand.

- Pensei que nunca mais voltaria a vê-lo. - Soluçava, discretamente.
- Estive por perto, tolinha. - Revelou, com um sorriso brincalhão. - Demorei porque queria fazer surpresa. Ou melhor, eu e Cyrano. E uma outra pessoa também. - Fez um movimento com a mão às suas costas.
- Eu demorei muito a chegar? - Parker quis saber, os olhos refulgentes de alegria.
- Seis anos. - Veio a resposta. Ela chorou mais duramente.
- Eu o teria perdoado, caso não tivesse aparecido para conversar. Eu compreenderia o medo, sabendo de minha condição, sabendo que sou uma… - Daniel cerrou os olhos e meneou negativamente com a cabeça, murmurando "Você não é uma vampira; você é uma criação pensada por Deus", indicando a Parker que afugentasse os pensamentos ruins. Parker falou: - Daniel... Você acha que eu serei feliz um dia? Mesmo diante das circunstâncias?
- Parker, não é porque a rosa tem espinhos que não se pode admirar a sua beleza. - Sorriu com segurança e concluiu, guardando-a nos braços mais uma vez. - Sim, eu tenho certeza. - Ele se voltou novamente, e a outra presença finalmente se introduziu. - Aaron, venha cá, preciso conversar com vocês dois juntos.

As voltas dadas pelo mundo: há quase dez anos, um amargurado Daniel perdera Parker para Aaron naquele exato lugar; agora, pretendia uni-los e a alegria de vê-los de mãos dadas alegrava seu coração face a tudo o que pretendia fazer com seus próprios dias, dali para frente. Aaron se achegou, e Parker o olhou abismadamente. Ela sacudiu a cabeça, pressentindo a intenção de Daniel. Com desapego, tomou as mãos de Parker, e então as de Aaron, e as atou. Parker lançou um olhar inquisitivo a Daniel.

- Parker, eu não posso partir contigo. - Ele explicou. Aaron parecia profundamente tocado. - Há o amor infinito que tenho por ti, e há o amor infinito a Nosso Senhor. Sim, ambos infinitos, mas infinitos distintos, histórias diferentes. Eu poderia ter ido embora e deixado Cape May e minhas dores para trás, poderia ter recomeçado do zero e reescrito minha história, fazer de conta que não foi comigo. Eu não fiz isso. Eu fiz algo melhor. Eu escolhi abraçar a minha vida anterior em toda sua miséria e infortúnio. Com o tempo, descobrirei para onde ir a partir daí. Não é o lugar onde necessariamente eu gostaria de estar, mas é o lugar onde preciso estar: desvendando os caminhos das dunas acima e antes de se chegar à praia, de mãos dadas à minha solidão, ladeado por gatos de rua a quem contei meus segredos. São os demônios que temem a cruz, Parker, não a gente. Para nós, quando começamos a discernir, a cruz se torna uma parte importante da caminhada. - Daniel apertou as mãos de Parker e Aaron umas às outras, para frisar. - Vocês namoraram na juventude, quando nos faltava uma correta noção do todo; ali, víamos partes, motivo pelo qual o mal e veneno que saíram de nossas bocas e escolhas, na juventude, não merecem crédito, tampouco precisam determinar nossas escolhas a partir da maturidade. "Quando eu era uma criança, eu falava como uma criança". Entretanto, em meio a tantas cizânias, dores e vinganças, um elemento de puro, ingênuo, permaneceu intocado pela malícia. O primeiro beijo de vocês talvez, os momentos de felicidade, de paz, de expectativa pelo futuro. Perante as discórdias do passado, vocês me diriam que, reatando agora, cometeriam um terrível erro, ao não se julgarem certos um para o outro, mas é bobagem. Trouxe algo para vocês, palavras que vão afugentar essas trevas que lhes dizem que o passado os impediria de terem suas vidas, juntos, na maturidade. Foi algo que um excelente escritor chamado J.R.R. Tolkien disse ao filho, ao lhe perguntar sobre parceiros de vida. Permitam-me. - Daniel sacou do bolso uma folhinha dobrada. Parker e Aaron se entreolharam, ambos emotivos e tensos. - Ele diz: "Quando o deslumbramento desaparece, ou simplesmente diminui, eles [os casados] acham que cometeram um erro, e que a verdadeira alma gêmea ainda está para ser encontrada. A verdadeira alma gêmea com muita frequência mostra-se como sendo a próxima pessoa sexualmente atrativa que aparecer. Alguém com quem poderiam de fato ter casado de uma maneira muito proveitosa 'se ao menos…'. Por isso o divórcio, para fornecer o 'se ao menos…'. E, é claro, via de regra eles estão bastante certos: eles cometeram um erro. Apenas um homem muito sábio no fim de sua vida poderia fazer um julgamento seguro a respeito de com quem, entre todas as oportunidades possíveis, ele deveria ter casado da maneira mais proveitosa! Quase todos os casamentos, mesmo os felizes, são erros: no sentido de que quase certamente (em um mundo mais perfeito, ou mesmo com um pouco mais de cuidado neste mundo muito imperfeito) ambos os parceiros poderiam ter encontrado companheiros mais adequados. Mas a 'verdadeira alma gêmea' é aquela com a qual você realmente está casado. Na verdade, você faz muito pouco ao escolher: a vida e as circunstâncias encarregam-se da maior parte (apesar de que, se há um Deus, esses devem ser seus instrumentos ou suas aparências).Neste mundo decaído, temos como nossos únicos guias a prudência, a sabedoria - rara na juventude, tardia com a idade -, um coração puro e fidelidade de vontade". - Quando Daniel terminou, o rosto de Parker fora banhado de lágrimas. Aaron a trouxe para si com um abraço em torno dos ombros, agradecendo-o, com uma jogada de cabeça, pela inacreditável generosidade e desapego com os quais abençoava o surpreendente desdobramento. - Vão em paz, amigos.
- E quanto a você, Danny? - Ela indagou, com o rosto inconsolável no ombro de Aaron.
- Eu sou o homem cuja casa esteve na rota de passagem do tornado, Parker: ele perde todos os seus bens terrenos, mas sente uma indescritível felicidade por ter sobrevivido. Ele finalmente compreende que posses não são importante.

Ao subirem o bondinho, Aaron e Parker cumprimentaram o maquinista, que apitou em homenagem aos amores eternos. Assistindo ao adeus com uma oração interna, Daniel guardou Cyrano sob o paletó e foi se afastando, querendo chegar à curva, um elemento geográfico tão determinante de sua caminhada no mundo. Na curva da descida, onde em 1995 Daniel & Parker haviam se beijado, tendo feito a descida de bicicleta, posicionou-se para uma melhor vista da partida do bonde. A estação do ano podia ser a mais fria; entretanto, mesmo diante do rigor climático, outono não desbotaria o brilho das estrelas daquela perfeita noite, ou silenciar o quebrar das ondas, ou diminuir o impacto visual ao se experimentar a cidadezinha costeira como luzinhas cintilantes, as quais desenhavam formas inconstantes a variar desde brilho de espumantes a jorrarem sobre taças bem equilibradas aos sorrisos cujos lábios eram as curvas da enseada ao encontrar o Atlântico. Quem tivesse deixado a diner naquele momento ainda teria conseguido enxergar o bondinho executar a curva que o colocaria a caminho da movimentada, alegre orla. Na última poltrona, um rapaz chamado Aaron Lang, vulgo Barclay Harrison, conseguia manifestar o amor pela parceira na forma cuidadosa com a qual envolvia as costas dela com a jaqueta, preservando-a do frio. O bonde carregou o casal rumo ao novo amanhã, deixando que a madrugada se encarregasse das recordações deixadas às margens da diner, até finalmente sumir de vista para quem o observasse da estrada. Aaron e Parker partiram.

E foram para outras paragens.

Daniel ofereceu um sorriso triste ao pontinho distante que era o bonde afastado e ficou um tempo contemplando os mistérios da vida. Em determinado momento, virou-se lentamente e começou a caminhar para casa sob o manto estrelado, com o gato sob a jaqueta. Seu coração fora partido uma segunda vez pela mesma mulher, sendo que, agora, fora dele a decisão de partir. Seu voluntarismo ao ajudá-la a restaurar a própria vida o consolou, absorvendo o primeiro impacto da despedida. Logo Daniel se sentiria melhor; não se tratava mais de como se sentia, e sim de fazer o moralmente certo.

O dia 29 de setembro seria conhecido como o mais quente do ano de 2010. Daniel se encontrava no auditório para a posse dos aprovados, junto a Lefty e Giro. O trio tinha encarado horas de estrada, Daniel ao volante, para chegar a Nova York a tempo da consagração de seus esforços. Àquela altura, a mãe retornara para a vida de Daniel e hospedara-se na paróquia. Ela ficara em Cape May com Orlando e os gatos do filho. Daniel sabia que a responsabilidade pela idosa exigia de sua pessoa um plano para a retomada da vida adulta. Abraçado pelos amigos entre os assentos do auditório após a assinatura dos termos de posse, foi um lindo momento, pois ali, não comemorava uma vitória sua, mas a dos demais: resolvera não tomar posse. Ao passo que os garotos ficariam em Nova York para um amanhã inédito, retomaria, logo mais, o caminho de volta a Cape May. Não pudera, entretanto, escusar-se do dever de testemunhar a vitória e homenagear os meninos. Grande surpresa: Suntee e Olívia estavam namorando! Daniel apertou as mãos de pais orgulhosos. Giro puxou uma prece ao fim da cerimônia. Saltaram na piscina olímpica ao fim da posse, e atiraram Daniel dentro. Passava das 14:00 quando a caminhonete passou ao lado da placa que saudava os visitantes de Cape May. A primeira curva introduzia-se apenas numa cauda, mas era encimada pelo azul turquesa de um mar infinito sob a ação do sol que era emblemático para toda cidadezinha do litoral. Não custariam a alcançar a entrada. "Aumente esse som, porra", Giro brincou, girando o dial para o máximo volume. Tevin Campbell cantava "Come back to the world". "Volte ao mudo", Daniel murmurou consigo, emocionado, com um sorriso frágil, porém honesto. Daniel estava de volta ao mundo.

Em janeiro do ano seguinte, 2011, Daniel se adaptara ao caminho o qual trilharia ao fim. Ele foi realocado ao antigo cargo administrativo anterior ao acidente na pista de 2004, encaminhado ao lugar na ilha de computadores onde Robyn viera visitá-lo um número de vezes, na década anterior. Ciente de nada mais ter a fazer no aeroporto em Elizabeth, não demorou aos cidadãos de Cape May verem o Girolamo de volta como padre e diretor do orfanato. Todas as tardes, após o dia de trabalho, Daniel visitaria Padre di Sofia e Lefty no orfanato para rememorar os velhos tempos. No segundo semestre do mesmo ano, encorajado por Giro, Daniel voltou aos estudos. Queria tirar o diploma de licenciatura em matemática; de certa forma, revivia os passos de Padre di Sofia em direção à vida santificada. Não lhe custariam muitos anos até se formar em matemática, quatro anos no máximo, e poderia realizar um sonho de juventude na meia-idade, como professor de trigonometria para uma porção de jovens assim como Daniel o fora em 1995. Na mesma época, ele seguiu a resposta a qual pedira a Deus quando suplicara, em oração, para que lhe apontasse o caminho. Solitariamente, quando Cape May acabava de imergir na letargia da madrugada praiana, checava a mãe idosa para ver se ela dormia bem, e então partia para a praia antiga, para os calçadões onde havia feito as mais lindas recordações com as irmãs Cowan para alimentar os gatos abandonados. Por vezes, ao ganhar os calçadões, tremulando ao sabor da brisa fria a soprar da costa, enxergava imagens dos três, aos quinze anos, rindo e brincando e correndo como fantasmas translúcidos a se afastarem com suas genuínas gargalhadas. Longe dali, no glamour elegante nova-iorquino, ocasionalmente, era Robyn quem navegava pelas vias da memória, a caminho do Monte Sinai, ao passar pela ponte de onde avistava o ginásio, hoje aos escombros: ela jamais deixaria de se eletrizar ao se recordar dos últimos segundos da luta. Cerrava os olhos, sentida, amargurada, desejando inutilmente que tivesse terminado diferente entre os dois.

12 anos depois.

Daniel apoiava o braço no guarda-corpos do bondinho para admirar as luzes do litoral quando ele perdia a velocidade para deixá-lo na parada onde descia todas as noites após o término da última aula de trigonometria no Lower Township. Em 2016, um ano após conseguir a licenciatura em matemática, a prefeitura resolvera reativar o colégio, e Daniel pôde voltar para casa, para sua segunda casa. Helena dormia, quando ele girou a chave na porta de casa para entrar; entretanto, como de costume, despertou com a chegada do filho. Deixara o jantar dentro do micro-ondas. Veio recebê-lo na sala, guardando a bolsa com os livros e o estojo com giz e apagador numa gaveta alta da despensa, para que os gatos não a estragassem com as unhas. Perguntava-lhe sempre sobre o dia; Daniel respondia indagando se ela se sentira bem o dia inteiro. Na televisão, vinha o rumor de um programa de auditório engraçado frente ao qual Helena pegava no sono todas as noites, à espera do filho. O programa já estava na parte final. Daniel se deitava na rede do quarto, diante da televisão, para se divertir enquanto comia. Esmagava a empada de frango e a misturava ao arroz e feijão. Alguns dos gatos subiam no peito para comerem diretamente do mesmo prato. Daniel não se importava; para ele, emprestava-lhe uma qualidade de desapego a se esperar de santos ou de pobres miseráveis lutando pela santidade, seu caso. A mãe indagava a respeito do dia no colégio, Daniel gostava de contar os fatos pitorescos com as turmas da 8ª série. Os ponteiros se avizinhavam de meia-noite, era quando tomava uma ducha quente para se vestir para o último trabalho antes de dormir. Abria apenas timidamente a porta para checar a mãe, que dormia, antes de sair. Naquela noite, todavia, Helena abriu os olhos ao entrar.

- Meu filho, cuidado com os assaltos, viu? Eu tenho medo de você andar pelos lados da praia antiga durante a madrugada.
- Bobagem, mãe. - Ele minimizou, sentando momentaneamente na beira da cama. Daniel beijou as mãos engelhadas da idosa e pediu a bênção. Antes de partir, comentou: - Eu vou morrer alimentando os gatos da praia, num assalto, porém, quando acontecer, você já terá partido. Demorará um pouco a acontecer.
- Filho, não fale essas coisas!
- Mas é verdade, mãe. - Ele apontou para cima e determinou: - Sei da minha morte, sei do assalto, sei do tiro que eu vou tomar, mas o evento se encontra espaçado mais adiante na estrada da vida. - Daniel então sorriu docemente, ao lhe ocorrer a caixa do "Jogo da Vida", os carrinhos vencendo os caminhos cheios de eventos e reviravoltas que, em seu fértil leque, não se antecipavam à imprevisibilidade da vida real. Pensou na própria vida, retratada numa adaptação ao tabuleiro, seu carrinho a vencer os quadrados de eventos, os dados lhe reservando o quadrado onde estaria escrito "Assalto a mão armada. Você morreu assim". Ele continuou a falar: - Quando ocorrer, você já se encontrará com Gladys no céu, e não estará aqui para ver. Não se preocupe.
- Não brinque com sua vida, Daniel.
Estraguei minha vida, joguei minha vida fora. Perdi a janela de tempo, mãe. Eu poderia ter sido tão grande quanto Padre di Sofia. Quando despertei, não havia mais o tempo para o seminário.
- Os planos de Deus eram melhores que os seus, filho. Ao seu modo, Deus te deu exatamente o que pediu, apenas mais. Você vive a vida santificada. Veja um padre. Uma figura respeitada, um pilar de sua comunidade. Um padre é respeitado, admirado. Você, entretanto, como leigo, configura-se melhor ao Cristo crucificado, até nas perseguições e abusos que vive no dia a dia, no trabalho. Ao cuidar desses animais de rua, veem-no como um louco. Um excêntrico. As pessoas boas, Daniel, as pessoas sem suporte, as pessoas sem as costas largas, sem uma rede de amigos são exatamente isso: excêntricas. São espantalhos nos quais os outros gostam de bater, apenas porque, primeiro, precisam bater em alguém, e segundo, não o fariam a outras pessoas com ligações e conexões com gente socialmente relevante. - A idosa o beijou na mão, e terminou: - Jesus não tinha onde descansar a cabeça, ao passo que as raposas tinham onde dormir. Não se lamente tanto por seus planos não terem se sucedido conforme o desejado, filho. Deus sempre tem um plano melhor para a gente.
- Durma, mãezinha. - Beijou-a na testa e a cobriu com o lençol até ao pescoço, na altura do crucifixo.

Fazia muito frio ao sair; embora nas cidades de litoral os dias fossem abrasivos, as noites gelavam a espinha. Daniel caminhou até `a portinhola de ferro, para deixar a casa e, consoante fazia desde que voltara para Cape May há uma década, lançava o olhar para a janela do quarto da mãe - que, um dia, fora o quarto da avó. Ele sempre via, em mente, o vulto da avó, sorrindo-lhe como para desejar sorte na missão daquele dia. Daniel gostava de imaginá-la guardando a filha, Helena, protegendo-a dos males. Ele subia no bondinho para a descida para a praia velha; não era perigoso, como a mãe apregoava, mesmo na madrugada. Os boêmios avivavam o rumor vindo das barracas, as quais recebiam festeiros e turistas meio embebedados, e não deixavam a praia em completo silêncio, por mais que, como um todo, a praia verdadeiramente sustentasse uma aura mágica de quietude naquele horário tão misterioso. Com a saca de "Whiskas" aberta pela tesoura de pontas arredondadas, seguia distribuindo as porções para seus príncipes, os quais miavam e se assanhavam, esfregando-se nas pernas do tutor. Após servi-los, Daniel se sentava na calçada, para vê-los saciarem a fome; apreciava o ruído crocante feito pelos gatos ao mastigarem a comida. Tendo terminado a ronda, não voltava imediatamente para casa; fazia-lhe bem caminhar um pouco. Ele costumava chegar na beirada da descida para a barraca onde, em 1995, Robyn Corliss vencera a outra menina no campeonato de caratê dos Jogos Escolares. Posicionando o saco da ração contra o peito, reforçando a proteção contra o frio, o vento esvoaçava sua blusa, assanhava os cabelos. Ele se perdia nos próprios pensamentos, relaxava e, consequentemente, raciocinava melhor.

Suntee passara no concurso para delegado federal em 2019. Dois anos mais tarde, ele e Olívia se casaram; Daniel custava a crer nesses últimos eventos. Pelo seu ponto de vista, sempre seriam aqueles dois adolescentes dentro do avião da American Airlines do Natal de 2009. Vez ou outra ao ano, Suntee ligava para saber como Daniel estava. Nessas vezes quando se falavam, sempre riam e achavam graça de quão estúpidos e bobos haviam sido. Padre Girolamo di Sofia morrera há quase um ano, no segundo semestre de 2022, bem na reta final da grande pandemia. Ocorria que, pela idade, Giro, ao integrar o grupo de risco, fora aconselhado pelo bispo da diocese a descansar, deixando as missas e as confissões aos padres mais jovens; Giro não aceitara deixar a batina, e se submetera a riscos incalculáveis para seguir tomando confissões e oferecendo-se em sacrifício às missas, as quais comandava. "Giro", Daniel disse, num sopro, para si, "Se existe um céu, você fez por merecer seu bilhete de ida, meu velho". Uma lágrima rolou pela face. Lefty e Orlando mantinham vivo o legado de Giro, falando de sua pessoa como se o tivessem visto ontem; a bem-humorada, doce senhora se encarregava de garantir que as crianças do orfanato crescessem escutando os feitos daquele homem santo que, dentre tantas escolhas belas, deixara a santa igreja, por tantos anos, para garantir que Daniel ficaria bem. Esses fatos se sucediam em sua cabeça, Daniel relembrando eventos ao longo da corrida dos anos. Sua reflexão durava até chegar à casa após a volta no bondinho, quando tomava um banho e se deitava exausto na rede, tomado pela escuridão e frio do quarto, protegido pelas dezenas de gatos da casa, muitos deles a dormirem espalhados ao redor e sob o tutor.

Na manhã de quinta-feira, Daniel seguiu à risca o ritual de todas as manhãs quando levou o pratinho com sachê de carne ao molho para "Neném", o gato semelhante a sorvete de flocos que morava no estacionamento. Em seguida, atirou milho para os pombos, os quais o esperavam nas linhas dos postes acima. Ele subiu para se apresentar cedo ao trabalho na secretaria da corregedoria federal, na sede da Guarda Costeira, e passou o dia atarefado, mexendo nos dois sistemas usados para dar entrada e saída aos processos administrativos. Ao sobrar algum tempo, preparou as linhas gerais da aula de trigonometria a ministrar naquela noite. Após as 13:00, Martos o chamou no gabinete. Ele passou algumas instruções generalizadas para um serviço no sistema, o qual precisava de urgência. Antes de deixar o escritório, Daniel foi impedido pelo breve chamado de Martos, como se tivesse se lembrado de uma coisinha. Para sua surpresa, ele perguntou a Daniel se teria como servir o gato da Guarda Costeira para o lado da caserna, onde não chamasse atenção. Daniel concordou, porém saiu do gabinete intrigado. Por que Martos lhe teria dito isso, se uma terceira pessoa não tivesse reclamado diretamente para o corregedor? Claramente, uma pessoa cuja identidade ele ainda desconhecia, mas que se revelaria logo mais, na mesma tarde. Ao retornar da lanchonete para o prédio da Guarda Costeira e entrar pelo estacionamento, viu Martos deixar o local acompanhado de duas pessoas, dois amigos. Um, sem sombra de dúvida, era Allen Corliss, levando-o à conclusão lógica de que a mulher bonita, vista somente de costas, mas estranhamente de cabelos pretos, só podia ser Robyn, o que não conferia com os cabelos, afinal se recordava dela loira. Daniel custou a compreender; entretanto, em dado momento durante o turno da tarde, ocorreu-lhe: Robyn voltara a Cape May para ver os pais e aproximava-se com cautela. O lance do gato, de sujar o estacionamento com ração, não passava de joguinhos psicológicos por parte de Robyn para feri-lo, por qualquer razão, e, sendo amiga de Martos, servira-se dele, pois o chefe não gostava mesmo de sua pessoa.

Na noite de sexta-feira, chegava a casa mais cedo, pois ensinara trigonometria exclusivamente no primeiro período. Ele entrou deixando estojo e bolsa de ombro na poltrona da sala de estar, cumprimentando a mãe, que parecia se encontrar na cozinha preparando o jantar. Estranhamente, encontrou a sala abandonada pelos gatos, os quais haviam encontrado uma diversão nova na cozinha. Provavelmente, cercavam Helena para que ela lhes desse comida de panela. Ele ia discorrendo sobre o dia, queixando-se do cansaço e perguntando à mãe se a ração duraria o fim de semana, quando se deteve ao chegar à porta. Sentada com a mãe de Daniel, à mesa, Robyn Corliss bebia uma xícara de café e comia uma fatia da torta de frango. Ela usava cabelos pretos, e parecia especialmente linda. Vestia um blazer xadrez e um óculos de aros muito finos, o segundo elemento surpresa numa caracterização que dava ligeiros, inéditos ares a aquela pessoa que sempre seria um mistério tão fundamental de sua jornada. Como assaltado por uma descarga elétrica, fez uma careta de dor e olhou para baixo, aturdido. Helena foi se levantando para explicar, mas Robyn a segurou delicadamente pela mão e tomou a dianteira. "Deixe comigo, Helena, deixe comigo", Robyn pediu. No ombro da psiquiatra, uma gata frajolinha, a quem ele batizara de "Charioquinha", fazia a coisa mais engraçada, pois se apoiava com as patas dianteiras na ombreira do blazer de Robyn, dela recebendo pedacinhos da torta. Iluminado por um espírito de bom humor e perdão, provavelmente herdado de seu querido Padre Girolamo, Daniel fulminou a tensão ao brincar, apontando para "Charioquinha" e exclamando: "Traidora!". Os risos imediatamente eliminaram a animosidade, afinal de contas, Daniel ficara um pouco magoado pela finta que ela fizera com Martos a respeito do gatinho do estacionamento.

Robyn subiu com Daniel ao quarto, onde ele pegou a saca de ração, Charioquinha firmada no ombro da psiquiatra como uma esfinge. Era mesmo uma visão bem engraçada! No quarto, ele puxou de um armário baixo sob o computador a saca. Robyn ficou observando as paredes enquanto ele se preparava para sair, admirando o quadro de Padre Pio logo atrás da divisória laminada de madeira. Tendo se dado conta de que ele colhera o que precisava para aquela noite, Robyn permaneceu no centro do quarto, em silêncio, com os braços cruzados. Era óbvio que ela precisava dizer alguma coisa e custava a vocalizar:

- Fui eu que reclamei, sabe? Na Guarda Costeira? - Finalmente, confessou, com uma inflexão de remorso na voz. - E agora vendo a casa… Como deixou chegar a este ponto? Há gatos demais aqui, Danny, como fica sua saúde?! A saúde da sua mãe?!
- Quer saber? - Ele se irritou. - Eu realmente acho que eu deveria sair para dar comida aos gatos agora!
- Não, não. - Ela amenizou, com uma voz baixinha, compassiva, as palmas das mãos enluvadas com couro sobre o peito dele. - Eu só tento entender, só isso.
- Eu acho melhor que eu vá embora. - Ele sumarizou rebeldemente, após outra pausa para reflexão, e Robyn se enervou.
- Não, não, não, não, não… - Ela repetia com um tom choroso. - Por favor, por favor, por favor, eu não estou tentando…
- Parece que veio só para me atacar! - Disparou, furioso.
- Não estou tentando te atacar! - Ela se defendeu, ultrajada e entristecida.
- Pois parece! - Ele não refreou a barragem da revolta.
- Então eu sinto muito, eu sinto muito. Eu peço desculpas. - Ela se empenhava em não deixar o volátil princípio de discussão inflamar. Daniel se sentiu mal. - Procure me entender… Eu volto para Cape May, e nenhuma palavra sua! Não me procurou! É claro que fiquei zangada e quis…
- Oh, Robyn, desculpe-me. - Agora ele também se emocionara. Ambos estavam cansados, tristes e meio ranzinzas. Ele a abraçou de frente e Robyn respirou aliviada pelo fato de a parte mais delicada do reencontro ter passado. - Eu estou tão feliz por ter voltado! Desculpe-me, eu não sei onde estava com a cabeça, fico confuso e...
- Eu também, eu também. Já passou. - Permaneceram atados um ao braço do outro, contentes, apaziguados. Charioquinha sentara-se na mesa do computador e se limpava, lambendo uma das patas para esfregá-la atrás da orelhinha.
- Eu já temia reensaiarmos a revanche de nossa luta em 2010. - Ele brincou, e Robyn deu uma risadinha. - O que acha de me acompanhar hoje, na praia? Vem comigo alimentar os príncipes das marés?
- Os príncipes das marés? - Franziu o cenho, sem compreender no ato, até ele explicar.
- Os gatos! - Daniel esclareceu. Ela sorriu e adorou a ideia.

No instante da despedida, Robyn foi ter com Helena a sós. Daniel a esperou na portinhola, vendo a sombra do perfil das duas, a conversarem próximas à janela do quarto. Robyn estava de carro, de modo que uma das melhores partes de sua missão do dia a dia, o passeio no bondinho, ficaria para o fim de semana. A mãe foi deixá-la na porta e, antes de se despedirem, as duas se abraçaram com muito sentimento e calor. "Continuarei a vir, não se preocupe", Robyn insistiu, baixinho, para Helena, mas Daniel a escutou. Da portinhola, acenou para a mãe e avisou que era para ir se deitar sem esperá-lo. Dos degraus, aquele monte de anjinhos peludos ficou observando a saída do tutor com aquela visitante de blazer xadrez.

Robyn foi guiando, conduzindo o passeio, orientada por Daniel. Tinham tempo para chegar ao calçadão para dar comida aos gatos; queria passar de carro pela praia antiga, um passeio através das alamedas da recordação, visitação de pontos em comum do passado. Os meninos do bairro jogavam futebol num excelente campo construído no recuo para a praia, à frente do qual existiam quiosques de comidas gostosas. Mesas e cadeiras adornavam a beira do calçadão. As luzes deitadas pelos postes sobre a via a contornar a costa eram como mantos dourados a injetarem rejuvenescimento e vida ao passeio. Depois de pararem no píer, já dentro da praia, os dois foram caminhando para o ponto onde Daniel alimentava seus príncipes, ele com a saca de "uísquis", como Gladys falava, num dos braços. Com o outro braço, envolvia a amiga, pois ela manifestava frio.

Robyn apreciou assistir ao trabalho de Daniel, que cumpria com a missão com carinho e respeito pelos animais. O trabalho era feito numa pequena plataforma sob uma laje; a casa abrigava um projeto social para crianças de comunidades carentes durante o dia; via-se nas paredes, ilustradas com cartolinas com pinturas, e o minúsculo jardim ornado aos mínimos detalhes, com direito a casinhas para passarinhos, que existia uma doce, suave inteligência por trás da manutenção do lugar. As pessoas não se opunham a que Daniel os alimentasse ali; os gatos davam ao espaço uma aura de ingenuidade e pureza, sentida antes mesmo de se chegar ao projeto social: já da calçada, ao se pôr os olhos na descida pelo calçadão rumo à casa, sentia-se uma boa, acalentadora impressão. Ela o ajudou servindo água aos potes; os animais pareciam mais sedentos do que famintos. Após o trabalho, com a cabeça, fez um movimento para lhe chamar a atenção à casa ao lado. Fora em 2019 quando conhecera a família do lugar. Na época, Daniel ainda realizava o trabalho com os gatos na praça da frente, religiosamente, todos os fins de tarde, o que acabou por chamar a atenção de um casal de idosos, o qual costumava sentar no primeiro deck superior, o deck frontal, que dava para o calçadão e a praça. Eventualmente, um dia, o solícito e simpático senhor se aproximou para conversar sobre os gatos e, após um semestre, haviam construído uma bela, genuína e desinteressada amizade. O senhor o aconselhou a alimentá-los para dentro do calçadão, para dentro da praia; o espaço, mais generoso, albergava melhor os felinos. De fato, ao se prestar atenção às barracas, era como se a entrada da praia representasse uma faixa de barracas que constituíam o mundo seguro, à parte para os felinos, a vaguearem sobre as telhas, protegendo-se e dormindo entre os espaços e as caixas sob as lonas das áreas de serviço, sempre cheias durante os dias, esvaziadas e misteriosas à noite. Era uma existência charmosa à beira-mar! Eles haviam chegado a Cape May há mais de duas décadas, em 1997. A casa onde moravam tinha sido a barraca de onde haviam tirado o sustento e criado dois filhos, da infância à fase adulta. Quando Daniel os conheceu, em 2019, eles não abriam mais a barraca, a qual adquirira a qualidade de lar; entretanto, preparavam-lhe bolinhas de peixe, camarão, batata frita... Eles o recebiam bem, a consideração era mútua. Daniel vinha visitá-los todos os sábados e domingos, a variar quanto ao horário. Pela manhã, gostava de aparecer às 10:30 pois dava tempo de passar na galeteria, localizada na grande avenida a qual desembocava na praia, para levar dois frangos assados desossados, baião e paçoca, pelos quais agradeciam e costumavam fuzilá-lo com sermões de que não precisava ter se preocupado! Ele e Guillermo - era esse o nome do cavalheiro - punham as cadeiras na passagem do deck superior dos fundos, a dar diretamente para a praia, e viam o tempo passar num aprazível, reflexivo bate-papo que usualmente terminava quando a mãe lhe ligava para saber se Daniel demoraria a chegar. Dona Josi, a esposa, costumava trazer as latas de refrigerantes e coisinhas gostosas como tira-gosto. Se fosse à noite, melhor ainda, pois vinha pela outra extremidade da praia antiga, subindo por um caminho onde antes passava por um restaurante ao ar livre com espetinhos variados e, depois, ao lado de um self-service aonde Gladys o levara, na adolescência, o qual se encontrava apenas fisicamente no mesmo lugar, pois fora abandonado, e também ao lado do maior e mais rico buffet da região. Esses espaços podiam ser vistos na subida. Quando se chegava ao platô das dunas, antes da descida fenomenal `a praia, a entrada para a direita levava ao cinturão das mansões de Cape May, dentre as quais havia a casa dos Cowan. A bifurcação não distava tanto assim da parte de trás, as vias a serpentearem pelos estuários, onde ele sofrera o acidente aos vinte e quatro anos. Ao visitá-los na parte da noite, trazia os espetinhos no papel laminado, e ele e Guillermo se acomodavam nas cadeiras servidas por Josi no deck de frente ao mar, para uma conversa regada a goles de café.

- Seu Guillermo jamais tira a minha cadeira, Robyn, ele sabe que dou um pulo aqui para espairecer ao fim da madrugada! - Daniel a conduzia pela mão, subindo a escadinha a desembocar no deck superior. Os vasos de flores no expositor eram um elegante toque a embelezar o espaço. - Quando venho fazer o trabalho com os gatos, ele e Dona Josi já se recolheram, mas sempre deixam o deck preparado para minha visita, sabem que faço um pouso por aqui para olhar a praia! Veja, também deixam café! - Apontou para a mureta, para além da qual existia a praia e o mar envolto parte pela escuridão parte pelo luar, uma visão linda, linda.
- Tem certeza que não vamos acordá-los? - Ela saltitava sobre um dos pés para tirar o salto faltante; queria ficar descalça para não causar barulho. Segurando-se ao ombro de Daniel, não tinha como cair. - Nossa, a vista daqui…
- Não se chega mais perto da praia do que aqui, não? - Puxou a cadeira para perto dela, para que ela a aceitasse. Ele se sentaria sobre a mureta. Foi desatarraxando a garrafa térmica para servir o café quentinho. A mureta estendia-se num suave, confortável declive, de sorte que tinham como ficar sobre o topo para assistir à lua, se o quisessem. Ao encará-la, ele entendeu que ela pensava o mesmo. Então, subiu primeiro na mureta e ofereceu o braço para que Robyn se juntasse a ele. Sentaram-se com as pernas esticadas. Robyn arqueou os dedos dos pés, doloridos por causa dos saltos, sentindo-se melhor com a flexão. Daniel estudava os telhados das barracas vizinhas, e ria ao avistar seus amigos espalhados naquele mar de caibros e telhas, ou namorando, ou dormindo ao sabor do luar.
- Danny, você ainda tem aquele gatinho preto gordinho com o focinho achatado? - Ela sorriu ao evocar o famoso primeiro gatinho de Daniel.
- Cyrano virou estrelinha, assim como Cinzentinha, já há muitos anos, em 2014. - Ele contou, com uma voz morna acalentadora. - Veio a calhar, você mencioná-lo, agora que estamos aqui, prestando atenção aos gatos nos telhados. É que eu me lembro de uma conversa com seu Guillermo sobre quão misteriosos são os gatos. Falávamos sobre uma gatinha da praia, sumida há semanas; eu tinha um especial apreço por ela. Era bem parecida com a Charioquinha, a minha gata que subiu na sua ombreira. - Ele disse, Robyn abriu um sorriso e fechou os olhos, enrubescida. - Enfim, eu dizia a Guillermo, "Mas, poxa vida, cara, acho que ela morreu". E ele me disse algo nestas linhas: "Daniel, os gatos não morrem; os gatos somem". Por qualquer razão, soou-me poeticamente real… Jamais esqueci a fala do seu Guillermo.
- Gatos não morrem; eles somem. - Robyn repetiu, pensativa, com os olhos na linha do mar.
- Então, lembrei-me do Cyrano, da Cinzentinha. Há um ponto, no outro extremo da velha praia, aquele onde se chega ao se escolher o caminho pela curva descendente de Cape May… Os arbustos, a vegetação dão uma firmeza às primeiras dunas, há até uma parte de uma casa que entra praia adentro, para ter ideia. Quando o Cyrano morreu, eu o enterrei num determinado lado com arbustos, n
as dunas, separado dos coqueirais por uma descida ao mar. Um dia, pensei, "Rapaz, o seu Guillermo está errado; os gatos morrem, sim, recordo-me de onde enterrei o Cyrano" e, numa manhã, no fim de semana, voltei ali, tentando encontrar o ponto onde o pus para descansar. Deixara o lugar marcado com uma grande pedra branca. Pois, sabe, Robyn… - Ele olhou para a amiga, com um olhar cheio de significados a serem lidos, e sabedoria. - Seu Guillermo estivera certo o tempo inteiro, não se tratava de uma questão de soar poético apenas. Eu não consegui encontrar o lugar, sequer me recordava do lado onde o enterrara. Você pode dizer que Guillermo não errou ao afirmar: "Gatos não morrem; gatos somem". - Uma pausa. Daniel a apertou contra si pois, se já de jaqueta tinha frio, imaginou o quão gélido parecia à Robyn.
- Você só tem tempo para os gatos ou está namorando? - Indagou, um tanto quanto incerta, sem esconder uma pontinha de irritabilidade na voz ao aventar a hipótese. Daniel riu.
- Meu tempo vai para os gatos, para as coisas de Deus e, claro, para ti, pois rezo todos os dias para sua felicidade. Afinal de contas, o que é amar outra pessoa, senão...
-... Desejar o céu para ela? - Robyn complementou como uma espetacular pupila. Daniel fez que sim, orgulhoso. - Não sei se chegarei lá. - Abaixou o rosto, desencantada. Ela dobrou as pernas para se sentar melhor. - Eu não sei o que sou mais, Danny.
- Eu sei. - Daniel a defendeu, atropelando a consternação de Robyn com uma mais poderosa verdade: - Você é um ser humano muito amado e feito à imagem e semelhança de Deus. Nunca existirá outra Robyn. Mesmo as oposições de ordem espiritual, que enfrentamos no dia a dia, dentro de nossos corações, Robyn, elas não são inimigas de Deus, por mais que O odeiem. São ferramentas da providência pois, de uma estranha maneira, concorrem para nossa redenção, ajudam-nos a chegar lá meritoriamente. Independente do ângulo pelo qual encare a condição humana, é a graça de Deus que nos sustenta; fora da graça, não temos onde nos apoiar. Não aceitar a graça foi a "queda" dessas forças que operam em nossas vidas, mas tudo o que podem fazer é mentir, para nos levar ao desespero. A decisão final permanece conosco, é do encargo de nosso arbítrio. E dentre tantas reviravoltas nos pontos onde nos encontramos ao longo de nossas jornadas, você fez exatamente aquilo que o Senhor esperava de ti quando bolou a "Robynzinha" no instante de seu nascimento, em 1978. Todas as pessoas nascem originais, mas a esmagadora maioria morre cópia carbono. Ou seja… São tantas as modas deste mundo barulhento que vamos copiando comportamentos até nos esquecermos de onde viemos. Mas você vai ser sempre cachinhos dourados, por mais que pinte o cabelo de preto… Que por sinal ficou lindo! - A risada de Robyn foi de uma pureza tal que ele não se recordava de ter ouvido desde a adolescência. Era como se tivessem quinze anos novamente. Daniel se levantou, com cuidado, e a segurou pelas mãos para ajudá-la a se pôr de pé; queria lhe mostrar algo. Eles subiram para a caixa d’água, ainda mais alta que o deck. O campo de visão capturava os principais telhados da quadra, e parecia haver gatos em cada um deles. - Você acredita que seu passado selou seu destino, Robyn, mas a verdade é que nada vai convencer Deus a desistir de você. O ponto de vista da salvação é diferente do seu. Olhe para os gatos. Vendo-os interagir, é óbvio que gatos formam alianças, estabelecem inimizades, disputam território… Seus dias são preenchidos por esquemas de interesse e jogadas, alguns aliados, outros adversários. Trata-se de uma visão maniqueísta, como vê; entretanto, para aquele que vê de cima, as cores adquirem contrastes mais ricos e complexos. Eu os vejo todos e sei que os amo. Suas desavenças não me valem nada; quando os vejo se metendo em encrencas entre si, eu lamento quando eles se machucam, mas os amo todos, e só quero que fiquem bem e felizes. Para você, do nível onde se encontra, seu passado a provoca a ponto do desespero, mas aquele que vê tranquilamente do ponto de vista da salvação reza por ti, te ama, quer te levar – e vai te levar – para o céu. Porque mesmo seus piores segredos não valem nada diante do amor de Deus. E do meu também. - E então, tendo se lembrado de algo dito uma vez a Cyrano, um retrato da singeleza e sinceridade de seu compromisso com o gatinho, explicitou o mesmo amor ao concluir: - Porque eu te amo e você é a minha melhor amiga.
- Obrigada, querido. - Eles se abraçaram. Emoldurados pela lua cheia alta, a preencher o centro de um manto estrelado, foi um momento que se incorporaria a suas recordações.

Sábado não demoraria a vir. Sentia-se na substituição do frio pela mornidão que a manhã apontaria em menos de uma hora. Robyn pretendia levá-lo para casa; entretanto, Daniel preferia ser deixado perto do farol. Robyn só se lembrou ao entrar na ladeira que dava para o planalto do mirante: estivera ali com Daniel há muitos anos. Daquela posição privilegiada, assistiam à maneira como um novo dia se insinuava sobre o mar, como uma camada de um dourado gradual a irradiar a partir do horizonte e vir avançando para a costa à medida que um azul deslumbrante tingia o outrora estrelado manto crepuscular. Não se resumia a um espetáculo visual; sobretudo, tratava-se de uma sinfonia aos sentidos. À audição, pois a terra produzia o ronco afinado ao ritmo das vidas à margem da praia; ao olfato, pois a maresia agradável e úmida varria a costa com a rebentação forte das ondas nas quebradas; ao tato, pois foi com as pontas dos dedos com que Robyn sentiu o rosto de Daniel. Ela levou as mãos vestidas em pelica à face do passageiro, e Daniel fez o mesmo. Robyn não envelhecera mesmo um único segundo após a conversão por Goldman Roehmer nos seus tempos de Oxford. Eles se beijaram desesperadamente, Robyn o firmando com a mão fortemente posta por trás da nuca dele, pressionando-o contra seu rosto. Robyn deslizou a mão livre para a sua coxa, e não refreando o desejo provocado pela iniciação do beijo, afundou-a mais até o meio de suas pernas, apertando-o no pênis. Os olhos de Daniel ora fechavam, ora giravam; sentia-se, indubitavelmente, confuso. Num dos passeios da vista através do caleidoscópio de imagens atraentes e cheiros da cabine, prestou atenção na parte de Robyn a escapar da saia do blazer; ela vestia uma peça de neoprene anatômica num dos joelhos, com um orifício frontal na região da patela, para aliviar a pressão; possivelmente, ossos do ofício, levando-se em conta que ela ainda lutava. Daniel se concentrou e manteve o desejo em xeque; amava-a demasiadamente para ir adiante. Com carinho, foi se desvencilhando vagarosamente da mão no meio das pernas, devolvendo-a ao colo dela. Finda a tremenda eletricidade do momento, ambos com os olhos marejados, Daniel a encarou e, com um sussurro, lembrou-a daquilo que era verdadeiramente importante. Apontando para cima, repetiu: "O céu… O céu". 
Por uma janela de tempo muito exígua, Robyn se apresentou a Daniel em sua forma ocasional. Suas pupilas tinham adquirido o formato de filetes verticais, como era próprio a uma gata, para filtrar o excesso de sol que, naquele ínterim, penetrava gloriosamente enseada adentro. Ao passar docemente a mão pela maçã do rosto e o queixo de Robyn, ela abriu um pouco a boca para não esconder os caninos subitamente pontiagudos e predatórios. Em nenhum momento Daniel se assustou; muito ao contrário, sorriu ternamente a ela e repetiu o quanto a amaria para sempre. "Eu só não contava que, em minha humanidade, eu me apaixonaria perdidamente pela minha melhor amiga", Daniel murmurou. Ela abaixou a cara, lágrimas traçando algumas gotinhas na elegante saia riscada, e ao levantá-la, voltou a ser a Robyn de sempre. Passou a língua entre os lábios, absorvendo o gosto salgado das lágrimas. "Posso convertê-lo, se quiser… Você jamais morreria, e poderíamos ficar juntos…", ela quase implorou. "Nós já ficaremos juntos no céu", ele declarou, com a firmeza do homem cujo ponto de vista lhe garante plena vista de seus dramas e desencontros, acrescentando: "Mas preciso me focar em preparar o nosso céu, desde já, até `a minha morte". Robyn concordou, com um lento aceno afirmativo de cabeça.

Antes de ela ter de ir, Daniel e Robyn passearam um pouquinho pelo mirante. Robyn lhe contou que ela e a família fariam um cruzeiro no iate de Allen, um mês entre as ilhas gregas mais conhecidas. Daniel a parabenizou pela aventura, imaginou o quanto se divertiriam. Ambos os adultos, Robyn & Allen, careciam de descanso, especialmente após os últimos dois exaustivos anos de pandemia. Ela deixaria Cape May logo mais; trouxera o marido e os filhos no começo da semana, uma breve passagem pela casa dos pais antes da partida para a Grécia. Embora o reencontro tivesse sido rico em lágrimas e emoções, na hora da momentânea despedida, ambos riam e falavam sobre o futuro. No ensejo da Grécia, Daniel contou à Robyn um fato até então desconhecido quanto a Padre Girolamo, pois antes do sacerdócio e logo em sequência à morte da esposa, Giro amara a Grécia. Fora lá onde vagara perdido, sem saber o que fazer da vida, antes de o Senhor tê-lo trazido de volta ao mundo para compreender o sentido por trás do aparente caos. Ela insistia em levá-lo para casa, pois temia que Helena despertasse e ficasse nervosa ao não vê-lo no seu quarto; Daniel explicou que a mãe se acostumara às vezes nas quais dormia fora de casa, ou melhor, passava as madrugadas de sexta-feira a sábado vagando pela praia e pelos lugares fundamentais de sua jornada. Ao ligar o carro, ela avivou o som. Houve um segundo no qual, já dentro do carro e prestes a partir, Robyn o olhou melancolicamente, com um sorriso feito charmoso, cortesia da mordida no lábio inferior, uma expressão de tristeza duramente mantida sob controle. Tamar Braxton cantava "If you don't wanna love me". Era um momento absolutamente eletrizante e comovente. Daniel insistiu no sorriso inteiramente feliz:

- Devo ser forte por nós dois, pois tenho uma longa missão pela frente, até quando Deus quiser. - Ele se aproximou pela janela do motorista, trazendo-a para si num abraço paternal, e lhe disse: - Robyn… Tristeza é um olhar voltado para si mesmo. Felicidade é o olhar voltado para o céu.
- Tudo bem. - Ela concordou, emocionalmente estremecida, mas resignada. - Você conseguirá preparar o nosso céu?
- Eu morrerei preparando o nosso céu; mesmo não o tendo terminado ainda, eventualmente o céu estará lá, não se preocupe. Ainda não sei se sou duro o suficiente, então me diga: você me deu tudo de si naquele dia em 2010? Ou você refreou para não me machucar demais?
- Atirei absolutamente tudo o que tinha, mas você não caiu. - Ela suspirou, a lembrança recorrendo-lhe, dolorosamente. - Sim, eu fiz tudo ao meu alcance, mas você foi apenas muito duro.
- Então, acho que temos uma chance. - Beijou-a na testa. - Cuide-se e me escreva lá da Grécia!

Ao chegar ao cimo do farol, Daniel pôs as mãos na cintura e se deu uma folga de tempo para apreciar o litoral. Sábado mal irrompera; entretanto, antevia um espetacular dia ensolarado, gente brincando e se bronzeado ao longo da faixa de areal, jovens esportistas praticando o kitesurf no comecinho do mar, as barracas lotadas, garçons indo e vindo com pratos enormes de peixe frito e guarnições. A brisa lhe parecia dotada de volição, um jeito de Deus para falar a sua pessoa. Com tantas dúvidas e temores, por um ínfimo de segundo, adquiriu plena convicção de que fora aquele caminho, não havia caminho algum. Assim como as outras pessoas a caminharem no mundo, a fé trepidava em recuos e avanços; contudo, ele sempre sabia, em momentos muito seletos, que não havia retorno, por mais que o demônio, ou melhor, a operação demoníaca de sua história, "Capitã Estupro", agisse recorrente em sua memória, não mais como presença, mas como recordação, lembrando-o de onde viera, lembrando-o de seu passado; então, Daniel refletia sobre a permissão divina para a atividade diabólica, e enxergava o enorme amor por trás de tão misterioso assenso, afinal, com isso, firmar-se-ia na obstinação de jamais voltar para a vida anterior. Em face das pessoas para quem a solidão o tornava uma figura excêntrica, o único que sairia ao fim com tudo o que desejava nos braços – e muito mais – seria justamente aquele a quem julgavam incapaz de sair com qualquer coisa: ele mesmo. Daniel se sentou com as costas na mureta, e deslizou os dedos sobre a primeira linha da jura de sangue feita naquela tarde, hoje tão afastada na cronologia dos eventos.

Não era que não estivesse feliz; sim, sua expectativa fora depositada nas coisas certas, mas sentia-se bastante cansado, oh, tão cansado. As pontas dos dedos terminaram de correr sobre o sangue, escuro e apagado, e os olhos foram pesando. Ele disse para si que dormiria por uns dez minutos somente, apenas até recuperar as forças. Tinha uma noção do que havia no caminho para sua pessoa. Sr. Futuro lhe acenava distante de algum ponto mais adiante da estrada quando, ao alimentar os gatos na madrugada, tomaria o tiro num assalto mal sucedido e morreria lá. Via a morte e antevia o segundo seguinte, vendo-se devolvido aos 17 anos, chegando do colégio e atirando a mochila com livros na cama, Gladys exclamando que lavasse as mãos para almoçar enquanto o neto a abraçava por trás para beijá-la na face, Cyrano festejando e disputando a atenção do tutor, esfregando-se a suas canelas. Viu a felicidade palpitante envolvida em se conhecer somente partes da verdade, jamais a verdade inteira a respeito do mistério da vida e do mistério de Robyn, a mesma Robyn com quem cruzaria no recreio, com quem trocaria olhares significantes de um milhão de coisas não vocalizáveis, porém suficientemente claras, como o "Daniel, eu gosto muito de você", em 1995, antes de ela lutar; viu a importância do contraponto da tristeza, das pontadas angustiadas ao fim das tarde de domingo quando apoiaria o queixo nos braços, na esquadria da janela do quarto, com vista para a praia já esvaziada sob o toque da noite, lembrando-o de que o próximo dia também seria um passo a mais em direção à Robyn. Em paralelo a seu mundo interno, no mundo externo, a melodia da praia sob a ocupação de gente, de pessoas vivas, foi chegando aos ouvidos e, para coadjuvar as lindas imagens conjuradas pela mente, a sensação de calor e cuidado do sol nas primeiras horas da manhã o embalou como um manto reassegurador, afastando o frio dos anos durante os quais correra através das madrugadas felinas, aproximando-o de um amanhã costurado de partes de muitas outras manhãs avulsas de 1995, de 1997, onde o sol reinaria para sempre no zênite de um perfeito firmamento azul sobre uma casa que lhe era perfeita em suas imperfeições, tão necessárias quanto gotas do acre que tornam os melhores sabores ainda mais deleitantes.




FIM






TRISTEZA É UM OLHAR VOLTADO PARA SI MESMO. 
FELICIDADE É O OLHAR VOLTADO PARA O CÉU.

BURT REYNOLDS
MADRUGADAS FELINAS